26 de abril de 2015

Fim de semana



Mais um fim de semana. Nada mudou.
Amanhã é segunda de novo, e nada mudou. Meu sono permanece o mesmo, como se eu não tivesse todos esses dias acordado na hora do almoço e tomado café na hora do bife. Minha vontade, ainda inexoravelmente morta e fria, pareceu ter esquecido de ligar o despertador, e mais uma vez, mais um dia eu fico atrasado para a primeira aula, perco o ônibus, perco o ânimo e perco a frequência – provavelmente na disciplina da vida eu já estou reprovado. Mais um fim de semana e eu não li aquela pilha de livros da qual gastei tanto dinheiro; não li meus autores favoritos e só por osmose julgo conhecer tudo dos meus heróis literários. Mais um fim de semana e não estudei o que deveria para a progressiva construção do meu futuro acadêmico e profissional; mais um fim de semana e adiei um bom estágio, um bom emprego, um bom salário e uma boa reputação. Mais um fim de semana e aquele sonho se distancia, porque não guardei dinheiro o suficiente para encontrá-la em qualquer feriado prolongado que os vagabundos deste país amam prolongar; mais um fim de semana e provavelmente eu nunca a encontrarei novamente; mais um fim de semana e eu nem sequer vou poder comprar com meu próprio bolso aquele videogame, aquela camiseta, aquele carro, aquela prostituta, aquela Coca-Cola. Mais um fim de semana e tudo o que queria era apenas poder existir, como a lesma na fotografia de Manoel de Barros. Mais um fim de semana e semestre que vem não existirá. Mais um fim de semana assim, existindo sem compromissos, e meus velhos ficarão mais velhos, começarão a cobrar o peso de um vagabundo existencial que pensa que é uma lesma. Mais um fim de semana vazio, sem responsabilidades, apenas rico de ócio e construções literárias banais, que nada me recompensarão em um futuro próximo ou distante. Mais um fim de semana sozinho, abdicando de amores que não tenho mais forças para aguentar e lembranças que não tenho mais forças para possuir.
Mais um fim de semana de tempo sádico e massacrante.
Ontem eu tinha 12, hoje tenho 21 e amanhã terei 32.
E nada vai mudar.    


14 de abril de 2015

Tem uma mulher na minha cabeça



Tem uma mulher na minha cabeça. Ruiva, pele branca, unhas vermelhas. Não, unhas transparentes. Unhas longas, finas, grossas e transparentes. Ela é de um ruivo natural, um alaranjado bem claro, cor-de-outono. Ela não mostra o rosto, muito menos o sorriso, mas eu sei que está rindo, exatamente de quê ou como... eu não faço a mínima ideia. Mas tem uma mulher, nitidamente. A cada fechar de olhos ela aparece, piscando embaixo das minhas pálpebras num slow motion maldito. Mãos esqueléticas, dedos esqueléticos, unhas esqueléticas. Pele branca, nem alva, nem clarinha, apenas branca, sem vida, sem sangue, sem beleza, sem finura, sem classe, sem porra nenhuma – só um branco anômalo e assustador. Duas e vinte e dois da manhã e a porra da mulher só não está mais aqui por causa do barulho do teclado e da luminária acesa. Mas eu juro, assim que eu apagar tudo e tentar dormir, ela vai voltar, piscando, freneticamente, às vezes veloz, às vezes lenta, com as mãos cruzadas sobre o rosto, como se escondendo meu derradeiro destino, como se escondendo um susto.
 Tem uma mulher na minha cabeça. Aqui, piscando e reaparecendo a cada fechar de olhos, a cada deslizar de pálpebras. Tem uma maldita mulher na minha cabeça, com cabelos secos e alaranjados, retesados sabe-se lá de medo, terror ou morte – morte, talvez seja isso.
Tem uma mulher aqui, e ela não vai embora.


4 de abril de 2015

Capiroto



Chegou como quem não queria nada. Sentou-se. Certificou-se de que os botões dos punhos estavam bem apertados. Ligeiramente acertou os moldes da roupa, olhando por um reflexo qualquer como estaria o improvável desalinho. Depois disso não deu a mínima bola para a própria aperência, talvez não precisasse daquilo. Sabia o quão altivo era com aqueles cabelos pretos que, juro, por vezes aos meus olhos soavam castanhos, outras horas pareciam quase avermelhados, num bronze envergonhado. Olhou pra mim e soou apressado – vamos, garotinho, tenho um contrato às 16h30. Fazia um calor dos Infernos e minhas costas ensopadas ainda se recuperavam sob o frio do restaurante. Ele não. Ele estava tranquilo, mesmo sob aquela roupa. Assenti devagar e ele olhou no relógio de pulso. Pôs a mala preta sobre a mesa e com dois clics abriu-a. Papéis, papéis, e papéis. Papéis velhos, fedorentos, cheirando a grilo e a mofos. Quando pensei “maldito grileiro” ele se irritou e balançou a cabeça, profundamente indignado com a ofensa. Pedi desculpas e microscopicamente deu de ombros. Caçou minha papelada e me entregou.
- Pernas longas, kilos adicionais, doses de auto-estima e um pouquinho de talento. Mais alguma coisa?
- A beleza. – Respondi, repassando a clausura.
- Você é lindo aos olhos do Pai.
- Eu estaria aqui se concordasse?
- Certamente. – E riu. Riu verdadeiramente divertido pela primeira vez desde que chegara. – Você não mencionou a beleza antes.
- É verdade. Comecei a pensar sobre ela ainda agora.
- Eu não tenho tempo. E aí?
- E aí o quê?
- O que vai ser? Vai adicionar?
- Nesse papel? – Ergui o contrato. O aroma das traças bailou pelas minhas narinas.
- Eu dou um jeito, tudo pelo cliente. O que vai ser?
- Acho que não. Beleza e dinheiro custam muito.  
- São os mais pedidos.
- É. Fico com os que já estão aqui.
- Perfeito.
- E aí?
- É só assinar.
Assinei. A caneta dele era legal. Brilhosa demais. Pesada demais. Normal demais.
- Juro que pensei que isso seria mais bizarro.
- A Firma se adequa ao contexto. Quanto mais facilidade, melhor. – Alargou um sorriso e apertou-me a mão com um toque confiante e amigável. Jurei que por um segundo que seus cabelos eram dourados. – Foi uma honra fazer negócio com você, Felipe.
- Eu não diria o mesmo, mas é isso aí. Obrigado por aparecer.
- Disponha!
E saiu apressado. Nunca mais o vi desde então.
O contrato tem surtido efeito e o produto é realmente confiável.
Valeu a pena.