12 de outubro de 2016

Lobos uivam para uma lua nem aí



Eu que sempre serei arruído como Brás foi.
Eu que sempre me considerarei à margem, andando a passos contados e lentos o sobrado de um precipício ou as bordas de um poço. Eu que sempre afogarei no meu próprio reflexo em palavras vagais, sujas e desprezíveis, mesmo quando sei que aquilo não sou eu, não no íntimo, não no palpitar mais profundo. Eu que o farei por um estranho excesso não de humildade, mas talvez de modéstia – não a falsa, apenas modéstia. Direi que minha mente é torpe e lenta, quando na verdade sei que ela vaga a incontáveis milhas por segundo, se é que a ciência permite essa relação. Direi que o monstro que aqui cativo está sempre à solta, descontrolado, desacorrentado, faminto e sedento por destruir o que quer que se aproxime, quando na mais íntima e sincera consciência, sei que o monstro está bem preso, solto apenas em temporadas de desapego e traição. Eu que o farei na ausência de pretendentes, exatamente como o Universo conspira para ser – pois só assim, só assim, na solidão e na carência, há realmente algum tipo de paz.
Direi que sou sujo, direi que sou canalha, embora eu saiba, bem no fundo, que isso é apenas o que querem de mim, que é o mais aceitável e o mais plausível pelo estilo de vida que levo, os tipos de linhas que escrevo, os heróis que venero ou os livros que leio. Certa vez uma distante, longínqua e passada admiradora odiou-me ao saber que eu, em meio a palavras tão bem articuladas já naquela época, pouco sabia a respeito da verdadeira artimanha entre corpos, amores e vivências. Ela me odiou por eu não corresponder às linhas e pela verdade ser muito mais sem graça do que a mentira que ela tanto quis acreditar. Odiou-me não por eu mentir, mas por ter caído no engano que suas próprias expectativas acerca de mim a seduziram. Mas eu cresci, querida. Hoje tornei-me o que você queria, embora nem sequer lembres de mim, embora nem eu mesmo consiga enxergar qual a sedução nisso.
Não há.
Pois eu já venci o embate de saber quem sou, já descobri a resposta: sou, para cada um, o que quiserem que eu seja. Pois como pisciano desgraçado, volúvel e idiota, dobrar-me-ei aos pés da primeira que me cativar e por ela farei tudo. Tudo. Doar-me-ei sem o menor pudor e meu coração entregarei de novo, de novo, de novo e de novo e quantas vezes ele puder ser desgastado, açoitado e molestado, porém devolvido para a próxima pisada. E serei de novo fiel – gritarei ao mundo sem vergonha, sem desleixos, sem o menor escrúpulo. Odiarei e criarei guerras. Assumirei lados que nunca ousaria assumir e farei inimigos pelo bel prazer da satisfação companheira. Serei fiel diante de meus próprios erros: como sempre e desde o início, direi o que sou, perdido, melancólico, viciado pela dor e fissurado no triplo carpado suicida. Pois eu vou fundo, vou fundo apenas se, primeiramente, me permitirem ir. Pois sem permissão eu não vou, sem permissão eu não me apego, sem permissão eu não amo. Não qualquer uma, não assim com grande frequência, não como as vãs crianças desta geração insistem tão rapidamente amar, não de mês em mês ou de seis em seis meses – de cinco em cinco anos já é um ótimo prazo, como bem tem sido e como bem há de ser, que continue assim. Serei fiel ao dizer o que sou desde o início, serei fiel por cada aviso prévio proferido, embora todas elas detestem o “eu te avisei” quando os fins trágicos se anunciam. Serei fiel sobretudo na fidelidade (e que todos ignorem as redundâncias): quando digo que, não, eu não a trocaria por outra, mesmo nas temporadas de cinzas, mesmo nas épocas de quarentena, é porque jamais trocaria. Pois eu nunca troquei, pois eu nunca nem sequer segui ao chamado da tentação, embora ele estivesse ali, latejando e me chamando como uma Nereida maldita.
Serei eu afugentado para sempre com os mesmos dilemas e as mesmas substituições. Eu não sou perfeito, talvez me falte um punhado de músculos, centímetros, clube de futebol para me fascinar ou um violão para tocar. Talvez, para a perfeição, falte-me a manha de um bom macho alfa com a coragem para impedi-las de sair, para impedi-las de vestir certa roupa, para impedi-las de passar um batom vermelho e, sobretudo, impedi-las de existir e de conhecer, lá fora, o próximo rapaz a me substituir. O problema é que eu sempre permito, de um jeito ou de outro, embora acabe surtando com o resultado ao fim do processo. Acabo por não ser o macho alfa tão perfeito e desejado que elas tanto dizem odiar, porém terminam sempre a buscar. Estou sempre idiotamente permitindo, sempre deixando que vivam, embora digam que nunca permiti, embora culpem-me por prender, quando na verdade deixei janelas e portas abertas para que partissem ou para que decidissem voar. E elas sempre voam.
Então fico aqui com esses textos. Da última tão gloriosa, inesquecível e nostálgica vez (a vez que não causou dor, apenas desejos de retorno e sonhos utópicos), espalhei aos ventos palavras que talvez nunca tenham de fato alcançado sua dona. “Outro texto perdido de amor” foi como chamei todas aquelas palavras destinadas a ela. Talvez ela tenha lido, talvez não. Muito provavelmente julgou que para outra eram as palavras que por anos a dediquei. Não importa. Hoje tudo não passa de memórias e agradáveis saudades. Foi bom e prazeroso o exercício da dedicação, mesmo muitos taxando-me de covarde e imbecil.
Foi bom e prazeroso ser um covarde imbecil.
Se todas essas palavras alcançaram seus objetivos, no passado, no presente ou nas areias incertas do futuro, isso eu jamais saberei.
Talvez tenham encontrado suas destinatárias, talvez tenham se perdido.
É como alguém disse uma vez: lobos uivam para uma lua nem aí.