O que
ninguém entendia é que aquele tipo de escolha não era fácil.
Isso a
estressava com uma enxaqueca irritante, e para enxaquecas, Amélia aprendera com
seu avô e amigos que um cigarro pode ser um bom remédio.
Assim ela o
acendeu, utilizando a ponta dos dedos como pinças delicadas, movimentos
cautelosos, de uma refinação completamente oposta ao bairro periférico e
pessoas pobres que cercaram-na a vida inteira. Acendeu o cigarro e o segurou
entre aqueles dedos tão delicados e elegantes, sentada no banco ao pôr do Sol.
O expediente já havia terminado, o patrão ausente e exigente já fizera as
cobranças habituais à distância – o puto velho nordestino nunca dava as caras
para auxiliar o que devia ser feito, que seus escravos aprendessem sozinhos!
Amélia detestava aquele velho, mas de vez em quando, em devaneios de futuros
distantes, até queria ser um pouco como ele, com o lugar que tanto queria
alcançar: um casal de filhos grandes, inteligentes e autossuficientes, um
punhado de boa reputação e um saco bem pesado de respeito. Amélia queria
crescer, só crescer e crescer. Amélia queria mais, queria dignidade, queria
distância do mundo sujo que a cercava, queria encontrar um mundo com gente que
dava bom dia e esbanjava gentileza, caridade e agradecimento. Amélia queria
coisa boa, ela até mesmo queria largar o cigarro, embora estivesse acendendo
aquele após exatos seis meses e meio de ter fumado pela última vez. Havia
também as coisas que Amélia não queria, e entre elas estava o engarrafamento
que pegaria até sua casa, num transporte coletivo abarrotado de gente mau
educada, suada e cheia de doenças contagiosas – mentais, sexualmente
transmissíveis e mentais, principalmente as mentais. Amélia também não queria
continuar naquela existência social da qual havia nascido, desejava dar
conforto aos entes queridos e conforto a si mesma, livrar os filhos da vida e
ambiente que teve, porém educá-los com os mesmos aprendizados que recebeu. Mas
de vez em quando, Amélia até se questionava se realmente desejava colocar um
par de crianças inocentes neste mundo, porque isso demandava responsabilidade,
perigos, dores e um pai. Amélia não confiava em homens, e não confiava menos
ainda em ter de dividir suas crias com um homem – seres intelectualmente
perdidos. Duvidava que algum deles realmente prestasse, não somente porque
todos com que topou eram assim, mas porque era o que a experiência global e
coletiva comprovava. Talvez até dotasse. Sim, com certeza os adotaria.
Eram essas
as coisas que Amélia tanto queria e tanto não queria.
Fumando aquele
cigarro, havia só uma que tanto a duvidada, apenas uma coisa ela ainda estava
inclinada a fazer, porém com um aperto nos úteros que quase doíam como a porra
da cólica mensal – quase. Nessa
coisa, no entanto, ninguém poderia ajudar, auxiliar ou aconselhar. Ninguém
daria respaldo, nenhum livro de protocolos sociais ou experiências alheias
poderia dar a ela a grande resposta. Era algo que somente ela poderia fazer e
lidar. Por isso fumava o cigarro, porque ele a tranquilizava, porque ele
acalmava os pensamentos e afastava todos os impulsos sentimentais de desistir e
voltar atrás e tentar aguentar mais um pouco até que as coisas ficassem bem.
Amélia só
queria pensar por si mesma, do jeito racional e desprendido que sempre fora
antes da chegada e presença do intruso e,
sinceramente, longe do engarrafamento que estaria prestes a pegar e da nova
rotina que estaria por vir, ela já conseguia enxergar o resto de sua vida com
mais clareza e descompromisso. Enxergava a tudo com clareza e discernimento, a
razão a tomava e a pessoa-porra-louca que um dia fora e que tanto a deixara em
segurança agora retornava rastejando, pouco a pouco se erguendo para finalmente
caminhar com os próprios pés descalços – descalços porque Amélia gostava de
sentir a terra, a grama e o solo na planta dos pés e na ponta dos dedos. Amélia
era mais livre do que imaginava, mesmo tendo se entregado àquela dor de cabeça
de vida que sujeitou-se nos últimos dois anos de sua vida.
Amélia era
livre demais para juntar-se, para dobrar-se. Amélia era livre demais para que
outros não aceitassem seus termos. Amélia era livre demais para sequer imaginar
que seu jeito era o jeito errado. Amélia era livre demais para se preocupar com
o que antes não se preocupava.
Seu celular
então tocou e por um breve momento antes de atendê-lo a garota-quase-mulher
observou o Sol se pôr. Leu as mensagens que haviam chegado. Uma mensagem de
três emissários diferentes. O primeiro nome ignorou, pois tudo o que ele
significava agora estava morto. O segundo nome sorriu de forma fofa, pois
aquele emissário era um idiota exibido e queixo erguido, toda engraçadinho
quando falava com empolgação da academia e do quão frango estava. Fofo. A sexta-feira era dele. Já o
terceiro emissário estava mais próximo dela, convidava-a para sair naquele
momento e perguntava se já havia ido embora. Amélia respondeu primeiro a
mensagem dele, dizendo que precisava terminar uma relação antes de aceitar
qualquer saidinha casual – porque para ela e para ele, a saidinha não seria
apenas uma saidinha, ambos sabiam e desejavam isso. Ele compreendeu, dizendo
que a admirava por isso e que mal esperava pelo momento, reiterando que
esperara por isso desde o início do relacionamento que agora Amélia iria
finalizar. Ela riu. Panaca. Safado. Todos iguais. Despediu-se e guardou o celular.
Respirou
fundo e observou os últimos raios de Sol morrendo no horizonte da orla da
cidade.
O que ninguém entendia é que aquele tipo de escolha
não era fácil.
Com a ajuda
daquele cigarro, porém, tudo ficara menos difícil e suficientemente apto de ser
decidido. Não era tão complicado assim quando se tinha tantas e tantas opções
de distração e superação – e, provavelmente, em alguns dias receberia uma
proposta de namoro, casamento ou união transcendental da alma, caso aquele
espiritualista nômade e hippie e hindu ainda estivesse pela cidade. Amélia
terminou de fumar e deu um peteleco do que sobrou dele, levantou-se e foi
embora.
Agora sim estava tudo terminado.