14 de fevereiro de 2016

Complexo de pagodeiro



Na soma de seus medos mais internos, um dos mais sufocantes era o complexo de pagodeiro. Porque mesmo em seus dias mais altivos, arrogantes e prepotentes, tinha consigo a certeza de que não era tão bom assim quanto se convencia – era apenas uma defesa automática, a resposta tática do medo e do pavor, um mecanismo instantâneo para afastar a depressão do pensamento por ser na verdade tão ruim, desinteressante e trágico.

Mais especificamente, tinha em mente que não era o melhor amante do mundo, não como todo bom pagodeiro costuma cantar. Esses consideravam-se os melhores, e nunca entendiam o porquê a amada ou musa inspiradora não os concediam espaço, chancezinha ou, nos melhores e mais extremos casos, por que a musa havia pulado a cerca e os trocado por outros. 

Pois era simples: nenhum pagodeiro, sertanejo ou bregueiro jamais compreendia o motivo de ser trocado, jamais compreendia que na verdade não era tão bom amante assim, nem o mais galante, nem o mais romântico, muito menos o mais fiel ou reluzente. Nas entrelinhas, para todos os bons observadores da vida, sabe-se que houve um erro, um vacilo maior que fez crescer o desinteresse e a consequente troca. Nas entrelinhas, eis o elemento principal:  ignora a verdade porque julga-se a única singularidade universal, julga-se o único e melhor amante entre 7 bilhões de almas penadas sobre a face da Terra.

Julga um erro um erro trocá-lo, pois é inconcebível superá-lo, é inadmissível não amá-lo.

Era o complexo de pagodeiro que ele tentava evitar e o fazia com profundo êxito. Mesmo quando debochava dos muitos falsos galãs que tentavam confrontá-lo (frisando suas dependências nos campos cognitivos, neurológicos e intelectuais da vida), sabia que não era o melhor amante e não viria a ser (nem ele, nem ninguém). Não existe isso. Mesmo nos instantes de ego inflado sobre seu pódio altivo de onde observava, vindo em sua direção, a incompreensão dos mais belos e o trincar de dentes dos mais “maduros”, musculosos e “espertos”. Havia guardado, no fundo de sua sala restrita, o maior segredo de todos, aquele que talvez alguns já soubessem, porém que poucos efetivamente verbalizavam: era um amante  inútil, imaturo, inapropriado, um amante ridículo, bobo e indiferente. Ele sabia, mesmo em seus instantes de vitória, que não passava de um mero perdedor. Tinha comprovação de que nunca sofreria do complexo de pagodeiro, não da forma como seus inimigos-galãs-de-sorrisinho-fácil-e-esperteza-nata sofriam. 

Mas eles não sabiam disso, embora lá no fundo tivessem uma inconsciente sapiência acerca do fato. Tinham acesso e percepção ao conhecimento, só não sabiam distingui-lo, nem identificá-lo – e nem era de se admirar.

Não se deixaria sofrer pelo complexo de pagodeiro porque, por alguns bons momentos na vida, tivera a comprovação na lata, nuamente, cruamente. Tinha a clara consciência de que não era um bom amante, não porque fora uma vez trocado (ou escondido) pelo bom e descolado rapaz que tinha uma bandinha, nem porque fora outra vez suplantado pelo mauricinho de sorriso cativante que amava preencher o corpo com drogas e fazia delas uma fácil fonte de renda, muito menos porque, mais recentemente, a consorte tivera-o superado em poucas semanas pelo rapaz bonitinho que trabalhava os músculos com religiosa devoção e falava de sexo a todo momento como se fosse um bom transador (quando, na verdade, era do tipo que achava que sexo limitava-se apenas a enfiar o maldito pênis dentro de uma mulher e “correr para o abraço”, como tinha inclusive falhado miseravelmente ao fazê-lo com ela). Possuía clara consciência, nas várias vezes em que fora trocado por outros, que nem de longe era o melhor dos amantes – cada um dos anteriores havia provado isso, mesmo eles sendo amantes piores ainda.Era isso o que doía: a troca. Porém não a troca simples, não a mera substituição, tardia ou não. Aceitaria até as substituições mais rápidas, como a mais recente, porém com um amante – verdadeiramente – melhor. Com um amante que, no fundo, não possuísse o complexo de pagodeiro. Aceitaria a troca até mesmo de bom embora penoso grado, se ela ocorresse com algo melhor que ele – cognitiva, neurológica e intelectualmente, e não apenas porque o bombadinho A ou o Sex Machine B tratavam sua amada da forma como ele pecara em tratar, ao tecer elogios bonitinhos, dar a ela carinhos, apontar grandiosíssimas atenções ou fingir compreender, respeitar e partilhar dos gostos de mundo dela.

Pois se o caso era a troca, então que fosse trocado: não por um pirocudo maior, não por um rapaz mais bonito, mais alto ou frequentador de academia; não por um burro narcisista que batia punheta para o próprio reflexo no espelho, não para um fingidor de compreensão ou para um simulador de boas impressões. Pois se o caso era a troca, então que não fosse trocado por um pagodeiro nato, sertanejo forçadamente apaixonado ou forrozeiro pateticamente safado.

Se era o caso da troca, que não fosse por um lixo qualquer.

Se era o caso da troca, então que fosse por algo melhor – e olha que nem era lá tão difícil assim.