28 de junho de 2013

E quem diria?




E quem diria? Ambos não podiam sequer imaginar. Talvez eles imaginassem, mas seria quase impossível realizar naquele momento. O namorado dela reparara, ela reparara e demonstrava gostar, ele reparara e não ligava por estar dando na cara que a encarava ferozmente. O álcool tinha facilitado tudo, mas aquela não foi a primeira que ele a encarava. Se ela tinha percebido, aí já não sei dizer. Só sei que de uns tempos pra cá ela tinha demonstrado algo que ele tentava ao máximo ignorar, afinal tinham pessoas importantes nas quais respingaria essa brincadeira deles. Já não ligavam, só queriam se divertir. Mas tudo começou de um modo estranho. Ela estava de cabeça baixa, voz quase inaudível. Ele, antes tão eloquente, só conseguia admirar a silhueta dela naquela saia indiana e a blusa colada. Andaram sem rumo um breve quarteirão. Uma cerveja pra descontrair e o papo começou. Outra cerveja, e o papo fluiu. Ela tinha na boca cerveja preferida dele. Cada gole tinha por cima um olhar sacana. Falaram de experiências, vergonhas, do rabo de cavalo dela, do sorriso de canto dele, do sorriso aberto dela, do humor dele, de tristezas. Divertiram-se. Ele não queria ir em direção da sua boca, pois muita coisa conturbava sua cabeça. Ela precisou mostrar que valia a pena. E valeu. Seus pudores foram contidos pelos olhos curiosos dos que passavam, mas ainda assim deixavam escapar uma ou outra mão boba. As paredes guardam o cheiro do tesão que os corpos exalavam quando ela o jogou na parede e ele a virou com mais força, deixando-a involuntariamente na ponta do pé. O corpo dela estava nas mão dele, mas ela detinha o controle. Então se despediram. Um sacode amanhã? Talvez, quem sabe? A gente sabe. E ele está em débito, se segurando pra não sair a procura dela.

(T.S.Banha)

23 de junho de 2013

Cartas na Mesa



É o seguinte: por Deus eu superei a fase de carência afetiva. Por Deus, se é que ele existe, estou livre (e faz um tempo) daquela necessidade latente de querer me unir a alguém, o que me faz concluir que, mesmo nunca estando num relacionamento de fato, eu não sou feito para isso. Sou medíocre, ridículo e assisto desenho. Sou preguiçoso, tenho uma extrema e grandiosa falta de vontade de visitar amigos, quem dirá ir todo dia à casa da namorada, gastar dinheiro com ônibus quando poderia estar, hm, gastando com... livros? Coca-cola? Cup Noodles? É, é por aí. Aliás, os gastos seriam exorbitantes e isso seria inválido para investir em uma só pessoa. Sexo? Ora, posso pagar uma profissional. Vejam bem, não é por mim, e sim pela pessoa: eu não desperdiçaria o tempo de uma garota amável e maluca que optou se juntar a mim neste laço lindo e glorioso de tão belo sentimento. Sentimento verdadeiro? Da minha parte? Amor? Hm, não sei, pouco tenho certeza, duvido muito. Eu não seria verdadeiro, não recitaria as palavras tão esperadas. Aliás, falo isso levando em consideração o fato de alguém sentir-se atraída por mim, o que é estatisticamente muito difícil. Algum de vocês já me viu pessoalmente? Eu sou ridículo. Sei que a coisa toda da aparência física é pouco importante para aqueles de bom caráter, mas para mim é incabível, porque eu sou incabível. Talvez se apaixonem pela minha escrita, pelos meus textos, pelas minhas palavras digitadas. Mas só isso. É isso o que as garotas gostam em mim: não necessariamente eu, mas os textos, os contos e as crônicas satíricas de um alter-ego igualmente fodido. Isso me faz ser atraente, porque vocês estão à frente de uma tela de computador, lendo coisas que fazem de mim algo que são sou. É só o que sei fazer de bom, o que necessariamente não me torna bom. Vocês já conviveram comigo? Sou ridículo, interna e externamente.  Falo merdas demais. No início, eram apenas brincadeiras, mas o tempo ao lado da solidão, da vergonha e dos complexos internos transformaram-nas em personalidade. Tornaram-nas reais. Eu me tornei isto: um desonrado perdedor, medíocre, sem voz ativa, desengonçado, magricela – alá aidético – e provavelmente com poucos anos de vida, levando em consideração meu estado de saúde. Julgo que quem arriscar passar tempo comigo, além de burra, louca e inconsequente, perderia uma parte importante da própria vida, já que eu não valho a pena. Terminarei daqui a pouco, em qualquer UTI de um hospital com um plano de saúde bom que não me salvará das inconsequências de saúde. Isso, é claro – e novamente -, levando o fato de que, mesmo aceitando todos estes segundos fatores, ainda teria de enfrentar a parte de eu não ser um bom namorado. Saíramos apenas ao cinema, porque é a única merda de lugar da qual vou, salvo alguns puteiros de dez em dez meses.
Então eu friso: sou inviável, uma perda de tempo para qualquer louca hipotética que neste mundo se interessaria em mim. É preciso também reciprocidade para que este relacionamento impossível acontecesse e, sinceramente, a reciprocidade é o maior dos problemas iniciais. Eu sou uma perda de tempo, deixo claro aqui para que qualquer pessoa deste mundo saiba e conheça meu ponto de vista. Julgando que não tenho lá muito tempo de acordo com meu ritmo de vida, quero que este texto esteja claro no meu pós-morte. Acabar sozinho será bom, porque assim me afundaria com meus próprios demônios. E, acreditem, eles são muitos. Quase infinitos.

13 de junho de 2013

Harém #03 - Dois Segundos Para o Paraíso



Muck cobriu o rosto com o antebraço.
Os estilhaços de vidro voaram por todos os lados, rabiscando assinaturas vermelhas ao longo de sua pele. Ele continuou correndo, deixando tiros e explosões para atrás. O som de passos rápidos e treinados também se confundia com os tiros, além de todas as ordens de “capturem-no”.
Pelos becos da cidade, ele fugia como um exímio condenado. As pessoas, amedrontadas diante do poder e repressão da Fonte, sequer abriam as janelas para sanar a curiosidade. Bastava saber que os soldados estavam perseguindo outro idealizador que ia contra as doutrinas do exército. Se a Fonte estava contra alguém, então era melhor deixar passar longe.
Por corredores imundos e fétidos, sob a chuva fina da noite, Muck traçava caminhos variados na desesperada tentativa da fuga. Mas ele corria em uma direção única, já que a informação que obtinha na cabeça o movimentava como um animal. Era o mais perto que havia chegado em tantos anos e não deixaria a oportunidade passar em vão, estava perto o suficiente para desistir ou voltar atrás. Seguiria em frente com ou sem o exército da Fonte o perseguindo.
Eu vou ignorar. Eu preciso encontrá-la. Eu tenho.
Muck correu reto, mas logo avistou três soldados cercando o caminho. Ele tentou seguir para direita, à nordeste, mas também constatou que mais dois soldados o esperavam. Praguejou algo baixo e acelerou o ritmo à noroeste. Mantinha a cabeça abaixada devido ao intenso tiroteio que pipocava nas paredes ao seu lado; vez ou outra era acertado por minúsculos pedaços de concreto que eram arremessados contra seu rosto. Particularmente aquela noite, seu olho esverdeado mantinha um tom avermelhado, como se tivesse sido nocauteado por um punhado de areia. Ele quase lagrimava e - somente Muck sabia – ardia como brasa nas plantas dos pés, latejando uma dor insuportável por toda a região frontal da sua cabeça.
Era um sinal. Ela estava perto, mais perto do que esteve em anos. Totalmente próxima. Totalmente em perigo.  
Muck prosseguiu pelo único beco livre do exército da fonte. Ele correu, sentiu as pernas fraquejarem. O olho pulsou. Um tiro foi disparado atrás dele e, alguns segundos depois, uma intensa claridade explodiu ao seu lado. Tudo foi pelos ares. O rapaz sentiu o mundo girar. Frangalhos de sangue e paredes voaram pelo ar, concedendo aos seus ouvidos um instante de total ausência de som ou, no mínimo, um fraco e contínuo som agudo e forte. Muck caiu no chão após rodopiar dezenas de vezes. Ele rolou como se não tivesse peso, foi acometido por uma chuva de destroços. O sangue desceu da boca, um dente se partira; um corte brotava verticalmente da testa, derramando sangue e frustração.
Ele tentou se apoiar no chão, erguendo o tronco. A visão estava turva e embaçada. O olho verde já lagrimava tamanha era a dor na cabeça Estava baixo e vermelho, totalmente doentio e a um passo da possível cegueira. Mas Muck sabia... Era apenas um efeito colateral. Um sinal da dor que Ela estava sentindo. O rapaz bufou, ainda tonto. Sentiu que as pernas ainda estavam intactas, assim como o resto do corpo. Ele teve forças para levantar, embora com pouco equilíbrio. Levantou. Restabeleceu a coordenação, manteve-se de pé.
Foi quando ele viu.
A pequena casa estava na sua frente, isolada em uma rua larga – Muck não sabia como fora parar lá, talvez tivesse sido arremessado por muitos metros depois da explosão. Tinha traços simples, discretos e orientais, mas apenas um detalhe contrastava com toda sua simplicidade: enormes e chamativas letras em tom de vermelho, num anúncio em néon. O lugar parecia calmo e inabitado, as portas de madeira escura e roliças não eram protegidas por seguranças, mostrando que o recinto era livre a qualquer um. Mas não era a calmaria do lugar ou as características arquitetônicas que chamaram a atenção de Muck. Foram as letras. Possuía apenas cinco letras, formando uma única palavra derradeira e assustadora – pois o rapaz lembrava, já tinha sonhado com aquilo antes, o lugar já estivera em seus sonhos para atormentá-lo e assustá-lo.
Um selo vermelho e profundo, cravado nos mais profundos abismos que o tragavam em pesadelos, sempre que seu olho verdadeiro deitava para dormir e o olho verde fingia não existir. Matando Muck em sonhos, pesadelos e lembranças. Um carimbo em forma de néon, um aviso do inevitável. Estava lá, finalmente à sua frente, depois de incontáveis anos e vidas: Harém. Ele cambaleou, caminhando em direção à porta. Também levou a mão à cabeça, tapando o olho verde com a palma. Espremeu a ponta dos dedos sobre a pele, como se pudesse segurar a dor e expulsá-la. Continuava a latejar, pulsando ao galope de mil touros.
Trotou em direção à porta de madeira. Esticou a outra mão e, antes de tocar a entrada, ouviu passos atrás dele e dezenas de armas sendo engatilhadas. Muck parou, era o fim da linha. Não precisou girar o corpo para saber que estava cercado pelo exército da Fonte, já que bastaria um sinal ou um mínimo movimento para que os tiros fossem disparados. 
- Em nome da 39ª companhia de assalto do esquadrão da Fonte, você será conduzido à cela de enquadramento da 30ª central da cidade. – Uma voz mecânica anunciou, sobre um traje robótico, mas com movimentos humanos. As armas voltadas contra Muck emitiam sonoros guinchos crescentes, enquanto luzes eram acesas através de todos os seus dispositivos. À frente do canhão de disparo de cada uma delas, uma bola de energia vermelha crescia no ar, girando como uma esfera maciça de magma, nunca se solidificando, mas rotacionando e desprezando a força da gravidade, totalmente independente de qualquer mecanismo terceiro que a mantivesse flutuando. Era puramente uma bola mortífera de energia apontada para aquele transgressor da lei. – Renda-se agora. Repito: renda-se agora. Caso contrário, agiremos com contra sua vontade.
Pouco a pouco, Muck regulou a euforia e recuperou-se da dor que a explosão o acometera ao lança-lo por metros. Respirava devagar, cauteloso, ciente da ameaça que estava às costas. Atrás dele, meia lua de soldados da Fonte formava-se na ofensiva. Uma das mãos estava levantada, enquanto a outra ainda segurava o olho dolorido, comprimindo a pele como se tal ato fosse capaz de eliminar a tortura.
- Achei que já estivessem agindo contra minha vontade. – Respondeu entredentes, sem ironias, sem joguinhos, pois daquelas artimanhas, Muck pouco era formidável.
- Renda-se agora. Repito: renda-se agora. – A voz mecânica voltou a pronunciar as palavras. Sob os trajes metálicos variando entre o negro e o vermelho, ele pouco saberia dizer se os controladores de fato eram humanos, máquinas, algo entre os dois ou alguém muito além de qualquer compreensão mundana. - Em nome da 39ª companhia de assalto do esquadrão da Fonte, você será conduzido à cela de enquadramento da 30ª central da cidade. Renda-se agora. Renda-se agora, repito...
A voz continuou, mas Muck pouco escutou. Dentro dele, algo ardia por respostas. A insatisfação pela situação, além da dor neural que acometia o olho direito (o falso), faziam-no eliminar quaisquer ameaças externas. Ele precisava cruzar as portas do recinto, pois as letras atrás dele, no alto e em tons de néon avisavam, num escarlate massacrante e derradeiro, que aquele era o lugar que há décadas povoara seus pesadelos mais insanos e sangrentos - as memórias da Terceira Criança. O quer que aquelas bolas avermelhadas de energia significassem, não iriam mais impedir o homem de seu objetivo. Ele iria até o fim, custe o que custasse.
- Agiremos contra você! Repito. Agiremos contra...
- Sinto muito.
Muck inclinou-se para frente num impulso e começou a correr, ciente de que colocava a própria existência em risco. A dor, afinal, o impulsionava, pois fazia-o sentir-se vivo, como nunca antes de sentira em muito tempo. Famílias inteiras decaíram, vidas completas se fizeram, se perderam, valeram a pena, construíram a história, morreram e sacrificaram-se no período em que aquele homem pairou no limbo da perene inexistência. Ele presenciou a própria ausência de liberdade e emoções enquanto uma sociedade ruía e se levantava. Ele presenciou mais do que desejara, procurou, cruzou os três cantos do solo onde residia, passara tempo demais nesse cruel e sádico limbo. E por isso a dor importava tanto: era o único sinal evidente de presença próxima. A Terceira Criança. E portanto, ele não esperaria mais. Nenhum minuto sequer.
Mais avisos mecânicos e robóticos explodiram atrás dele quando, finalmente, as ameaças tornaram-se, efetivamente, prática de ação. As pequenas esferas de energia evoluíram, ganharam rotações mais intensas e repetitivas, pequenos feixes de luz surgiram ao redor de seu núcleo central, ganharam volume e brilho e, em não mais de quinze segundos, já possuíam o tamanho de um crânio inteiro, explodindo em raios de emanações energéticas que levantavam poeira do chão e afastavam pedaços de lixo e papel. Numa ordem rápida e direta, as armas de todos aqueles soldados dispararam, todas na direção do homem que corria às portas do Harém, estremecendo o chão ao seu caminho em pequenas a médias vibrações que formaram pequenas – quase desprezíveis ­– fissuras sobre o asfalto.
Muck apressou a corrida, mas pelo clarão que se formara atrás dele explodindo por toda a escuridão da noite, ele sabia que talvez fosse tarde ou inútil continuar aquela vã e suicida missão. Sabia que não chegaria tão perto, que tampouco cruzaria aquelas portas. Esticou ambas as mãos na falha tentativa de alcança-las e, quando o fez, o olho esverdeado agora não passava de uma grotesca abertura avermelhada, quase roxa, expelindo fios de sangue. A região na qual ficava a abertura ocular estava inchada, exigindo que a pressão interna se expandisse e libertasse o que quer que houvesse lá dentro. Muck não tinha noção da situação em que se encontrava, mas caso visse a própria imagem, se assustaria e talvez (só talvez) cogitasse a opção de dar meia volta e se afastar. Apesar de todo o grotesco aspecto, e por mais que escolhesse desistir de sua missão, o homem já não tinha escolha, pois as imensas esferas de energia já se aproximavam de suas costas num ângulo convergente que eliminaria sua existência como num passe de mágicas. As luzes se aproximaram, ganharam velocidade, rasgaram o asfalto abaixo delas e alcançaram o homem.
Era o fim.
Colidiram umas nas outras, criando um campo de energia que varreu a fachada do recinto e abriu uma enorme cratera esférica no chão. Não houve ruídos, não houve explosões, apenas a queima de toda a matéria existente no campo de ação daquelas esferas, eliminando quaisquer tipos de vida que residissem ali. Muck não saberia, mas o que tornava as esferas tão agressivas era seu nível de destruição atômico e celular, que não deixava rastros para trás, convertendo e transformando toda a matéria macroscópica e microscópica em pura e simplesmente energias térmica, elétrica e radiante (que por sua vez ecoou em forma de raios mínimos e invisíveis ao olho humano).
Os soldados se aproximaram, examinando o local e constatando que de Muck absolutamente nada sobrara. Ele fora dissipado, exatamente conforme as intenções do ataque do batalhão da Fonte. O inimigo fora retaliado, o relatório seria entregue aos superiores e o caso seria tratado como mais uma rebelião de um único manifestante insatisfeito às formas do novo governo. A chuva continuou a cair fina, enquanto um por um os soldados se retiravam, sumindo na escuridão dos becos que antes brotaram.
Do espetáculo dantesco que suas armas geraram, eles mal sabiam que um milésimo de segundo antes das tão nocivas esferas energéticas atingirem o homem, um milagre científico e metafísico ocorrera, retirando todo o corpo e consciência daquela criatura que se auto intitulava Muck. Com ou sem explicações, variando ou não da definição de “milagre”, Muck fora retirado dali para ser expelido a centenas de milhas de distância, no alto de uma colina que ostentava no topo de um penhasco um monstruoso farol entrecortado por listras brancas e vermelhas, tão apagadas quanto o amor de um velho casal sem interesses. A chuva lá, ao contrário da cidade, caía tão forte como a ira de um Deus esquecido, riscando e acendendo relâmpagos temíveis a cada intervalo de quinze segundos. O chão tremia, os trovões varreriam as pulsações de coragem de qualquer homem que se aventurasse por ali em tal momento.
Sob uma tempestade dantesca e um farol morto, Muck caíra de joelhos, com as mãos na grama, agarradas e incrédulas, desejando que o solo que tocava fosse as portas que antes estavam à sua frente. Ele levantou o rosto, um segundo depois de ter todos seus pontos de referências mudados e a dúvida o tomado. Agora, no entanto, começava a concluir o que acontecera. Diante dele, um menino com rosto de menina, olhava-o com olhos femininos em tons masculinos. Os cabelos enrolados e negros caíam inocentes sobre as orelhas, enquanto a pele negra era salpicada pelo jorro de gotas de chuva que caíam furiosas. A ventania forte abalava o ponto de equilíbrio do homem, que precisou se segurar no chão quando ajeitou-se sobre os joelhos, mas a criança pouco parecia abalada. Ela estava de pé numa sincronia assustadora, não se deixando abalar pelos raios ou pelo vento. Apenas o observava, com a flauta na mão, pousada ao lado das coxas finas. Os sapatos negros estavam afundados numa pequena poça de lama, mas Muck não tinha certeza se de fato estavam sujos ou não.
Com o rosto erguido, o homem ameaçou um protesto, tremeu sobre os próprios pés, mas não ergueu a coluna, tampouco retirou as mãos do chão. Ainda temia ser levado pela força da natureza. Em meio à barulhenta tempestade, ele só pôde gritar, e o fez com todo o ímpeto:
- Por que me tirou de lá? Eu estava a um passo de encontrá-la! Por que fez isso?
Como quem observa o ritmo de uma formiga a caminhar, a criança apenas o fitava com olhos inexpressivos e deduções indecifráveis. Ela nada falava, talvez não tivesse voz, ou talvez por muito saber, pouco pronunciasse. E exatamente como Muck esperava, ele não obteve respostas diante de seus questionamentos. Por isso continuou a gritar e berrar, sem se dar conta, durante toda a cólera, que a dor na cabeça sumira e o máximo que restara na deformidade de seu rosto anguloso e ossudo, fora os rastros de sangue que agora se perdiam devido à água da chuva. Como toda a criança ingrata, Muck só reclamava quando o certo seria agradecer.
- Por que não fala nada? Eu estava a um passo de alcançá-la, eu estava tão próximo... tão...
Apesar do tom, ainda era enérgico, cheio de raiva e revolta. Entre os estrondos dos raios, sua voz soava como uma sinfonia complementar, encaixando-se perfeitamente naquela tempestade temperamental e passageira. Permaneceu, assim, a gritar por longos minutos, pressionando a grama entre os dedos no secreto desejo que elas fossem o colarinho da criança, para sacudi-la e arrancar uma resposta direta e sincera. Era o que Muck queria por ter chegado tão perto dela. Mais um segundo. Mais dois segundos. Então estaria lá dentro, próximo ao seu paraíso.
Num gesto cômico, porém sério, a criança usou a flauta para atacar Muck, dando uma pancada no topo de sua cabeça e pegando-o de surpresa. A atitude não foi em todo agressiva, a criança não usou força, tampouco tentou utilizá-la, mas ficou óbvio sua motivação e isso fez com que o homem se calasse no mesmo instante, com os olhos extremamente projetados à frente e injetados de surpresa e descrença. A tempestade cessou com os estrondos. O céu permaneceu escuro, os relâmpagos continuaram a clarear o horizonte, mas apenas o toque das gotas de chuva acolhia o ambiente. Literalmente, o mundo inteiro entrou num silêncio súbito e prolongado após a inesperada atitude do menino, que fitou Muck com a mesma imparcialidade que um deus supremo observa um humano a se coçar.
O bracinho ainda estava esticado, segurando a flauta na ponta e enterrando a outra extremidade entre os negros cabelos de Muck. Ela piscava com demasiada calma, respondendo assim, talvez, todos os questionamentos que o homem a fizera. Soava como um mestre oriental ensinando seu aprendiz a arte da paciência, e que ela, muitas vezes, era regada e fortalecida ao silêncio e à compreensão profunda de determinadas escolhas e atitudes.
Quando retirou a flauta, a criança apenas girou sobre os pezinhos e deu as costas ao homem de joelhos. Automaticamente, o som da tempestade voltou, repleto com seus relâmpagos e trovões. A ventania diminuiu, fazendo com Muck percebesse que já não era necessário se prender ao chão em busca de equilíbrio, no entanto, em momento algum perante a criança ele ousou se mover. Observou-a, com a visão periférica, afastar-se ao topo do penhasco e entrar no farol por uma portinhola simples e quase camuflada pela tintura vermelha. A porta rangeu, ecoou seu ruído através da chuva e fechou-se, abandonando a agora amena tempestade juntamente com seu indireto aprendiz.
Muck perceberia só mais tarde o tamanho de seu erro, quando viria a perceber que o olho falso já não mais ardia, nem tampouco oferecia riscos brutais. Talvez agora estivesse morto pelos soldados da Fonte, não fosse a intervenção metafísica da criança. Quando a tempestade desaparecesse, Muck chegaria a todas estas conclusões, mas naquele instante, o que corria por seu ímpeto interno era apenas o quão perto chegara da Terceira Criança e o quanto por pouco não a alcançou.
Enquanto chovia, Muck permaneceu de cabeça baixa, analisando, pesando e conformando-se com seus erros e atitudes impulsivas. Em momento algum ele ergueu a cabeça ou moveu-se. Permaneceu assim por um longo tempo, enquanto alcançava a compreensão que a criança queria que ele alcançasse.
Enquanto a chuva não cessasse, Muck não estaria livre de sua penitência.
Continuou a chover naquele penhasco que ostentava o velho e insuficiente farol.
Choveu por muito, muito tempo.

Choveu por dias.