24 de setembro de 2014

Prédio verde



Eu é que nunca mais piso aí”, ele pensou.
Passou por debaixo daquele túnel de imensas e centenárias mangueiras com os pingos de chuva precipitando-se sobre telhados, galhos, numerosas folhas e seus próprios ombros. Foi aí que parou, absorto por memórias agora distantes dele por tantos anos que quase haviam se tornado pó no depósito de sua mente - quase. Alguém passou por ele com pressa, tentando fugir da chuva que se anunciava logo após o calor de mil graus que fizera na cidade, e agora, com o vento forte e o céu escuro, a avenida inteira se agasalhava como um cachorro amedrontado. Menos ele, ele não, ele ficou ali. Parado, quieto, com punhos cerrados e relembrando um par de olhos verdes que deixou escapar e um abraço ou outro que deveria ter se arriscado com mais coragem. Sabia, no entanto, que era quase sádico cobrar de um menino as atitudes de um homem, bem como todas as respostas que hoje tinha e que há tantos anos o faltavam. “Lugarzinho miserável de pessoas miseráveis, todos uns cagões, eu não ponho meus pés aí nunca mais”. Então um trovão estremeceu o céu e apressou os pingos de chuva, ele puxou um papel do bolso e encarou uma lista com seis itens – com exceção do último, todos estavam riscados.
Documentação do caralho.
Respirou fundo e atravessou a avenida. Malditos fossem todos os deuses e condutores do destino, ele praguejou, e antes que a chuva caísse, entrou no prédio verde – nem todo dia conseguia manter as próprias promessas.  


13 de setembro de 2014

Complexo de Lúcia



Agora eu lembro dos primeiros textos escritos e dos primeiros planos para tornar a semente em algo maior. Daí nasceu Lúcia, aquele broto que sinceramente nunca chegou a florescer de verdade, e nem precisou, morreu ali mesmo no buraco raso em que cavei com mãos rasas e unhas sujas. Lúcia morreu lá, não num depósito de nascimento, mas numa tumba artesanal, esquecida por tantos anos que ninguém além de mim há de lembrar. Lúcia tinha outro nome, como há de se presumir, um nome tão esquecido que é até engraçado lembrar isso agora. Lúcia era chamada T naquela época, antes que tempestades mais arrebatadoras e que se prolongam até hoje me atormentassem. Lúcia ali foi catacumbada, morta, esquecida, libertada da minha obsessão poética e real. E no entanto, um dia qualquer desses, um dia de frutífero planejamento meramente criacionista, Lúcia renasce, não como T, não como M, não como G, mas como obra própria, e sim como Lúcia propriamente dita, do mesmo modo que Maria nasceu sem ter existido ou sem ter se originado do derradeiro C. Lúcia é Lúcia assim como Maria é Maria. O problema é que o complexo de Lúcia e o complexo de Maria tendem a se inclinar em previsões completamente proféticas por obras irônicas do destino, no meu caso, a vida imita a minha arte, bem antes de minha arte passar para o papel, bem antes do mundo conhecer a arte da qual me refiro, quando ela reside apenas nos meus planejamentos pensativos e esboços perdidos em meio às matérias no caderno e nos blocos de nota que espalho pelo quarto.
O mais engraçado, em minhas conclusões introspectivas, é que os complexos de Lúcia e Maria têm o mesmo ímpeto trágico do complexo de Cassandra, aquele que é tão usado em obras fictícias de ciência e enredos mais fantásticos. Já as minhas ficções, com âmbitos mais realísticos, irônicos, sujos e relendo minha própria realidade, com casas cheias de lobos solitários e perdidos, embora não tão fantasiosas assim, insistem em imitar o complexo de Cassandra - e eu juro que lembrei de Cassandra no exato momento em que passei a escrever sobre ela neste texto. Nem isso eu planejei, e porém até aqui a vida profetiza, brinca e escarna.
É engraçado. É irônico.


6 de setembro de 2014

Deus



Finalmente eu posso entendê-lo, quando todo esse fluxo estranho escorre pelas minhas veias. Não que eu tenha sido o mais altivo dos homens, nunca o mais vencedor, nem de longe o mais perseverante e vitorioso, mas aqui, no meu trono magistral da solidão, eu finalmente posso entendê-lo.
É um poder inegável onde ninguém jamais haverá de me alcançar - por mais imundo que eu seja, por mais que técnicas bem refinadas me faltem. Eu finalmente posso entendê-lo, essa dádiva interna, o mover de dedos para criar mundos, desejos, amores e ódio, a raiva e a revolta, o ímpeto ordinário, a magnânima singularidade do bobo e do clichê, a ridicularização secular e o fruto noviço, a epifania titânica - tudo mera e imperceptivelmente resumido nesse Calendário Cósmico em que somos um instante na dobra da criação, uma virada de ponteiro no último segundo e minuto da hora final, no imenso e desconhecido passo para a nova era do amanhã. Sim, eu finalmente posso entendê-lo. Dando vida a criaturas inumanas e concedendo a morte a deuses indestrutíveis e outrora imortais. Aqui, nesse trono magistral da solidão, eu tudo posso por um breve momento de silêncio e plenitude. Sem canonizações, sem cultos, sem admiradores, sem memórias ecoando por futuros distantes – não. Tudo em um só momento, em um só instante, em um único sopro de vida - eu posso entendê-lo.
Eu posso ser Ele.