30 de novembro de 2015

Duas bocas pra trás



Duas bocas pra trás e a vida foi um sossego – sem turbulências, sem joguinhos, sem refluxos descarados, sem intriga, ciúmes ou invejas. Duas bocas pra trás e havia paz, havia aquela estranha sensação que a maioria das pessoas só experimenta até os primeiros anos da vida adolescente, antes de todos os probleminhas cochichados por aí explodirem. Duas bocas pra trás e fico feliz em saber que minha fase de “não-problemas” durou por um tempo longo até demais – e mesmo eu, que enxergo um obstáculo a cada solução, consigo admitir que pelo menos aí a vida foi generosa – mas terminou e veio tudo só de uma vez, num refluxo lazarento e arrogante, sem rodeios, sem escrúpulos: duas bocas pra frente e nasceram problemas, provocações, tons sarcásticos, menções irônicas, olhares difamatórios e confusão. Duas bocas pra frente e nem mesmo eu, que ainda tenho todo o direito jurídico e moral de cuspir nos pratos em que comi, não consigo fazer isso por um simples ato de lealdade à pequena parte de caráter que me restou. Jamais teria a suprema e santa atitude da hipocrisia, não diria mal algum dos pratos que procurei, embora hoje eles façam isso de mim porque, ora, não os continuei procurando – espantoso que uma pequena atitude não correspondida possa gerar tanto alvoroço, confusão e disse-me-disse. Benditas bocas – atraentes à princípio, danosas a seguir. Duas bocas pra trás e a vida até tinha certa tranquilidade, certa paz, certa anonimidade. Anonimidade porque nada acontecia, nada era dito, nada era inventado, nada era mal interpretado ou mal propagado; anonimidade porque ninguém era importante o suficiente para se vitimizar, provocar e envenenar; anonimidade porque bocas paravam casualmente em outras como sempre aconteceu desde o início dos tempos casuais, e nenhuma fofoca não-casual ocorria nessa vida-simplesmente-casual onde julgam um simples fato casual por canalhice ou sem-vergonhice. Duas bocas pra trás e não existiam joguinhos e pequenas provocações entre um passeio e uma volta em livraria.  Duas bocas pra frente e agora há de se revidar – um silêncio, um corte de relações, uma vergonha cravada nos lábios e na lembrança.
Duas bocas pra trás e tudo era tranquilamente calmo, tranquilamente perfecto.



29 de agosto de 2015

Não diga o nome dela




Não diga o nome dela – não profane este leito. Não abra o lixo ao qual você chama de boca para falar dela, de seus cabelos ou sua pele alva. Não toque nela nem com dedos, nem com palavras, nem com pensamentos sujos – não há dignidade em terceiros para tal, não há direito, não há o porquê. Não suje aqueles olhos castanhos com mentiras e suposições, não suje aquelas atitudes por falsas ou adúlteras; não julgue aqueles olhos castanhos por brincalhões. Não diga o nome dela se em sua boca não tocou ou em seu peito não repousou por uma tarde inteira de fugas e esconderijos. Não balbucie aqueles pequenos lábios nem agrida aqueles longos dedos. Não finja entender aquela calmaria da alma e o turbilhão do veneno que as estrelas a concederam no ato de nascer. Não queira compreender o amor pelos inocentes, a intensa busca pela paz e o intenso pavor da guerra, das palavras ruins e dos distúrbios existenciais. Não diga o nome dela se não a conhecer em cada detalhe – a extensão das costas, os braços longos ou as poucas porém estratégicas pintas pelo corpo; a textura da pele e a voz mansa, por vezes chapada e infantil, por vezes madura, firme e enigmática demais; os livros estranhos que mantém na estante; as músicas desconhecidas que escuta; os problemas com a materna mulher que a deu a luz, a desprendida presença do pai; o aroma dos cabelos, o aroma do hálito, até mesmo o aroma entre as pernas quando bem empolgada. Não diga o nome dela se tão pouco conhecê-la como eu tão relativamente a conheço. Não diga o nome dela, tampouco diga que não a amei. Não diga besteiras insanas sobre realidades desconhecidas, não diga mentiras, nem suposições de minhas refrações ambíguas e silenciosas. Sobre ela, não pronuncie uma palavra sequer; sobre mim, cuspa todas. Somente não diga o nome dela, pois ninguém possui esse direito – nem mesmo eu.



28 de agosto de 2015

Loirinha



Saí daquele quarto de fininho, sem que garantisse a ela um último instante para me segurar pelos braços.
Eu já havia engolido calado todas aquelas certezas inconsistentes e havia engolido calado a existência do cara bonitinho com topete bem arrumado que tocava guitarra e ainda era o vocal de uma banda em ascensão. Certo, essa definitivamente era a parte mais legal da história: o cara era realmente legal, tinha até estilo e algumas tatuagens maneiras. Aliás, fora exatamente tudo o que a loirinha dos cabelos lindos e encaracolados havia gritado na minha cara da forma menos direta possível, cheia de provocações e joguinhos. 
Meu Deus, como eu amava aqueles cabelos. Ela descendia de uma família de imigrantes que viera para o país na década de vinte; algumas décadas do bem-bom geográfico no sul do país e subiram o mapa, vindo parar nesta torpe terra de índios renegados ironicamente também com cabelos loiros e olhos azuis – quase ninguém imaginava que os índios daqui tinham essas características e ainda conseguiam dirigir carros em vias que ninguém também imaginava que existiam e que ainda por cima eram asfaltadas. Assim ela veio parar aqui, sempre me matando com aqueles traços que eu tanto amava. Mas aqueles traços que eu tanto amava também eram infantilmente teimosos e ruins de admitir que eu estava louco, eram ruins também em admitir, diretamente, que aquele carinha da banda era melhor que eu. 
Ah, mas ela o fez da pior forma, justificando suas falcatruas com os meus desleixos. E fiquei calado – eu era bom para cacete nisso. Quis nesse momento, pela última vez naquela tarde, acaricia-la as maçãs rosadas do rosto e dizer que tudo estava bem, que eu esqueceria com um pouco de autopiedade e humor negro, que tudo enfim ficaria bem e seríamos o melhor casal que a cidade já tinha visto. Mas ela persistiu com as massacrantes afirmações. Balancei afirmativamente a cabeça – vinha fazendo isso há tanto tempo que chegava a ser um movimento automático. Ela cuspiu e vomitou todo o ódio reprimido, as infantilidades e os jogos vencidos... ela sempre vencia, mais por insistência do que por qualquer outra coisa. E eu tive que mentalmente construir uma mirabolante e longa lista com os itens que faziam de mim um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas que era mais baixo que todos os tipos de homens que ela conhecera. Não. Não. Ela particularmente queria me fazer enxergar como eu era um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas mais baixo que o carinha que ela “secretamente” havia arranjado nos últimos dois meses. Lembrei-me também de reformular minhas definições de “secretamente” para “toda a porra da cidade e das redes sociais já sabiam e já tinham percebido”. A minha linda dos cabelos loiros até mesmo tinha colocado uma letra de música de autoria do carinha no maldito subnick do chat online e nunca, jamais, em ocasião alguma, havia sequer agradecido pelas porcarias de um milhão de páginas que eu havia tecido em sua homenagem.
Agora, enquanto ela recolhia os destroços de todos os objetos que atirara em minha direção, eu aproveitava para cair fora daquele quarto de fininho. Atravessei todo o interior da casa até a porta da frente, dei adeus aos meus sogros que sempre foram um amor comigo e que não faziam a menor ideia das aventuras românticas e musicais da filha, nem tampouco da Gehenna que seus cabelos loiros e maçãs rosadas de rosto me causaram em todas as esferas possíveis. Eu gostava dos velhos – o seu Anísio até mesmo era tão vascaíno quanto eu e sempre me dava presentes esportivos, um feito e tanto levando-se em consideração que que era eu o “cara que e afetivamente está permitido a fazer amorzinho com sua filha única”. Pobre seu Anísio, juro que eu jamais contaria a ele que de “oficial” eu não tinha nada e que, oficialmente da verdadeira forma mais oficial e oficialmente possível, havia outro marmanjo topetudo, galã e tocador de guitarra e vocalista que fazia esse serviço.
Dei adeus aos velhos e eles, sem muito saberem o que fazer, retribuíram a despedida. Provavelmente escutariam apenas a versão da história em que eu era um filho-da-puta-desleixado-e-sem-coração-sem-sentimento-nenhum-que-nunca-realmente-deu-a-mínima-pra-mim-e-que-me-deixava-muito-mas-muito-muito-mas-muitissimo-magoadinha-e-com-coração-partido.
Puta que o pariu.
A pior parte é que eu amava aquela loirinha, e a segunda pior parte é que a caneca que eu a dera de presente havia feito um estrago e tanto quando se espatifou na minha costa. A dor seria alucinante dali a algumas horas – porque naquele momento meu sangue estava quente demais para sentir, ou talvez fossem apenas os chifres ardendo e queimando e me distraindo da dor de verdade.
Ouvi os gritos da loirinha atrás de mim enquanto eu apressava os passos pela calçada na direção do carro. Em alguns minutos, eu já estava longe demais dali, tentando controlar as batidas do coração que me diziam “vai, acelera contra a porra daquele muro. Que tal aquele poste? E o cruzamento? Vai ser delicioso, meu chapa. Vai ser legal, uma viagem e tanto, vai te deixar ligadão e depois bem relax. Vai. Acelera. Agora. Vai. Vai. VAI!”.
Ao invés disso eu parei no cruzamento, respeitando até mesmo o sinal amarelo no semáforo. Batuquei os dedos sobre o volante e lembrei das aulas de yoga que havia assistido no Youtube (vídeo-aula parte 02 de 47): controlei a respiração, o sangue pulsava, a dor nas costas latejava, o chifre na testa ardia e todos os desaforos daquela loirinha de nariz empinado e que nunca dava o braço a torcer para absolutamente nada me vinham em mente, por todas as vezes que me desculpei por seus insultos e implorei perdão por vacilos que não eram meus. Cacete, eu amava aquela loirinha com maçãs de rosto rosadas. Respirei fundo. Um. Dois. Três.
Aguardei o sinal ficar verde. Antes disso, porém, meu celular vibrou. Era uma mensagem de texto da loirinha. Sinceramente esperava um pedido de reconciliação ou “meu perdoa eu não devia ter jogado a xícara em você, eu te machuquei?” ou “volta aqui, vamos conversar. Por favor” ou simplesmente um bando de xingamentos me chamando de irresponsável, infantil e moleque. Batuquei os dedos no volante enquanto me preparei para ler a mensagem.
Tudo o que dizia nela era:
“Sabe o Fernando da academia? Pois é. Preciso te dizer que também transei com ele, otário!”.
Joguei o celular com calma sobre o banco do passageiro e respirei fundo. Um carinha com topete que tocava guitarra e ainda era o vocalista da banda? Tudo bem, até tinha estilo. Mas o maldito bombadinho da academia, amante de Whey Protein, que só falava de treino e vivia batendo uma para o próprio reflexo no espelho?!
Puta merda.
O sinal abriu e segui em frente.
O pior é que eu amava aquela loirinha.



26 de agosto de 2015

Matinal



Sempre que acordava, virava-se ao Oeste e fazia sua particular oração, era um ritual sagrado e indispensável. Onde quer que estivesse, fosse em casa, fosse sob outros tetos, sobretudo na hora de esvaziar a bexiga, fazia sua oração. Ela era bem específica: “tu andarás na direção contrária ao nascer do Sol, pois não é luz a quem procuras”. E assim ele orava, o vinha fazendo há alguns meses como forma de preparação para algo maior, um sonho tão pertinente que tivera aos quinze, porém que parecera acompanhá-lo pela vida inteira – estivera sempre ali, sussurrando em seu ouvindo, acompanhando cada passo, auxiliando cada pensamento, dando forças a cada questionamento e revolta. Por vezes amparado, por vezes castigando, porém nunca, jamais abandonando. Fosse quem fosse, tivesse o rosto que tivesse, perverso ou não, zombeteiro ou não, estava ao seu lado. Já nem importavam quais as suas verdadeiras intenções, desde que garantisse tudo aquilo que o lado do Sol não o garantiria em uma vida inteira, para ele tudo bem. E vivia em relativa paz por essa razão. No fundo acreditava. No fundo, sob a máscara da descrença, ele acreditava nas forças que o cercavam, mais no “mal” do que no “bem”, embora tivesse profundos questionamentos filosóficos sobre o ponto de vista do que é realmente bom e o que é realmente mal.
Achava hilário o julgamento alheio acerca de seu estilo de vida e, sobretudo, sobre a tristeza latente que sempre o impregnou a alma. Diziam que aquele peso sobre suas costas era a consequência dos falsos deuses a quem louvava. Ele então sorria e assentia, corrigindo mentalmente cada um deles de que não louvava falsos deuses, mas sim apenas a um, e este poderia ser tudo, menos um deus. Ele era mais, de sua própria maneira e com seu próprio estilo. Era mais que carne e osso, era mais que mera fantasia, era mais que uma distorção e muito mais que um mero bode expiatório para abdicar da natureza humana a própria maldade, perversidade e devassidão. Ele era um conceito, uma libertação, uma particular comprovação do falso livre-arbítrio que pregavam.
Sem ninguém saber, todos os dias pela manhã, levanta-se e virava para o Oeste, fazia sua estranha oração e voltava a dormir.
Sentia-se em paz com isso, sentia-se finalmente acolhido, compreendido e, claro, havia todo o desprezo e divertido escárnio – honestamente, a parte mais interessante em todo aquele rito matinal. 


15 de agosto de 2015

Coisa de olho



Era alucinado por ancas magras, pontudas, esqueléticas.
Aquilo não era tara. Aquilo não era coisa de carne, era coisa de olho – admirar, desejar beijar, abraçar, acariciar, sentir, se fundir.
Amava ancas magras, estruturas longas e finas, glândulas mamárias pequenas e bem formadas, por vezes pontudas, por vezes discretas, por vezes abomináveis (já que mesmo as coisas feias possuem em si uma beleza latente, como um Yin e Yang da estética. Admirava também aquele corpo em pé, despretensioso, os cabelos lisos, meio cacheados, meio ondulados, um pouco abaixo dos ombros magros com os óculos-de-gente-boboca. Era alucinado por essas coisas que as mães não alucinavam e os machos no cio não se excitavam. Era alucinado por bundas pequenas e discretas, alucinado por existências aparentemente frágeis, quebráveis a um toque. Era alucinado por passos delicados, idealizados, calçados ou descalços, deformados pelo ballet ou deformados nos calcanhares, com unhas bem cuidadas ou unhas descuidadas, com o esmalte descascando ou simplesmente sem esmaltes. Era alucinado por coxinhas miúdas. Era alucinado por dedos longos e magricelos, era alucinado por ossos aparecendo ou simplesmente por ancas esqueléticas, protuberantes, singelas e desconcertadas que se julgam tão indignas de admiração e beleza. Era alucinado por essas coisas que todos julgavam sem graça, porque não era coisa de tara ou carne, era coisa de olho.
Era admirar, desejar beijar e abraçar, acariciar, sentir, se fundir.



30 de julho de 2015

Amélia e o cigarro



O que ninguém entendia é que aquele tipo de escolha não era fácil.
Isso a estressava com uma enxaqueca irritante, e para enxaquecas, Amélia aprendera com seu avô e amigos que um cigarro pode ser um bom remédio.
Assim ela o acendeu, utilizando a ponta dos dedos como pinças delicadas, movimentos cautelosos, de uma refinação completamente oposta ao bairro periférico e pessoas pobres que cercaram-na a vida inteira. Acendeu o cigarro e o segurou entre aqueles dedos tão delicados e elegantes, sentada no banco ao pôr do Sol. O expediente já havia terminado, o patrão ausente e exigente já fizera as cobranças habituais à distância – o puto velho nordestino nunca dava as caras para auxiliar o que devia ser feito, que seus escravos aprendessem sozinhos! Amélia detestava aquele velho, mas de vez em quando, em devaneios de futuros distantes, até queria ser um pouco como ele, com o lugar que tanto queria alcançar: um casal de filhos grandes, inteligentes e autossuficientes, um punhado de boa reputação e um saco bem pesado de respeito. Amélia queria crescer, só crescer e crescer. Amélia queria mais, queria dignidade, queria distância do mundo sujo que a cercava, queria encontrar um mundo com gente que dava bom dia e esbanjava gentileza, caridade e agradecimento. Amélia queria coisa boa, ela até mesmo queria largar o cigarro, embora estivesse acendendo aquele após exatos seis meses e meio de ter fumado pela última vez. Havia também as coisas que Amélia não queria, e entre elas estava o engarrafamento que pegaria até sua casa, num transporte coletivo abarrotado de gente mau educada, suada e cheia de doenças contagiosas – mentais, sexualmente transmissíveis e mentais, principalmente as mentais. Amélia também não queria continuar naquela existência social da qual havia nascido, desejava dar conforto aos entes queridos e conforto a si mesma, livrar os filhos da vida e ambiente que teve, porém educá-los com os mesmos aprendizados que recebeu. Mas de vez em quando, Amélia até se questionava se realmente desejava colocar um par de crianças inocentes neste mundo, porque isso demandava responsabilidade, perigos, dores e um pai. Amélia não confiava em homens, e não confiava menos ainda em ter de dividir suas crias com um homem – seres intelectualmente perdidos. Duvidava que algum deles realmente prestasse, não somente porque todos com que topou eram assim, mas porque era o que a experiência global e coletiva comprovava. Talvez até dotasse. Sim, com certeza os adotaria.
Eram essas as coisas que Amélia tanto queria e tanto não queria.
Fumando aquele cigarro, havia só uma que tanto a duvidada, apenas uma coisa ela ainda estava inclinada a fazer, porém com um aperto nos úteros que quase doíam como a porra da cólica mensal – quase. Nessa coisa, no entanto, ninguém poderia ajudar, auxiliar ou aconselhar. Ninguém daria respaldo, nenhum livro de protocolos sociais ou experiências alheias poderia dar a ela a grande resposta. Era algo que somente ela poderia fazer e lidar. Por isso fumava o cigarro, porque ele a tranquilizava, porque ele acalmava os pensamentos e afastava todos os impulsos sentimentais de desistir e voltar atrás e tentar aguentar mais um pouco até que as coisas ficassem bem.
Amélia só queria pensar por si mesma, do jeito racional e desprendido que sempre fora antes da chegada e presença do intruso e, sinceramente, longe do engarrafamento que estaria prestes a pegar e da nova rotina que estaria por vir, ela já conseguia enxergar o resto de sua vida com mais clareza e descompromisso. Enxergava a tudo com clareza e discernimento, a razão a tomava e a pessoa-porra-louca que um dia fora e que tanto a deixara em segurança agora retornava rastejando, pouco a pouco se erguendo para finalmente caminhar com os próprios pés descalços – descalços porque Amélia gostava de sentir a terra, a grama e o solo na planta dos pés e na ponta dos dedos. Amélia era mais livre do que imaginava, mesmo tendo se entregado àquela dor de cabeça de vida que sujeitou-se nos últimos dois anos de sua vida.
Amélia era livre demais para juntar-se, para dobrar-se. Amélia era livre demais para que outros não aceitassem seus termos. Amélia era livre demais para sequer imaginar que seu jeito era o jeito errado. Amélia era livre demais para se preocupar com o que antes não se preocupava.
Seu celular então tocou e por um breve momento antes de atendê-lo a garota-quase-mulher observou o Sol se pôr. Leu as mensagens que haviam chegado. Uma mensagem de três emissários diferentes. O primeiro nome ignorou, pois tudo o que ele significava agora estava morto. O segundo nome sorriu de forma fofa, pois aquele emissário era um idiota exibido e queixo erguido, toda engraçadinho quando falava com empolgação da academia e do quão frango estava. Fofo. A sexta-feira era dele. Já o terceiro emissário estava mais próximo dela, convidava-a para sair naquele momento e perguntava se já havia ido embora. Amélia respondeu primeiro a mensagem dele, dizendo que precisava terminar uma relação antes de aceitar qualquer saidinha casual – porque para ela e para ele, a saidinha não seria apenas uma saidinha, ambos sabiam e desejavam isso. Ele compreendeu, dizendo que a admirava por isso e que mal esperava pelo momento, reiterando que esperara por isso desde o início do relacionamento que agora Amélia iria finalizar. Ela riu. Panaca. Safado. Todos iguais. Despediu-se e guardou o celular.
Respirou fundo e observou os últimos raios de Sol morrendo no horizonte da orla da cidade.
O que ninguém entendia é que aquele tipo de escolha não era fácil.
Com a ajuda daquele cigarro, porém, tudo ficara menos difícil e suficientemente apto de ser decidido. Não era tão complicado assim quando se tinha tantas e tantas opções de distração e superação – e, provavelmente, em alguns dias receberia uma proposta de namoro, casamento ou união transcendental da alma, caso aquele espiritualista nômade e hippie e hindu ainda estivesse pela cidade. Amélia terminou de fumar e deu um peteleco do que sobrou dele, levantou-se e foi embora.
Agora sim estava tudo terminado.



1 de julho de 2015

Circo




Eu ri daqueles músculos e o modo como se distribuíam pelo corpo, como eram expostos em fotografias e todas as suas veias e suor e anabolizantes expelidos por substâncias exócrinas e toda aquela coisa técnica que nem eu sei o nome, muito menos eles.
Eu ri de tudo aquilo, e confesso que o fiz por prazer. Confesso ainda que sentia-me superior a tudo: essa devoção ferrenha à construção religiosa de tantos músculos e bíceps e tríceps e quadrociclos e aquela porcaria de música eletrônica tocando na academia, aquela fossa musical e espiritual que me deprimia com tanta comicidade. Confesso que ri – e confesso que, secretamente, ainda o faço bem no fundo. Todos aqueles cabelinhos penteados pra trás com um gel meloso ou a gola V Pólo com manga baby look realçando braços bem torneados e tatuagens tribais. Também obriguei-me a rir das garotas: calças coladas muito bem agraciadas, porém com uma meia quase na altura do joelho com uma cor limão-luminoso que descia até os sapatos de um rosa misturado com alaranjado estilo pisca-pisca da Estrela. Ri também do modo como elas se devotavam aos cantores sertanejos e vestiam exatamente o mesmo tipo de roupa em comitivas de forró, com uma fotografia bem delineada com seus corpinhos bem alienados segurando um copo bem cheio de cerveja na mão – ou outras bebidas, porque “nossa, veja como ela/ele bebe, nossa, que sinônimo de respeito, puta que o pariu, nem tem mais fígado, né? Que invejável. Caralho, tanta gente aí fazendo coisas memoráveis, mas isso, isso realmente é digno de respeito!”. Confesso pela divindade mais bem honrada na história da humanidade que pus-me a rir em escárnio a toda aquela imundice de existência.
Só que enquanto eu ria, havia atrás de mim de braços cruzados, com um fungar irritado nos lábios e uma fúria bem contida. Ela queria me chutar, espancar-me e por-me no chão – claro que metaforicamente. Desejava tudo isso com o mesmo ato que o meu, ela também ria de mim: ria pelas coisas que eu assistia, ria pelos heróis que eu venerava e o modo como eu me divertia dentro de um cinema, na mesma sessão em que uma centena de criancinhas se divertia com igualitária tonalidade. Ela ria pelas leituras que eu possuía (tanto de mundo quanto na cabeceira da cama); ria pela minha aparente e comprovada imaturidade, ria da minha inocência, da minha imbecilidade, dos óculos que eu usava e até do jeito como me portava em determinadas localidades no mundo virtual e fictício. Ela ria inclusive por eu ser criança, ria por ser mais esperta que eu e mais sabida, mais consistente em seus diálogos e todo seu olhar de repulsa pelas coisas que já pensei, vivi e senti. Ela ria pelas minhas costas, ria porque sentia-se superior (e sabia que de fato o era) por eu ter cometido jogadas erradas com peças erradas e parceiros errados, por ter feito cagada e por ser como era – de um modo geral. Ela ria com os braços cruzados, porque sabia que eu era menos, e se não sabia, apenas fingia que era verdade com uma convicção tão violenta que me fazia retroceder e dar o braço a torcer. A pessoa era uma, era duas, era três. A pessoa era mil. E de alguma forma andava aos montes por aí, com uma centena de nomes diferentes e superiores, rindo de mim da mesma forma (que eu garanto) que esses engomadinhos metidos a beberrões e ratos de academia acham-se superiores a alguns ou a todo mundo – mas, ora, nem de longe eles são, certo?!
A pessoa ria pelas minhas costas. Gargalhava. Rolava pelo chão. Apontava os dedos para mim. Sentia a cólica esmagar seus órgãos internos como um alien enfurecido tentando sair do casulo. Ela ria freneticamente. Louca. Lagrimando. Sabendo que eu era um inútil diante dela.
Atrás dela havia mais alguém – provavelmente uma criancinha mimada filhinha de papai de vinte e tantos anos, amante do fervoroso e santificado ato de glorificar a Deus e falar mal dos irmãos, que tinha tudo em casa e frequentava os melhores lugares (ou ao menos desejava ser como aqueles que frequentavam os melhores lugares), que amava declarar amor por comida e sono, que amava ser uma inutilidade ambulante e que amava, acima de tudo, achar-se superior à pessoa que ria de mim.
Eu ria deles, ela ria de mim, e a criancinha ria dela. Todos estão rindo de todos, apontando o dedo e rindo, rindo e rindo.
É um circo desgraçado de primeira, podre, fétido e maléfico, com palhaços indignos de superioridade e respeito caçoando uns dos outros, cuspindo uns nos outros, achando-se maiores enquanto são subjugados por outro lixo qualquer acima deles. Uma porcaria sobre a outra, rolando numa fossa gigantesca: uma hora em cima, uma hora em baixo, em cima, em baixo, em cima, em baixo. Rindo e rindo da miserabilidade alheia. Todos uns palhaços.
 É um circo e tanto.



28 de junho de 2015

Jorge, Jorgismunda e Jorgina (uma história de amor dos tempos modernos)



Quando a história veio a público, a plateia urrou de espanto: Jorge havia trocado Jorgismunda pela Jorgina.
Porém se me derem a chance de defender o coitado (e até talvez Jorgismunda seja igualmente coitada na história toda), começo afirmando que nem por adultério a confusão se configurou.
Na mais verdadeira ordem das coisas, tudo aconteceu assim: amor, geladeira, indiferença, perseguição e amor de novo (só que agora pela Jorgina). Para mais sinceridade na conversa, ainda venho aqui frisar outra coisa, a grande e real razão pela qual Jorgina tem sofrido tanto no meio dessa novela e o porquê de Jorgismunda ter descido do salto e se arrastado na lama: é porque Jorgina é magra. Digo, no fundo nem “magrinha” Jorgina é, para os moldes ferrenhos da sociedade trituradora, Jorgina nada mais passa de um graveto, uma “fumaça de meia-noite” como diz meu avô, uma Olívia Palito com um pouquinho de peitos. Mas Jorgina é linda. E pra piorar tudo, Jorgismunda também é, só que a Jorgismunda é mais mulher, é mais velha que Jorgina por três anos, e é maior nas bundas, nas pernas, nos peitos e até na boca, porque o lábio superior da Jorgina é fino e quase inexistente, dando a ela uma aparência engraçada com aquele buço salientado. Aliás, enquanto Jorgina tem as pernas finas e ligeiramente inclinadas num ângulo fechado, Jorgismunda fica por aí nas esquinas cuspindo na imagem dela, debochando porque a garota “já estava na vida dele sabe-se lá desde quando”. Mal sabe Jorgismunda que o Jorge conheceu a Jorgina cinco semanas e vinte e sete dias depois que ela disse “to cansada dessa merda”, chamou-o de filho da puta e inventou ciúmes da vizinha Jorgimira, quando na verdade só queria esconder que andava há dois meses arrastando asas para o companheiro de pelada de Jorge, o Jorgildo. Só que pobre Jorgismunda, ninguém sabe que no fundo ela não é barraqueira, mas sim apenas uma mulher que queria ser devidamente amada como todo qualquer ser humano, seja Jorge, Jorgina, Jorgimira ou Jorgildo. Jorgismunda tem bom coração, mas o único que sabe disso é o Jorge. Só que o Jorge cansou, porque Jorgismunda cansou o Jorge. Jorge conheceu Jorgina enquanto Jorgismunda se vangloriava por finalmente ter recebido um orgasmo de Jorgildo – e mesmo assim quase não teve graça. Jorge conheceu primeiro o sorriso de Jorgina, depois a voz, em seguida o olhar e por muito último o aroma dos cabelos. Quando conheceu os lábios finos de Jorgina, ele ainda se corroía pela culpa de ter deixado Jorgismunda em casa com raiva, porque nem no clube de poesias do bairro ela queria deixar o coitado ir. Foi lá que Jorge conheceu Jorgina, lendo um poema de Augusto dos Anjos – mais precisamente recitando os Versos Íntimos do poeta. Mas também se engana quem acha que Jorgismunda não lê poesia ou não goste dela – poucos sabem que foi defendendo o direito dos homens e mulheres, crianças, idosos e índios que gritando um poema revolucionário Jorgismunda conquistou Jorge numa praça pública. Jorgismunda é linda, é bela, é forte e totalmente capaz. Jorge amava aquilo, mas só amou até quando deu. Para Jorge encheu, para Jorge morreu. Só que a bendita raiva da Jorgismunda enquanto rebolava com vigor sobre Jorgildo fingindo que ele era Jorge, é que Jorge foi justamente se apaixonar por uma “feia, magricela e sem graça com corpo de criança” tal qual Jorgina era. Jorgismunda não lembrava agora o quanto defendia a queda dos padrões de beleza como sinônimo de personalidade; pobre Jorgismunda, parecia ter esquecido que lutava bravamente contra homens que só julgavam mulheres pela beleza, e que agora repudiava Jorge por ter se apaixonado por alguém “menos bonita” que ela. Jorgismunda só tinha era raiva da mudança, raiva da mudança para “algo pior”.
Mal sabia ela que Jorgina era um amor. E mal admitia Jorgismunda que Jorgina era linda e perfeita aos olhos de Jorge, como outrora ela também fora. Jorgismunda mal sabia de muita coisa, por isso preferia xingar a Jorgina – era mais fácil superar assim.
E para finalizar na defesa de Jorge, tudo o que digo é que ele está bem (aposto que aquele “corpo de criança” o faz muito bem entre um suspiro e outro). Jorgina é um amor, ela até torce para o mesmo time carioca, caçoado e azarado que o Jorge torce – Jorgismunda torcia para o Timão, só para ressaltar. Jorgina faz um café excelente e frita uma salsicha maravilhosa com ketchup na frigideira. Jorgina é jovem, quase uma criança, mas tem a cabeça no lugar. Jorgina faz o Jorge feliz, de um modo que tão cedo a Jorgismunda não conseguirá fazer feliz o Jorgildo – porque o Jorgildo a essa hora nem com a Jorgismunda está, ele está com a Jorgimira, a vizinha do Jorge que a Jorgismunda fingia ciúmes.
Pobre Jorgismunda: só não queria admitir que havia perdido o Jorge por ter amado errado, e agora amava sozinha, ressentida e falando mal da Jorgina, pouco sabendo que Jorgina era um amor.
Mas, sincera e calmamente, outro dia falo sobre a Jorgina, porque Jorgina é linda e merece algo somente seu.



7 de maio de 2015

Cavaleiro das Trevas (Parte 2)



Frank Miller, essa é para você.
Eu queria aqui dizer o quanto poderia citar o nome de sua obra, eu queria verdadeiramente fazer dessa referência uma claridade aos olhos do mundo, mas acho que deixar subentendido no turbilhão das minhas ideias já é o que basta: Ele retorna, e retorna em paz. Aliás, Frank, não é necessariamente para você que direciono todas estas palavras, não é nem para ninguém diretamente, e sim talvez para este pequeno alívio que me escapa os lábios. Caráter sempre importou, mas reputação incomoda – e uma reputação limpa depois de tanta lama erroneamente espirrada é o maior dos alívios que um mendigo espiritualista pode ter. Tudo o que me basta agora é saber que no fim das contas nem tudo foi como eu havia enxergado, porque talvez eu estivesse cego e desesperado demais para perceber, jogado no meio do furacão que me sujava com vilania e canalhices. Por um tempo eu até cheguei a amar aquela letra que celebrava o novo membro no clube, isso porque, na época, de fato havia me convencido de que talvez o mundo tivesse razão. E minha personalidade fraca, ao invés de mostrar o contrário, decidiu abraçar a máscara e fazer dela a minha realidade. Mas não era, Frank; mas não era, Matanza. Esse canalha talvez seja quem eu me transformo vez ou outra, em um lapso e outro, mas sabe aquele lance sobre caráter? Então. É o que eu tenho, e isso ainda que me seja uma derrota acaba configurando um alívio: melhor ser um idiota em paz do que ser feliz em um balde de lama.
Não que o meu caráter seja dos mais limpos, mas ver os acusadores revelando-se como sempre partidários da minha causa é de uma gratificação imensurável. Eles nem sequer eram os juízes que eu havia julgado, talvez não passassem de peças igualmente jogadas num tabuleiro repleto de artimanhas e trapaças, que os controlava tanto quanto controlavam a minha imagem – a minha sujeira.
É com pesar que me arrependo de tê-los odiado tanto. É com alegria que hoje celebro minha alforria.
Caráter custa muito, mas reputação incomoda – ou alivia.
É, Frank, acho que agora posso fazer a referência: O Cavaleiro das Trevas Retorna.  



CAVALEIRO DAS TREVAS (PARTE 1)



1 de maio de 2015

Escarlate



Havia um punhado de ódio naqueles punhos, enraizando-se sob a pele, carne, sangue, por entre as veias, cravado nos dedos. E então ele matava, degolava e destruía, sem pensar duas vezes. Tanto ódio, menino, tanta inveja compulsiva. Inveja por você ter tudo o que eles querem e eles terem tudo o que você quer. A grama do vizinho é sempre tão mais bela, verde e bem cuidada, ou a grama do vizinho tem sempre tem aquele arranjo de flores que a sua nunca terá. Daí vem a raiva, daí vem a inveja. Mas e se isso for justificável entre as justificativas que você cria em sua cabeça, aqui vai: eles não merecem essas cores, eles não merecem essa normalidade; só merecem, talvez, toda aquela falta de cérebro, de astúcia, de inteligência, “cognição” nas palavras da admirável professora. Ah, não, eles não merecem nada de tudo o que possuem exceto o que já não possuem. Mundo injusto, mundo ingrato, mundo vil da verdadeira meritocracia. Lembre-se, no entanto, que a maldição circula nas veias, garoto. Intrincada nas mesmas veias pelas quais corre esse ódio, essa fúria, essa inveja, essa injustiça. Pelo sangue se prolifera a má sorte, o azar, a infelicidade, e muito bem prosperará em caso de reprodução – por isso você detesta a ideia de criar uma vida e trazer um ser inocente a este planeta sujo de seres sujos e imundos. Poupe uma vida, poupe-a de viver, poupe-a de existir.
E se puder, garoto, pule esse muro com um galão de gasolina. Toque fogo naquela grama, mas não esqueça da sua. Tudo o que eles possuem é um punhado de flores bonitas e bem cuidadas, profundamente frágeis. Mas não esqueça da sua. Toque fogo nela quando estiver pulando o muro de volta, toque fogo na sua própria grama, queime o seu verde, queime suas flores tão belas que nasceram sem nem ao menos terem sido regadas. Eu garanto que elas vão crescer de novo – porque o solo é bom, fértil e esperto, verdadeiramente valioso –, num tom vibrante e escarlate mais forte, mais vivo, com todos os adjetivos de antes e todos os adjetivos dos vizinhos. A isso eu chamo de karma: maldito, sujo, a volta do anzol. Não nesta vida, garoto, não em uma década, não em duas, não nesta existência.
Talvez na próxima, porque você ainda está arcando com o karma da vida passada – e tão cedo não vai parar de pagar.



26 de abril de 2015

Fim de semana



Mais um fim de semana. Nada mudou.
Amanhã é segunda de novo, e nada mudou. Meu sono permanece o mesmo, como se eu não tivesse todos esses dias acordado na hora do almoço e tomado café na hora do bife. Minha vontade, ainda inexoravelmente morta e fria, pareceu ter esquecido de ligar o despertador, e mais uma vez, mais um dia eu fico atrasado para a primeira aula, perco o ônibus, perco o ânimo e perco a frequência – provavelmente na disciplina da vida eu já estou reprovado. Mais um fim de semana e eu não li aquela pilha de livros da qual gastei tanto dinheiro; não li meus autores favoritos e só por osmose julgo conhecer tudo dos meus heróis literários. Mais um fim de semana e não estudei o que deveria para a progressiva construção do meu futuro acadêmico e profissional; mais um fim de semana e adiei um bom estágio, um bom emprego, um bom salário e uma boa reputação. Mais um fim de semana e aquele sonho se distancia, porque não guardei dinheiro o suficiente para encontrá-la em qualquer feriado prolongado que os vagabundos deste país amam prolongar; mais um fim de semana e provavelmente eu nunca a encontrarei novamente; mais um fim de semana e eu nem sequer vou poder comprar com meu próprio bolso aquele videogame, aquela camiseta, aquele carro, aquela prostituta, aquela Coca-Cola. Mais um fim de semana e tudo o que queria era apenas poder existir, como a lesma na fotografia de Manoel de Barros. Mais um fim de semana e semestre que vem não existirá. Mais um fim de semana assim, existindo sem compromissos, e meus velhos ficarão mais velhos, começarão a cobrar o peso de um vagabundo existencial que pensa que é uma lesma. Mais um fim de semana vazio, sem responsabilidades, apenas rico de ócio e construções literárias banais, que nada me recompensarão em um futuro próximo ou distante. Mais um fim de semana sozinho, abdicando de amores que não tenho mais forças para aguentar e lembranças que não tenho mais forças para possuir.
Mais um fim de semana de tempo sádico e massacrante.
Ontem eu tinha 12, hoje tenho 21 e amanhã terei 32.
E nada vai mudar.    


14 de abril de 2015

Tem uma mulher na minha cabeça



Tem uma mulher na minha cabeça. Ruiva, pele branca, unhas vermelhas. Não, unhas transparentes. Unhas longas, finas, grossas e transparentes. Ela é de um ruivo natural, um alaranjado bem claro, cor-de-outono. Ela não mostra o rosto, muito menos o sorriso, mas eu sei que está rindo, exatamente de quê ou como... eu não faço a mínima ideia. Mas tem uma mulher, nitidamente. A cada fechar de olhos ela aparece, piscando embaixo das minhas pálpebras num slow motion maldito. Mãos esqueléticas, dedos esqueléticos, unhas esqueléticas. Pele branca, nem alva, nem clarinha, apenas branca, sem vida, sem sangue, sem beleza, sem finura, sem classe, sem porra nenhuma – só um branco anômalo e assustador. Duas e vinte e dois da manhã e a porra da mulher só não está mais aqui por causa do barulho do teclado e da luminária acesa. Mas eu juro, assim que eu apagar tudo e tentar dormir, ela vai voltar, piscando, freneticamente, às vezes veloz, às vezes lenta, com as mãos cruzadas sobre o rosto, como se escondendo meu derradeiro destino, como se escondendo um susto.
 Tem uma mulher na minha cabeça. Aqui, piscando e reaparecendo a cada fechar de olhos, a cada deslizar de pálpebras. Tem uma maldita mulher na minha cabeça, com cabelos secos e alaranjados, retesados sabe-se lá de medo, terror ou morte – morte, talvez seja isso.
Tem uma mulher aqui, e ela não vai embora.


4 de abril de 2015

Capiroto



Chegou como quem não queria nada. Sentou-se. Certificou-se de que os botões dos punhos estavam bem apertados. Ligeiramente acertou os moldes da roupa, olhando por um reflexo qualquer como estaria o improvável desalinho. Depois disso não deu a mínima bola para a própria aperência, talvez não precisasse daquilo. Sabia o quão altivo era com aqueles cabelos pretos que, juro, por vezes aos meus olhos soavam castanhos, outras horas pareciam quase avermelhados, num bronze envergonhado. Olhou pra mim e soou apressado – vamos, garotinho, tenho um contrato às 16h30. Fazia um calor dos Infernos e minhas costas ensopadas ainda se recuperavam sob o frio do restaurante. Ele não. Ele estava tranquilo, mesmo sob aquela roupa. Assenti devagar e ele olhou no relógio de pulso. Pôs a mala preta sobre a mesa e com dois clics abriu-a. Papéis, papéis, e papéis. Papéis velhos, fedorentos, cheirando a grilo e a mofos. Quando pensei “maldito grileiro” ele se irritou e balançou a cabeça, profundamente indignado com a ofensa. Pedi desculpas e microscopicamente deu de ombros. Caçou minha papelada e me entregou.
- Pernas longas, kilos adicionais, doses de auto-estima e um pouquinho de talento. Mais alguma coisa?
- A beleza. – Respondi, repassando a clausura.
- Você é lindo aos olhos do Pai.
- Eu estaria aqui se concordasse?
- Certamente. – E riu. Riu verdadeiramente divertido pela primeira vez desde que chegara. – Você não mencionou a beleza antes.
- É verdade. Comecei a pensar sobre ela ainda agora.
- Eu não tenho tempo. E aí?
- E aí o quê?
- O que vai ser? Vai adicionar?
- Nesse papel? – Ergui o contrato. O aroma das traças bailou pelas minhas narinas.
- Eu dou um jeito, tudo pelo cliente. O que vai ser?
- Acho que não. Beleza e dinheiro custam muito.  
- São os mais pedidos.
- É. Fico com os que já estão aqui.
- Perfeito.
- E aí?
- É só assinar.
Assinei. A caneta dele era legal. Brilhosa demais. Pesada demais. Normal demais.
- Juro que pensei que isso seria mais bizarro.
- A Firma se adequa ao contexto. Quanto mais facilidade, melhor. – Alargou um sorriso e apertou-me a mão com um toque confiante e amigável. Jurei que por um segundo que seus cabelos eram dourados. – Foi uma honra fazer negócio com você, Felipe.
- Eu não diria o mesmo, mas é isso aí. Obrigado por aparecer.
- Disponha!
E saiu apressado. Nunca mais o vi desde então.
O contrato tem surtido efeito e o produto é realmente confiável.
Valeu a pena.


22 de março de 2015

Despedida



Ela se foi na mesma semana em que derradeiramente descobri quem era. Na teoria, pelo menos, embora na prática eu já a sentisse há tantas vidas. Ela morreu daquela forma: gradativamente complexada, com críticas sussurradas ao acaso, com olhares e indagações tão aparentemente inocentes. “Por que você faz isso? Por que você faz ela?”. Foi aí que ela começou a morrer, pobre moça. Eu a amava tanto, juro que a amava. Também juro que a sentia com todas as minhas forças mais juvenis, porque fazia parte de mim, fazia parte do meu não-oficial-ofício. Ela fazia parte da minha inútil, nada convencional e não considerável arte, porque ela era a minha arte. Naquela fatídica semana, logo quando finalmente eu a havia descoberto pelas vias teóricas de fato (embora estivesse numa linha de pensamento que andava cagando para as tão obsoletas teorias), a pobre e linda moça catacumbou-se dentro de mim, levada pela triste degradação minha, pela morte do meu gosto, do meu interesse, do meu despertar para a triste, cinzenta e insossa realidade.
Ela morreu tão tragicamente dentro de mim que nem lágrimas mais eu possuía para me despedir. Talvez minhas lágrimas estejam aqui nestas linhas, indiretamente um memorando último que não ecoará no tempo. Eu só queria me despedir de maneira justa, à altura de tudo o que a linda moça me proporcionou nos últimos anos.
Vá em paz, Poesia.


9 de março de 2015

Cavaleiro das Trevas (Parte 1)



E o esdrúxulo cavaleiro sairá abatido, como todo bom e velho ser humano. Não aos moldes “adolescentes” de abatimento, mas um abatimento verdadeiro, merecedor de crédito, porém mais incisivo, centrado, menos insano e descontrolado. Um abatimento típico dos homens velhos, que se abatem e sabem admitir que “foi necessário, próxima rodada”. Não há motivos para alardes, tempestades e encarnações ultrarromânticas, é apenas um fim como todos os outros, com a única diferença de que, nesta ímpar e peculiar situação, o protagonista deste lado da estrada será não somente abatido, como mal visto, criticado e repudiado. Não que ele não esteja acostumado. Esse, meu amigo, é o preço por construir uma capa que, dependendo do espectador, sempre teve duas versões: a bobinha e a canalha. E o segundo lado está virado para cima agora, o lado da faceta mais torpe, suja e sem escrúpulos.
O pobre abatido não se importa de ser visto assim, não se houver no fundo um motivo e um propósito maior, quase com um tom enlameado de sacrifício. Talvez ele até se sinta como um particular novo tipo de Jesus Cristo, pregado em uma cruz que já estava fincada no chão há muito, muito tempo; talvez ele até se sinta como um particular novo tipo de Cavaleiro das Trevas, que nunca, jamais foi o tipo reto de herói (nem de longe), porém iniciou sua carreira com bons motivos e intenções.
Pobre herói. Pobre anti-herói. Pobre vilão. Que sua cabeça agora esteja a prêmio, que agora ele realmente seja aquilo que os outros querem que ele seja – talvez seja mais fácil. É o preço de um bom sacrifício. É o preço da paz.



CAVALEIRO DAS TREVAS (PARTE 2)


11 de fevereiro de 2015

Desculpas sinceras



Eu deveria me desculpar pelo meu jeito, pelos meus gostos e até pela minha aparência. Eu deveria me desculpar pelos livros que leio, pelas histórias que escrevo, pelos homens que admiro – sempre aqueles estranhos, vis humanos de mentes insanas, porém sensatos diante do tato. Eu deveria me desculpar pelas festas não frequentadas, e até pelas cervejas e refrigerantes negados porque “faz mal à saúde” – e quem dera todos soubessem que realmente faz; é isso durante algum tempo ou uma cama de hospital amanhã. Eu deveria me desculpar pelos centímetros não crescidos, deveria até me desculpar por ficar irritado com as piadinhas feitas. Ah, eu deveria me desculpar pelo meu modo de responder ao mundo, com as ironias e todos os vãos argumentos meramente verbais, sem palavrões, sem xingamentos, sem apelações para violência física e banal – que é o que todos os caras normais fazem; que é o que se geralmente faz e não se pede desculpas. Eu deveria pedir desculpas pelas aspas não colocadas nas frases para indicar ironia, porque eu sou o culpado por não entenderem ironias. Eu deveria me desculpar pelas piadinhas geniais que ninguém entende, e deveria também me desculpar por ter um bom senso de humor que as pessoas julgam por “galassequice”. Eu deveria me desculpar em 90% do tempo por não ser o que os bons jovens de redes sociais fingem que são. Ah, eu deveria me desculpar pelas opiniões ferrenhas que bravejam ao me verem tomar um copo de Coca-Cola Zero (“isso faz mal”) e nem ao menos pensar na possibilidade de rebater com um “põe uma camisinha nesse pau, pare de cheirar cocaína e conclua o ensino médio”, ah, sim, eu deveria me desculpar por pensar em responder isso. Eu deveria me desculpar por não cursar a tão sonhada carreira de Direito, e deveria também me desculpar ao dizer “na verdade, nem quero ser professor”. Eu deveria me desculpar por ter abandonado o Oceano por um sonho mesquinho e utópico em meios às prosas fictícias. Eu deveria até mesmo me desculpar pelos olhos inchados, a aparência eterna de sono e pelo caminhar lento que não optei possuir antes de nascer (porque, acreditem, se houvesse uma escolha, lá de onde todos nós viemos, eu escolheria exatamente o contrário para satisfazê-los). Eu deveria me desculpar por ser pequeno e franzino. Eu deveria me desculpar por tanta coisa que nem lembro mais o porquê do ato, só sei que deveria me desculpar, porque é o que parece certo para acalmar a fúria preconceituosa daqueles que controlam as cordas presas em meus braços e pernas.
Eu deveria me desculpar por tanta coisa, mas não o faço, e até peço desculpas por não pedir desculpas.
No fim, deve ser a minha desculpa mais sincera.


5 de fevereiro de 2015

Ela é poesia



A garota é poesia em cada passo, cada um daqueles passinhos de pés pequenos e branquelos. A garota é poesia mesmo sem saber, mesmo quando escreve aqueles textos tão desconexamente coerentes e coesos, mesmo quando julga a própria literatura inferior, medíocre, indigna do mundo. Ela é poesia até quando joga suas folhas ao vento e mais tarde possui o trabalho de recolher uma por uma, envergonhada pela paranoica sensação de não fazer aquilo direito. Ela é poesia naqueles olhinhos fechados, sobretudo aqueles olhinhos fechados e avermelhados, sempre que me chama ao dizer que fumou um beck dos deuses. Ela é poesia até aí. Ela é poesia com aquelas mãos de pele alva e unhas transparentes; ela é poesia naquela eterna voz de criança; ela é poesia mesmo quando é prosa, e é menina mesmo quando obrigada a ser mulher, numa poética e eterna encenação de vencer o que não há de ser vencido, porque a vitória, nessa ocasião, é mais chata e monótona que a disputa nunca concluída. A garota é poesia até quando ondulações através de minhas prosas não se abatem, porque a poesia dela fica martelando minha cabeça: a poesia de suas ancas magricelas, suas pernas finas e os cabelos lisos e castanhos – na minha visão sempre esvoaçando num fim de tarde ao vento como Johnny Cash e Bob Dylan cantaram em Girl from the North Country.  Ela é poesia por me fazer retornar todas as noites em meio aos teclados e proferir discursos mortos e proibidos, mesmo quando a última afirmação nem sequer existe e não passa de uma mera mentira para ornamentar estas linhas – até aqui ela o é. Poesia por ser tudo o que um dia foi e que um dia jamais será; poesia pela ambiguidade, pela metáfora, pelo arranjo, pela rima e, principalmente, pela dúvida, pelo mistério e pelo aparente desprezo; pela conquista, pela eternidade e pela capacidade singela de perdurar independente de um autor.
 A garota é pura poesia mesmo não sendo mais de minha livre inspiração, afeto ou lembrança.
O poeta morre, mas a obra não.



3 de fevereiro de 2015

Sr. Muckie-Duckie



O senhor Muckie-Duckie tinha imensas olheiras sob os olhos. Aqueles olhos que já não eram naturalmente tão expressivos, muito menos vivos, não possuíam lá tanta vivacidade, e agora tinham olheiras imensas, monstruosas, do tamanho de devoradores de planetas. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam as boas línguas. Ele que um dia fora bem sucedido em seu ramo honesto e modesto de levar a vida, logo ele, o senhor Muckie-Duckie, que acordava cedo todas as manhãs depois de oito horas e meia de sono, ia à padaria, assistia aos jornais e documentários sobre a formação do universo no canal fechado. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam igualmente as más línguas: logo ele, tão sujo e cheio de si, ostentador de universos femininos em sua cama, em seus meios, em seus dedos, em seu ofício. Agora, tanto tempo depois daquela época tão duradoura de sucessos e sorrisos, agora limitava-se a um torcer de beiços, um arquear mofino de sobrancelhas que quase não existia, um dobrar de pés de galinha em volta dos olhos tão escuros, jovens, porém idosos, e, claro, repleto daquelas olheiras agressivas.
Pobre senhor Muckie-Duckie. Pela tentativa de um feito nobre, caiu em desgraças e equívocos, pintou o negro quando quis pintar o branco, tocou uma estridente nota aguda quando quis suavizar uma melodia grave, calma, tranquila e bondosa. “A maldade, sr. Muckie-Duckie”, diriam as boas e más línguas, “está em não fazer o que se deseja”, e foi tudo o que o pobre e velho senhor Muckie-Duckie andou fazendo com aquelas pesadas olheiras. Largou a padaria pela manhã, largou os documentários de como nascem as estrelas – talvez, agora, irônica e literalmente, para “como morrem os planetas” -, deixou até de caminhar pelo sol poente com as ideias do ofício, esquecendo-se do trabalho, das memórias, e de tudo o mais que o fazia ser o velho senhor Muckie-Duckie de sempre.
Em uma terça-feira qualquer, um de seus vizinhos, aquele pirralhinho filho da Marta e do Jurandir, vai chutar uma bola no jardim do senhor Muckie-Duckie. O senhor Muckie-Duckie gritará um palavrão, tomará uma tesoura entre os dedos e fará o serviço que o ânimo o ordenou. Pobre menininho, vai chorar e reclamar com os pais. Marta vai abraçá-lo e xingar o algoz. Jurandir vai no máximo baixar os olhos e fingir que nada aconteceu.
Jurandir sabe que a culpa não é do senhor Muckie-Duckie.
São aquelas olheiras – malditas olheiras.