30 de julho de 2015

Amélia e o cigarro



O que ninguém entendia é que aquele tipo de escolha não era fácil.
Isso a estressava com uma enxaqueca irritante, e para enxaquecas, Amélia aprendera com seu avô e amigos que um cigarro pode ser um bom remédio.
Assim ela o acendeu, utilizando a ponta dos dedos como pinças delicadas, movimentos cautelosos, de uma refinação completamente oposta ao bairro periférico e pessoas pobres que cercaram-na a vida inteira. Acendeu o cigarro e o segurou entre aqueles dedos tão delicados e elegantes, sentada no banco ao pôr do Sol. O expediente já havia terminado, o patrão ausente e exigente já fizera as cobranças habituais à distância – o puto velho nordestino nunca dava as caras para auxiliar o que devia ser feito, que seus escravos aprendessem sozinhos! Amélia detestava aquele velho, mas de vez em quando, em devaneios de futuros distantes, até queria ser um pouco como ele, com o lugar que tanto queria alcançar: um casal de filhos grandes, inteligentes e autossuficientes, um punhado de boa reputação e um saco bem pesado de respeito. Amélia queria crescer, só crescer e crescer. Amélia queria mais, queria dignidade, queria distância do mundo sujo que a cercava, queria encontrar um mundo com gente que dava bom dia e esbanjava gentileza, caridade e agradecimento. Amélia queria coisa boa, ela até mesmo queria largar o cigarro, embora estivesse acendendo aquele após exatos seis meses e meio de ter fumado pela última vez. Havia também as coisas que Amélia não queria, e entre elas estava o engarrafamento que pegaria até sua casa, num transporte coletivo abarrotado de gente mau educada, suada e cheia de doenças contagiosas – mentais, sexualmente transmissíveis e mentais, principalmente as mentais. Amélia também não queria continuar naquela existência social da qual havia nascido, desejava dar conforto aos entes queridos e conforto a si mesma, livrar os filhos da vida e ambiente que teve, porém educá-los com os mesmos aprendizados que recebeu. Mas de vez em quando, Amélia até se questionava se realmente desejava colocar um par de crianças inocentes neste mundo, porque isso demandava responsabilidade, perigos, dores e um pai. Amélia não confiava em homens, e não confiava menos ainda em ter de dividir suas crias com um homem – seres intelectualmente perdidos. Duvidava que algum deles realmente prestasse, não somente porque todos com que topou eram assim, mas porque era o que a experiência global e coletiva comprovava. Talvez até dotasse. Sim, com certeza os adotaria.
Eram essas as coisas que Amélia tanto queria e tanto não queria.
Fumando aquele cigarro, havia só uma que tanto a duvidada, apenas uma coisa ela ainda estava inclinada a fazer, porém com um aperto nos úteros que quase doíam como a porra da cólica mensal – quase. Nessa coisa, no entanto, ninguém poderia ajudar, auxiliar ou aconselhar. Ninguém daria respaldo, nenhum livro de protocolos sociais ou experiências alheias poderia dar a ela a grande resposta. Era algo que somente ela poderia fazer e lidar. Por isso fumava o cigarro, porque ele a tranquilizava, porque ele acalmava os pensamentos e afastava todos os impulsos sentimentais de desistir e voltar atrás e tentar aguentar mais um pouco até que as coisas ficassem bem.
Amélia só queria pensar por si mesma, do jeito racional e desprendido que sempre fora antes da chegada e presença do intruso e, sinceramente, longe do engarrafamento que estaria prestes a pegar e da nova rotina que estaria por vir, ela já conseguia enxergar o resto de sua vida com mais clareza e descompromisso. Enxergava a tudo com clareza e discernimento, a razão a tomava e a pessoa-porra-louca que um dia fora e que tanto a deixara em segurança agora retornava rastejando, pouco a pouco se erguendo para finalmente caminhar com os próprios pés descalços – descalços porque Amélia gostava de sentir a terra, a grama e o solo na planta dos pés e na ponta dos dedos. Amélia era mais livre do que imaginava, mesmo tendo se entregado àquela dor de cabeça de vida que sujeitou-se nos últimos dois anos de sua vida.
Amélia era livre demais para juntar-se, para dobrar-se. Amélia era livre demais para que outros não aceitassem seus termos. Amélia era livre demais para sequer imaginar que seu jeito era o jeito errado. Amélia era livre demais para se preocupar com o que antes não se preocupava.
Seu celular então tocou e por um breve momento antes de atendê-lo a garota-quase-mulher observou o Sol se pôr. Leu as mensagens que haviam chegado. Uma mensagem de três emissários diferentes. O primeiro nome ignorou, pois tudo o que ele significava agora estava morto. O segundo nome sorriu de forma fofa, pois aquele emissário era um idiota exibido e queixo erguido, toda engraçadinho quando falava com empolgação da academia e do quão frango estava. Fofo. A sexta-feira era dele. Já o terceiro emissário estava mais próximo dela, convidava-a para sair naquele momento e perguntava se já havia ido embora. Amélia respondeu primeiro a mensagem dele, dizendo que precisava terminar uma relação antes de aceitar qualquer saidinha casual – porque para ela e para ele, a saidinha não seria apenas uma saidinha, ambos sabiam e desejavam isso. Ele compreendeu, dizendo que a admirava por isso e que mal esperava pelo momento, reiterando que esperara por isso desde o início do relacionamento que agora Amélia iria finalizar. Ela riu. Panaca. Safado. Todos iguais. Despediu-se e guardou o celular.
Respirou fundo e observou os últimos raios de Sol morrendo no horizonte da orla da cidade.
O que ninguém entendia é que aquele tipo de escolha não era fácil.
Com a ajuda daquele cigarro, porém, tudo ficara menos difícil e suficientemente apto de ser decidido. Não era tão complicado assim quando se tinha tantas e tantas opções de distração e superação – e, provavelmente, em alguns dias receberia uma proposta de namoro, casamento ou união transcendental da alma, caso aquele espiritualista nômade e hippie e hindu ainda estivesse pela cidade. Amélia terminou de fumar e deu um peteleco do que sobrou dele, levantou-se e foi embora.
Agora sim estava tudo terminado.



1 de julho de 2015

Circo




Eu ri daqueles músculos e o modo como se distribuíam pelo corpo, como eram expostos em fotografias e todas as suas veias e suor e anabolizantes expelidos por substâncias exócrinas e toda aquela coisa técnica que nem eu sei o nome, muito menos eles.
Eu ri de tudo aquilo, e confesso que o fiz por prazer. Confesso ainda que sentia-me superior a tudo: essa devoção ferrenha à construção religiosa de tantos músculos e bíceps e tríceps e quadrociclos e aquela porcaria de música eletrônica tocando na academia, aquela fossa musical e espiritual que me deprimia com tanta comicidade. Confesso que ri – e confesso que, secretamente, ainda o faço bem no fundo. Todos aqueles cabelinhos penteados pra trás com um gel meloso ou a gola V Pólo com manga baby look realçando braços bem torneados e tatuagens tribais. Também obriguei-me a rir das garotas: calças coladas muito bem agraciadas, porém com uma meia quase na altura do joelho com uma cor limão-luminoso que descia até os sapatos de um rosa misturado com alaranjado estilo pisca-pisca da Estrela. Ri também do modo como elas se devotavam aos cantores sertanejos e vestiam exatamente o mesmo tipo de roupa em comitivas de forró, com uma fotografia bem delineada com seus corpinhos bem alienados segurando um copo bem cheio de cerveja na mão – ou outras bebidas, porque “nossa, veja como ela/ele bebe, nossa, que sinônimo de respeito, puta que o pariu, nem tem mais fígado, né? Que invejável. Caralho, tanta gente aí fazendo coisas memoráveis, mas isso, isso realmente é digno de respeito!”. Confesso pela divindade mais bem honrada na história da humanidade que pus-me a rir em escárnio a toda aquela imundice de existência.
Só que enquanto eu ria, havia atrás de mim de braços cruzados, com um fungar irritado nos lábios e uma fúria bem contida. Ela queria me chutar, espancar-me e por-me no chão – claro que metaforicamente. Desejava tudo isso com o mesmo ato que o meu, ela também ria de mim: ria pelas coisas que eu assistia, ria pelos heróis que eu venerava e o modo como eu me divertia dentro de um cinema, na mesma sessão em que uma centena de criancinhas se divertia com igualitária tonalidade. Ela ria pelas leituras que eu possuía (tanto de mundo quanto na cabeceira da cama); ria pela minha aparente e comprovada imaturidade, ria da minha inocência, da minha imbecilidade, dos óculos que eu usava e até do jeito como me portava em determinadas localidades no mundo virtual e fictício. Ela ria inclusive por eu ser criança, ria por ser mais esperta que eu e mais sabida, mais consistente em seus diálogos e todo seu olhar de repulsa pelas coisas que já pensei, vivi e senti. Ela ria pelas minhas costas, ria porque sentia-se superior (e sabia que de fato o era) por eu ter cometido jogadas erradas com peças erradas e parceiros errados, por ter feito cagada e por ser como era – de um modo geral. Ela ria com os braços cruzados, porque sabia que eu era menos, e se não sabia, apenas fingia que era verdade com uma convicção tão violenta que me fazia retroceder e dar o braço a torcer. A pessoa era uma, era duas, era três. A pessoa era mil. E de alguma forma andava aos montes por aí, com uma centena de nomes diferentes e superiores, rindo de mim da mesma forma (que eu garanto) que esses engomadinhos metidos a beberrões e ratos de academia acham-se superiores a alguns ou a todo mundo – mas, ora, nem de longe eles são, certo?!
A pessoa ria pelas minhas costas. Gargalhava. Rolava pelo chão. Apontava os dedos para mim. Sentia a cólica esmagar seus órgãos internos como um alien enfurecido tentando sair do casulo. Ela ria freneticamente. Louca. Lagrimando. Sabendo que eu era um inútil diante dela.
Atrás dela havia mais alguém – provavelmente uma criancinha mimada filhinha de papai de vinte e tantos anos, amante do fervoroso e santificado ato de glorificar a Deus e falar mal dos irmãos, que tinha tudo em casa e frequentava os melhores lugares (ou ao menos desejava ser como aqueles que frequentavam os melhores lugares), que amava declarar amor por comida e sono, que amava ser uma inutilidade ambulante e que amava, acima de tudo, achar-se superior à pessoa que ria de mim.
Eu ria deles, ela ria de mim, e a criancinha ria dela. Todos estão rindo de todos, apontando o dedo e rindo, rindo e rindo.
É um circo desgraçado de primeira, podre, fétido e maléfico, com palhaços indignos de superioridade e respeito caçoando uns dos outros, cuspindo uns nos outros, achando-se maiores enquanto são subjugados por outro lixo qualquer acima deles. Uma porcaria sobre a outra, rolando numa fossa gigantesca: uma hora em cima, uma hora em baixo, em cima, em baixo, em cima, em baixo. Rindo e rindo da miserabilidade alheia. Todos uns palhaços.
 É um circo e tanto.