Muck cobriu o rosto com o antebraço.
Os estilhaços de vidro voaram por
todos os lados, rabiscando assinaturas vermelhas ao longo de sua pele. Ele
continuou correndo, deixando tiros e explosões para atrás. O som de passos rápidos
e treinados também se confundia com os tiros, além de todas as ordens de
“capturem-no”.
Pelos becos da cidade, ele fugia como
um exímio condenado. As pessoas, amedrontadas diante do poder e repressão da
Fonte, sequer abriam as janelas para sanar a curiosidade. Bastava saber que os
soldados estavam perseguindo outro idealizador que ia contra as doutrinas do
exército. Se a Fonte estava contra alguém, então era melhor deixar passar
longe.
Por corredores imundos e fétidos, sob
a chuva fina da noite, Muck traçava caminhos variados na desesperada tentativa
da fuga. Mas ele corria em uma direção única, já que a informação que obtinha
na cabeça o movimentava como um animal. Era o mais perto que havia chegado em
tantos anos e não deixaria a oportunidade passar em vão, estava perto o
suficiente para desistir ou voltar atrás. Seguiria em frente com ou sem o
exército da Fonte o perseguindo.
Eu vou ignorar. Eu preciso encontrá-la. Eu tenho.
Muck correu reto, mas logo avistou
três soldados cercando o caminho. Ele tentou seguir para direita, à nordeste,
mas também constatou que mais dois soldados o esperavam. Praguejou algo baixo e
acelerou o ritmo à noroeste. Mantinha a cabeça abaixada devido ao intenso
tiroteio que pipocava nas paredes ao seu lado; vez ou outra era acertado por
minúsculos pedaços de concreto que eram arremessados contra seu rosto. Particularmente
aquela noite, seu olho esverdeado mantinha um tom avermelhado, como se tivesse
sido nocauteado por um punhado de areia. Ele quase lagrimava e - somente Muck
sabia – ardia como brasa nas plantas dos pés, latejando uma dor insuportável
por toda a região frontal da sua cabeça.
Era um sinal. Ela estava perto, mais
perto do que esteve em anos. Totalmente próxima. Totalmente em perigo.
Muck prosseguiu pelo único beco livre
do exército da fonte. Ele correu, sentiu as pernas fraquejarem. O olho pulsou.
Um tiro foi disparado atrás dele e, alguns segundos depois, uma intensa
claridade explodiu ao seu lado. Tudo foi
pelos ares. O rapaz sentiu o mundo girar. Frangalhos de sangue e paredes
voaram pelo ar, concedendo aos seus ouvidos um instante de total ausência de
som ou, no mínimo, um fraco e contínuo som agudo e forte. Muck caiu no chão
após rodopiar dezenas de vezes. Ele rolou como se não tivesse peso, foi
acometido por uma chuva de destroços. O sangue desceu da boca, um dente se
partira; um corte brotava verticalmente da testa, derramando sangue e
frustração.
Ele tentou se apoiar no chão,
erguendo o tronco. A visão estava turva e embaçada. O olho verde já lagrimava
tamanha era a dor na cabeça Estava baixo e vermelho, totalmente doentio e a um
passo da possível cegueira. Mas Muck sabia... Era apenas um efeito colateral.
Um sinal da dor que Ela estava
sentindo. O rapaz bufou, ainda tonto. Sentiu que as pernas ainda estavam
intactas, assim como o resto do corpo. Ele teve forças para levantar, embora
com pouco equilíbrio. Levantou. Restabeleceu a coordenação, manteve-se de pé.
Foi quando ele viu.
A pequena casa estava na sua frente,
isolada em uma rua larga – Muck não sabia como fora parar lá, talvez tivesse
sido arremessado por muitos metros depois da explosão. Tinha traços simples,
discretos e orientais, mas apenas um detalhe contrastava com toda sua
simplicidade: enormes e chamativas letras em tom de vermelho, num anúncio em
néon. O lugar parecia calmo e inabitado, as portas de madeira escura e roliças
não eram protegidas por seguranças, mostrando que o recinto era livre a
qualquer um. Mas não era a calmaria do lugar ou as características arquitetônicas
que chamaram a atenção de Muck. Foram as
letras. Possuía apenas cinco letras, formando uma única palavra derradeira
e assustadora – pois o rapaz lembrava, já tinha sonhado com aquilo antes, o
lugar já estivera em seus sonhos para atormentá-lo e assustá-lo.
Um selo vermelho e profundo, cravado
nos mais profundos abismos que o tragavam em pesadelos, sempre que seu olho
verdadeiro deitava para dormir e o olho verde fingia não existir. Matando Muck
em sonhos, pesadelos e lembranças. Um carimbo em forma de néon, um aviso do
inevitável. Estava lá, finalmente à sua frente, depois de incontáveis anos e
vidas: Harém. Ele cambaleou,
caminhando em direção à porta. Também levou a mão à cabeça, tapando o olho
verde com a palma. Espremeu a ponta dos dedos sobre a pele, como se pudesse
segurar a dor e expulsá-la. Continuava a latejar, pulsando ao galope de mil
touros.
Trotou em direção à porta de madeira.
Esticou a outra mão e, antes de tocar a entrada, ouviu passos atrás dele e
dezenas de armas sendo engatilhadas. Muck parou, era o fim da linha. Não
precisou girar o corpo para saber que estava cercado pelo exército da Fonte, já
que bastaria um sinal ou um mínimo movimento para que os tiros fossem
disparados.
- Em nome da 39ª companhia de assalto
do esquadrão da Fonte, você será conduzido à cela de enquadramento da 30ª
central da cidade. – Uma voz mecânica anunciou, sobre um traje robótico, mas
com movimentos humanos. As armas voltadas contra Muck emitiam sonoros guinchos
crescentes, enquanto luzes eram acesas através de todos os seus dispositivos. À
frente do canhão de disparo de cada uma delas, uma bola de energia vermelha
crescia no ar, girando como uma esfera maciça de magma, nunca se solidificando,
mas rotacionando e desprezando a força da gravidade, totalmente independente de
qualquer mecanismo terceiro que a mantivesse flutuando. Era puramente uma bola
mortífera de energia apontada para aquele transgressor da lei. – Renda-se
agora. Repito: renda-se agora. Caso contrário, agiremos com contra sua vontade.
Pouco a pouco, Muck regulou a euforia
e recuperou-se da dor que a explosão o acometera ao lança-lo por metros.
Respirava devagar, cauteloso, ciente da ameaça que estava às costas. Atrás
dele, meia lua de soldados da Fonte formava-se na ofensiva. Uma das mãos estava
levantada, enquanto a outra ainda segurava o olho dolorido, comprimindo a pele
como se tal ato fosse capaz de eliminar a tortura.
- Achei que já estivessem agindo
contra minha vontade. – Respondeu entredentes, sem ironias, sem joguinhos, pois
daquelas artimanhas, Muck pouco era formidável.
- Renda-se agora. Repito: renda-se
agora. – A voz mecânica voltou a pronunciar as palavras. Sob os trajes
metálicos variando entre o negro e o vermelho, ele pouco saberia dizer se os
controladores de fato eram humanos, máquinas, algo entre os dois ou alguém
muito além de qualquer compreensão mundana. - Em nome da 39ª companhia de
assalto do esquadrão da Fonte, você será conduzido à cela de enquadramento da
30ª central da cidade. Renda-se agora. Renda-se agora, repito...
A voz continuou, mas Muck pouco
escutou. Dentro dele, algo ardia por respostas. A insatisfação pela situação,
além da dor neural que acometia o olho direito (o falso), faziam-no eliminar
quaisquer ameaças externas. Ele precisava cruzar as portas do recinto, pois as
letras atrás dele, no alto e em tons de néon avisavam, num escarlate
massacrante e derradeiro, que aquele era o lugar que há décadas povoara seus
pesadelos mais insanos e sangrentos - as
memórias da Terceira Criança. O quer que aquelas bolas avermelhadas de
energia significassem, não iriam mais impedir o homem de seu objetivo. Ele iria
até o fim, custe o que custasse.
- Agiremos contra você! Repito.
Agiremos contra...
- Sinto muito.
Muck inclinou-se para frente num
impulso e começou a correr, ciente de que colocava a própria existência em
risco. A dor, afinal, o impulsionava, pois fazia-o sentir-se vivo, como nunca
antes de sentira em muito tempo. Famílias inteiras decaíram, vidas completas se
fizeram, se perderam, valeram a pena, construíram a história, morreram e
sacrificaram-se no período em que aquele homem pairou no limbo da perene
inexistência. Ele presenciou a própria ausência de liberdade e emoções enquanto
uma sociedade ruía e se levantava. Ele presenciou mais do que desejara, procurou,
cruzou os três cantos do solo onde residia, passara tempo demais nesse cruel e
sádico limbo. E por isso a dor importava tanto: era o único sinal evidente de
presença próxima. A Terceira Criança.
E portanto, ele não esperaria mais. Nenhum minuto sequer.
Mais avisos mecânicos e robóticos
explodiram atrás dele quando, finalmente, as ameaças tornaram-se, efetivamente,
prática de ação. As pequenas esferas de energia evoluíram, ganharam rotações
mais intensas e repetitivas, pequenos feixes de luz surgiram ao redor de seu
núcleo central, ganharam volume e brilho e, em não mais de quinze segundos, já
possuíam o tamanho de um crânio inteiro, explodindo em raios de emanações
energéticas que levantavam poeira do chão e afastavam pedaços de lixo e papel.
Numa ordem rápida e direta, as armas de todos aqueles soldados dispararam,
todas na direção do homem que corria às portas do Harém, estremecendo o chão ao seu caminho em pequenas a médias
vibrações que formaram pequenas – quase desprezíveis – fissuras sobre o
asfalto.
Muck apressou a corrida, mas pelo
clarão que se formara atrás dele explodindo por toda a escuridão da noite, ele
sabia que talvez fosse tarde ou inútil continuar aquela vã e suicida missão.
Sabia que não chegaria tão perto, que tampouco cruzaria aquelas portas. Esticou
ambas as mãos na falha tentativa de alcança-las e, quando o fez, o olho
esverdeado agora não passava de uma grotesca abertura avermelhada, quase roxa,
expelindo fios de sangue. A região na qual ficava a abertura ocular estava
inchada, exigindo que a pressão interna se expandisse e libertasse o que quer
que houvesse lá dentro. Muck não tinha noção da situação em que se encontrava,
mas caso visse a própria imagem, se assustaria e talvez (só talvez) cogitasse a
opção de dar meia volta e se afastar. Apesar de todo o grotesco aspecto, e por
mais que escolhesse desistir de sua missão, o homem já não tinha escolha, pois
as imensas esferas de energia já se aproximavam de suas costas num ângulo
convergente que eliminaria sua existência como num passe de mágicas. As luzes
se aproximaram, ganharam velocidade, rasgaram o asfalto abaixo delas e
alcançaram o homem.
Era o fim.
Colidiram umas nas outras, criando um
campo de energia que varreu a fachada do recinto e abriu uma enorme cratera
esférica no chão. Não houve ruídos, não houve explosões, apenas a queima de
toda a matéria existente no campo de ação daquelas esferas, eliminando
quaisquer tipos de vida que residissem ali. Muck não saberia, mas o que tornava
as esferas tão agressivas era seu nível de destruição atômico e celular, que
não deixava rastros para trás, convertendo e transformando toda a matéria
macroscópica e microscópica em pura e simplesmente energias térmica, elétrica e
radiante (que por sua vez ecoou em forma de raios mínimos e invisíveis ao olho
humano).
Os soldados se aproximaram,
examinando o local e constatando que de Muck absolutamente nada sobrara. Ele
fora dissipado, exatamente conforme as intenções do ataque do batalhão da
Fonte. O inimigo fora retaliado, o relatório seria entregue aos superiores e o
caso seria tratado como mais uma rebelião de um único manifestante insatisfeito
às formas do novo governo. A chuva continuou a cair fina, enquanto um por um os
soldados se retiravam, sumindo na escuridão dos becos que antes brotaram.
Do espetáculo dantesco que suas armas
geraram, eles mal sabiam que um milésimo de segundo antes das tão nocivas
esferas energéticas atingirem o homem, um milagre científico e metafísico
ocorrera, retirando todo o corpo e consciência daquela criatura que se auto intitulava
Muck. Com ou sem explicações, variando ou não da definição de “milagre”, Muck
fora retirado dali para ser expelido a centenas de milhas de distância, no alto
de uma colina que ostentava no topo de um penhasco um monstruoso farol
entrecortado por listras brancas e vermelhas, tão apagadas quanto o amor de um
velho casal sem interesses. A chuva lá, ao contrário da cidade, caía tão forte
como a ira de um Deus esquecido, riscando e acendendo relâmpagos temíveis a
cada intervalo de quinze segundos. O chão tremia, os trovões varreriam as
pulsações de coragem de qualquer homem que se aventurasse por ali em tal
momento.
Sob uma tempestade dantesca e um
farol morto, Muck caíra de joelhos, com as mãos na grama, agarradas e
incrédulas, desejando que o solo que tocava fosse as portas que antes estavam à
sua frente. Ele levantou o rosto, um segundo depois de ter todos seus pontos de
referências mudados e a dúvida o tomado. Agora, no entanto, começava a concluir
o que acontecera. Diante dele, um menino com rosto de menina, olhava-o com
olhos femininos em tons masculinos. Os cabelos enrolados e negros caíam
inocentes sobre as orelhas, enquanto a pele negra era salpicada pelo jorro de
gotas de chuva que caíam furiosas. A ventania forte abalava o ponto de equilíbrio
do homem, que precisou se segurar no chão quando ajeitou-se sobre os joelhos,
mas a criança pouco parecia abalada. Ela estava de pé numa sincronia
assustadora, não se deixando abalar pelos raios ou pelo vento. Apenas o
observava, com a flauta na mão, pousada ao lado das coxas finas. Os sapatos
negros estavam afundados numa pequena poça de lama, mas Muck não tinha certeza
se de fato estavam sujos ou não.
Com o rosto erguido, o homem ameaçou
um protesto, tremeu sobre os próprios pés, mas não ergueu a coluna, tampouco
retirou as mãos do chão. Ainda temia ser levado pela força da natureza. Em meio
à barulhenta tempestade, ele só pôde gritar, e o fez com todo o ímpeto:
- Por que me tirou de lá? Eu estava a
um passo de encontrá-la! Por que fez isso?
Como quem observa o ritmo de uma
formiga a caminhar, a criança apenas o fitava com olhos inexpressivos e
deduções indecifráveis. Ela nada falava, talvez não tivesse voz, ou talvez por
muito saber, pouco pronunciasse. E exatamente como Muck esperava, ele não
obteve respostas diante de seus questionamentos. Por isso continuou a gritar e
berrar, sem se dar conta, durante toda a cólera, que a dor na cabeça sumira e o
máximo que restara na deformidade de seu rosto anguloso e ossudo, fora os
rastros de sangue que agora se perdiam devido à água da chuva. Como toda a
criança ingrata, Muck só reclamava quando o certo seria agradecer.
- Por que não fala nada? Eu estava a
um passo de alcançá-la, eu estava tão próximo... tão...
Apesar do tom, ainda era enérgico,
cheio de raiva e revolta. Entre os estrondos dos raios, sua voz soava como uma
sinfonia complementar, encaixando-se perfeitamente naquela tempestade
temperamental e passageira. Permaneceu, assim, a gritar por longos minutos,
pressionando a grama entre os dedos no secreto desejo que elas fossem o
colarinho da criança, para sacudi-la e arrancar uma resposta direta e sincera.
Era o que Muck queria por ter chegado tão perto dela. Mais um segundo. Mais dois segundos. Então estaria lá dentro,
próximo ao seu paraíso.
Num gesto cômico, porém sério, a
criança usou a flauta para atacar Muck, dando uma pancada no topo de sua cabeça
e pegando-o de surpresa. A atitude não foi em todo agressiva, a criança não
usou força, tampouco tentou utilizá-la, mas ficou óbvio sua motivação e isso
fez com que o homem se calasse no mesmo instante, com os olhos extremamente
projetados à frente e injetados de surpresa e descrença. A tempestade cessou
com os estrondos. O céu permaneceu escuro, os relâmpagos continuaram a clarear
o horizonte, mas apenas o toque das gotas de chuva acolhia o ambiente. Literalmente,
o mundo inteiro entrou num silêncio súbito e prolongado após a inesperada
atitude do menino, que fitou Muck com a mesma imparcialidade que um deus
supremo observa um humano a se coçar.
O bracinho ainda estava esticado, segurando
a flauta na ponta e enterrando a outra extremidade entre os negros cabelos de
Muck. Ela piscava com demasiada calma, respondendo assim, talvez, todos os
questionamentos que o homem a fizera. Soava como um mestre oriental ensinando
seu aprendiz a arte da paciência, e que ela, muitas vezes, era regada e
fortalecida ao silêncio e à compreensão profunda de determinadas escolhas e
atitudes.
Quando retirou a flauta, a criança
apenas girou sobre os pezinhos e deu as costas ao homem de joelhos. Automaticamente,
o som da tempestade voltou, repleto com seus relâmpagos e trovões. A ventania
diminuiu, fazendo com Muck percebesse que já não era necessário se prender ao
chão em busca de equilíbrio, no entanto, em momento algum perante a criança ele
ousou se mover. Observou-a, com a visão periférica, afastar-se ao topo do
penhasco e entrar no farol por uma portinhola simples e quase camuflada pela
tintura vermelha. A porta rangeu, ecoou seu ruído através da chuva e fechou-se,
abandonando a agora amena tempestade juntamente com seu indireto aprendiz.
Muck perceberia só mais tarde o
tamanho de seu erro, quando viria a perceber que o olho falso já não mais
ardia, nem tampouco oferecia riscos brutais. Talvez agora estivesse morto pelos
soldados da Fonte, não fosse a intervenção metafísica da criança. Quando a
tempestade desaparecesse, Muck chegaria a todas estas conclusões, mas naquele
instante, o que corria por seu ímpeto interno era apenas o quão perto chegara
da Terceira Criança e o quanto por pouco não a alcançou.
Enquanto chovia, Muck permaneceu de
cabeça baixa, analisando, pesando e conformando-se com seus erros e atitudes
impulsivas. Em momento algum ele ergueu a cabeça ou moveu-se. Permaneceu assim
por um longo tempo, enquanto alcançava a compreensão que a criança queria que
ele alcançasse.
Enquanto a chuva não cessasse, Muck não
estaria livre de sua penitência.
Continuou a chover naquele penhasco
que ostentava o velho e insuficiente farol.
Choveu por muito, muito tempo.
Choveu por dias.