23 de setembro de 2013

Manual



Não me foi concedido um manual com este tipo de sobrevivência. As páginas dele, afirmo, me são ainda totalmente estranhas. Não sou apto a amolar esta lâmina para caçar, não sei manobrar o bambu, não aprendi a construir um abrigo; me falta alimento, minha barriga dói tanto quanto meu peito, talvez seja a mesma dor se apoderando de outras áreas. Tenho fome. A fogueira é a pior parte: não há em mim o combustível necessário, não faço a mínima ideia de como mover esta palha ou girar a madeira, atritar, esquentar - eu não sei. É um manual inexistente que me foi dado, e me enrolo nas roupas antigas, procuro abrigo durante à noite, sinto o frio da solidão, a iminência do afastamento. Eu tenho medo, eu choro e não ligo para o que os deuses antigos que me observam pensarão sobre. Sou apenas um menino perdido e inconsolado dentro de mim mesmo, que não sabe sobreviver a este antigo desastre. O que me resta são fotos e sons que retumbam na mente, memórias de uma voz e de uma época antiga. O que me resta é isso, durante uma noite escura e profunda sem estrelas lá em cima, com um milhão de demônios e lobos a me espreitar como próxima refeição. Estou cedendo, pouco a pouco, confesso. Deixarei que eles me consumam, me devorem, estuprem minha dignidade da alma, caráter e orgulho são agora coisas enfadonhas, sem sentido, sem valor, tão perdidas quanto eu por inteiro. Não me foi concedido um manual de sobrevivência. Não sei o que faço, não sei o que ando fazendo – há muito, muito tempo.

17 de setembro de 2013

Chupadores



Eu poderia ser encaixotador, carregador, ajudante de auxiliar. Eu poderia ser qualquer coisa e ainda assim voltaria até aqui”. Recebi um olhar de desprezo, típico de chupadores de merda que adoram parecer superiores, mas que estão na mesma merda que você – ou até pior, ao menos eu uso a porra do meu cérebro. Olharam-me desconfiados, sem sequer entender minhas palavras, digo, não o seu significado superficial, mas o profundo. “E como tu vais ganhar dinheiro?”. Isso é um emprego! Não entra na cabeça de ninguém? Quis responder algo mais baixo, quis até responder isso, mas não coube ao meu cansaço, eu estava fraco demais para discutir a mesma conversa depois de tantos anos repetindo, repetindo e repetindo. Por isso retruquei “é um emprego, têm-se um contrato, ganha-se por isso. Você trabalha diariamente, cumpre um prazo e entrega o material”. É tão difícil assim entender? Só estou tornando meu ofício de sempre um “ofício oficial”. De um jeito ou de outro, os chupadores de merda continuaram com aquele olhar de superioridade, dando palpites sobre a parte da minha vida que eles nem sequer tinham se esforçado a chegar. Deixem-me. Eis a minha profissão, só estou agindo conforme aquele ideal que vocês tanto adoram dizer com frescura e idealização: siga seus sonhos. Eu estou seguindo os meus, ou tentando, não estou parando, apesar de todo o pessimismo. “Ao final do dia, eu ainda sento aqui e escrevo alguma coisa, jogo diante do mundo ou engaveto para o futuro, estou fazendo a minha parte, e vocês, chupadores de merda”? Eu quis tanto dizer isso, mas balancei os ombros e deixei que se fodessem com suas certezas falhas e cheias de críticas. Não fazem nada além de um blá blá blá longo e interminável, perdem suas vidas com palavras inúteis, perdem-se no tempo, em seus quartos, nas janelas observando os vizinhos e julgando-se superiores. Pois bem. Então irei trabalhar com o que gosto de fazer, e um dia, quem sabe, eu até escreva um livro cheio de merdas filosóficas, porém profundamente coerentes. E aí vou querer vê-los chupando pelo menos isso. Vão continuar falando, mas aí eu já estarei lá, e vocês... É, vocês continuarão onde estão. Chupando, chupando e chupando... Sempre as mesmas bostas.

10 de setembro de 2013

A menina era de Deus



Pairava ali algo inegável, uma oportunidade boa e saudável do envolvimento iminente. Ela tinha um olhar intenso, vivo de simplicidade e beleza, tão profundo e superficialmente enigmático. Era uma piscina dúbia de atração e tranquilidade, ah, aqueles olhos. Mas a menina era de Deus. Emanava Deus na maioria das palavras, embora mostrasse o mesmo respeito que um homem profundamente sábio entre as farpas de dois extremistas. Sim. Ela exalava Deus e respeito, mas, ainda assim, o pertencia de corpo e alma – e mente, diga-se de passagem. Eis o entrave secular para este tão mísero bobo que a admirava: no menino havia a contestação dos cientistas e o humor dos kamikazes. Perca o amigo, mas jamais perca a piada. Deus era piada, Jesus era piada, religião era piada. Ele emanava piadas do mesmo modo que ela, respeitosamente, emanava o ser divino venerado pelos mais bob... Pelos mais devotos, quero dizer. Entrave histórico, entrave filosófico... Entrave de caráter. Ele não jogaria fora a própria descrença para se dobrar diante de alguém tão santo com excesso de crença. Orgulho? Talvez. Residia mais no respeito por ela. No fim, talvez não quisesse se envolver para não magoá-la com suas piadinhas infames e banhadas de blasfêmia. É, talvez nem fosse pelo orgulho e temor de se corromper à fé, mas sim ao sacrifício de não magoá-la, ao sacrifício de não ofender o que ela acreditava. Essa era sua forma de respeito, essa era sua forma – quem sabe deturpada – de caráter. Como um homem santo que joga fora sua própria vida em nome daqueles que tanto o julgariam, ele até aprendia lentamente com isso a venerar o rei dos Judeus, que em seus dias vindouros pôs o próprio cu na reta pelos pecadores que o depreciavam. Sacrificava a própria – provável – felicidade para não machuca-la com trocadilhos secos e inteligentes.
Tão lindo, tão belo, tão divino - pena que a menina era de Deus.


9 de setembro de 2013

Queria foder



Ele pegou um cigarro do bolso e acendeu. Abriu a lata de cerveja e bebeu. Sentou-se em um banco qualquer, num lugar da cidade qualquer que tivesse árvores e ar mais sereno. Fumou e bebeu. Ele queria outras coisas, queria sair dali, estar em outro lugar e em outra vida, bebendo outro tipo de bebida e não fumando. Mas era a realidade. Não usava aquelas porcarias por rebeldia ou para representar o quão derrotado estava. Há um momento na vida que você apenas se sente compelido a realizar tais atividades, e vinha sendo seu eterno momento há anos. Uma mulher, com sua boceta amável e sorriso nos lábios pode, de todas as maneiras, foder com o cara do jeito mais cruel que se possa imaginar. Homens também o fazem com seu palavreado e paus sedentos por gozo. Seres humanos fazem isso frequentemente, sejam homens ou mulheres. E ele pensava exatamente isso: não há estatísticas sobre quem é mais ou menos infiel, devasso ou mentiroso. Eram todos os mesmos. Sempre há um predador e uma presa. Ou predadora e presa. Então ele bebia e fumava. Faltava foder, mas o salário tinha terminado e o auxilio bancário da tia também. Sim, ele até poderia foder, mas estava sem grana para procurar sua garota preferida – ela o amava como qualquer outra, por um bom preço, ele recebia todo o amor do mundo por uma noite inteira. Mas estava sem grana, então fumava e bebia. Estava fodido, pensando em outra vida, outro sonho, um nome diferente. Cogitava as chances de comprar uma arma com o próximo salário, cogitava finalmente ter coragem para finalizar o plano – era só um plano, é, um bem distante, como um plano D, caso as coisas viessem a dar tão errado. Por isso ele fumou e bebeu. Terminou a latinha em menos de seis minutos, já era a terceira ou quarta... Não, talvez a quinta, que se foda. As coisas andavam ruins, independente do número de álcool no sangue. Amassou a bituca no banco e jogou na lixeira ao lado. Tirou outro cigarro do bolso. Havia gastado os últimos trocados nas latinhas e na carteira. Bebeu. Fumou. Queria foder, mas simplesmente foder não aliviava o que realmente o atormentava. As coisas geralmente são assim.
Bebeu. Fumou.

8 de setembro de 2013

Além



Ele queria desistir. Diziam pra ele desistir. “Isso aí não vale de porra nenhuma” ele ouvia a cada desafio e se sentia ofendido. Mas isso só lhe dava mais força. A cada queda, usava o próprio chão pra se reerguer. Seu pai dizia “calma... depois piora”, “pior é na guerra... ainda tem bala” mas as ironias paternas já não faziam mais efeito sobre sua cabeça. Já não era mais aquele garoto que tinha saído de sua cidade. Não que já fosse um homem feito, mas já tinha amadurecido muito em todos os aspectos.
A vida já cobrou alguma coisa dele, menos do que ela cobrou de muita gente, ele sabia. Mas não tinha com quem compartilhar a sua dor. Nunca teve. Nunca quis ter. Como dizia a letra daquele RAP que gosta tanto: “Desde pivete tenho amigos, mas me sinto sozinho/ meus problemas são meus, vou resolver sozinho” ou do outro que tanto ouve “colegas, eu tenho vinte; amigos eu tenho seis; que vejo sempre, só quatro; que posso contar, só três”. Não tinha mais nenhum. Não desmerecendo os que o acompanhavam. Jamais. Porém tem muita coisa que eles não fazem ideia que acontece, que ele pensa, deseja, desiste de.
Ele só quer que seu próximo sonho se realize, quer novas ares, novas pessoas, momentos. Não cria esperanças, mas expectativas. Se forem superadas, bom; se não, tenta-se até sentir-se bem, mas nunca satisfeito. Ele não busca fama, dinheiro... mulheres talvez... Ele só que o seu El Dorado, seu Graal, seu além do horizonte.

(T.S. Banha)

Você e o seu texto e o quão desgraçado você é



Fodido - juro por Deus que é a mais pura verdade e que as explicações me são necessárias tal como o ar que respiramos. Eu me achar o popular e melhor de todos? Não. Chamar a mim mesmo de lindo? É ironia, e farei questão de deixar claro. Há coisas que preciso explicar, coisas das quais não sou capaz de fazer e necessito acrescentar palavras como “se eu tivesse”, “se eu pudesse”, “se eu fizesse”, “se eu fosse”. Sempre um “se”, pois é ele o senhor da minha vida, bem como Deus é tudo na vida de um cristão – ao menos teoricamente. Não, eu não estou brincando quando me ridicularizo na frente dos outros; não são caprichos as piadas sobre meu fracasso; não é psicologia reversa quando ironizo o fato de eu ser incapaz. Eu sou, ponto final. “Quanto menos se acreditava na vida, menos se tinha a perder”, algum velho safado e divino escreveu isso certa vez, e quando li, há muito havia adotado tal estilo de vida.  Fiquei feliz por pensar igual a um humano moribundo já morto, porém que muitos idolatram e veneram através das páginas de suas obras. Fico feliz, a cada linha, por notar que penso igual ao solitário filósofo Fulano ou ao decadente escritor Ciclano. Faz bem. Significa que aonde quer que eu vá quando morrer, residirei ao lado desses vagabundos apreciadores da boa poesia, do ócio e da desgraça – a espiritual, a mental e a passional. Talvez seja a única vez em que fico verdadeiramente em paz e feliz, pois sei que no fundo não estarei sozinho. Que esse dia chegue – logo! –, já que, por enquanto, eu vou levando assim: sendo humilde, maldito e fodido, cuspindo blasfêmias contra Deus (o mesmo pelo qual jurei no início), minha própria pessoa e à hipocrisia que nos cerca.
Pois a vida não passa de uma grande ironia. E da minha, ha ha ha, só faço rir.


5 de setembro de 2013

Ficticium



Há duas escolhas: posso seguir em frente ou simplesmente parar. As duas me soam tentadoras, mas a primeira é sempre um estilo de vida. Há quem diga que meu mistério nem mistério é, a não ser o gosto pelo sofrimento e pela dor; há quem diga que tornou-se meu ideal, meu motor básico para tal combustão diária. E sendo estas palavras essencialmente metalinguísticas, ponho-me a pensar: “o que será dos 16, quando já imagino os 45?”. O que será de um futuro próximo, quando já vivo o futuro distante? E faço um milhão de perguntas ao meu senso mais racional, aquele que mora em um lugar profundo e distante desse meu “eu” babaca que vos interage diariamente. É hora de parar? Vale tanto a pena? Pergunto-me isso há tanto tempo sem nunca ter chegado a uma resposta, que agora sei que quem deve construir a solução sou eu. Mas, ora, é apenas uma vida literária e fictícia, que mal há de fazer à minha reputação? Trata-se apenas de um alter ego inegavelmente destruído. Igualmente destruído. Mas será essa destruição verdadeira? Será a exposição necessária? Eu deveria parar e assumir novas perspectivas? Há tempos ando me questionando, e presumo que por tempos assim continuarei. É como dizem: os questionamentos movem o mundo.