Um brinde aos poetas
FSRN
Nessa vida eu queria ser poeta.
Queria ter nascido com aquela veia pulsante, aquele olhar diferente,
aquele suspiro insano ou aquele arfar desesperado. Queria ter o toque singelo,
tanto com as mãos, quanto com os olhos. Queria saber cantar, manusear um
instrumento musical ou compor como as grandes ou pequenas estrelas. Queria ter
aquele charme artístico que faz as garotas suspirarem, mesmo com a beleza pouco
agraciada. Queria ter o falar pomposo ou talvez o controle da língua, a
ausência dos preconceitos e a inexistência da raiva. Queria ser mais recheado
de amor e inspiração do que toda a cólera misantrópica que tanto me corroeu a
alma.
Queria que de mim as pessoas recordassem com amor, com um sorriso,
com um leve e fugaz desejo de posse, saudade ou inveja - inveja das
boas, não das más. Queria despertar lágrimas de saudosismo, de
esperanças, de ternura e de felicidade. Queria, em sincero, ter poesia na alma
e sensibilidade no peito, escrever versos, redigir grandiosos sonetos e
arranjos geniais, desses que perduram no tempo, independente da fama ou do
anonimato. Queria ser como esses belos e famosos rapazes com nome de Nhoc,
ter a habilidade para arrancar suspiros com uma boa letra ou pelo menos o gosto
de apreciar as composições feitas por eles – porque é sinal que já vale alguma
coisa, qualquer coisa. Queria ser tão
poeta quanto esses bons rapazes, por mais que estejam fingindo poesia ou
fingindo a delicadeza da visão de mundo.
Queria, aliás, fingir ternura e calcular sensibilidade.
Queria deter a capacidade de mentir, de fazer isso por dizer que o faço
espontaneamente, quando na verdade o faço para tocar bocas e embrenhar lençóis.
Queria conquistar prêmios, receber elogios verdadeiros, não os apaixonados, não
desses afetivamente questionáveis. Queria fazer um dueto com a famosa
A ou a queridinha B, queria que elas viessem até mim
pelo talento que possuo.
Talento.
Queria ter talento. Queria ser o poeta que semanalmente minha amada venera, em prestigiada
coluna de opinião ou em magistral crônica chocante. Queria que, em algum
lugar, antigas musas guardassem palavras minhas como última lembrança – uma
boa, uma verdadeiramente digna de ser revisitada, não as migalhas negras que
ultimamente venho deixando. Queria, com um ímpeto adolescente e romântico, ser
aquele invejável rapaz admirado num círculo ou outro. Queria com esse mesmo
ímpeto ser um grandiosíssimo rapaz com real talento para as artes, futuro
promissor na literatura ou um nome que nas areias do tempo se fará retumbante.
Queria em verdade ser poeta e tudo o que com isso acarreta: um drink
aleatório, um vício em cigarro, uma sala repleta de livros (lidos), um
casal de filhos com diferentes aptidões às artes, um animal doméstico
preguiçoso, gordo e manhento com nome de filósofo austríaco; chapéus esquisitos, passaporte e um passeio
em Roma, mesmo que no verão, mesmo que numa tarde de reconciliação. Queria
os estereótipos: seria e beberia cada um deles. Queria até mesmo uma barba
malfeita, com toque de intelectualidade à minha defasada mente retrógrada.
Queria depender um pouco mais dos óculos de grau e queria não detestar usá-los.
Queria ser um pouco mais sábio, um poeta esperto, um ser humano menos lento,
menos lerdo, menos vergonhoso. Queria ser desses que batem no peito e dizem que
conseguirão o prato de comida do dia seguinte com um punhado de trabalho duro. Queria de fato ter força e ânimo para
duramente trabalhar. Queria saber fazer um terceto, queria ter o talento
para esculpir uma rima. Queria desenhar ao término de um poema as curvas de uma
amada ou as pernas de uma amiga libertina.
Queria compor verso magnífico, romance pomposo. Queria que estas
palavras um dia tivessem valor, pois nos dias de hoje qualquer asno com um
pouco de drama consegue “lapidar” prosa e fazer “poesia” – olhem para
mim, olhem para todos os outros: qualquer asno, qualquer menininha
revoltada ou rapazinho desiludido, qualquer moço afetado e propositalmente
autodepreciativo ou qualquer galã mal-intencionado (“as menininhas vão amar
isso daqui”) ou qualquer monocromático desprezado por pai, mãe, amado,
amada ou Calíope fingirá aptidão à poesia.
Qualquer um.
Queria bem ser como os homens que minhas amadas amaram, amam ou amarão.
Queria bem ser comparado a eles: com os dotes, com as vozes, com o
talento, com cada ressonância artística derradeiramente relevante para um pódio
fixo na memória de longa data. Queria que em sessenta e sete anos, Lúcia, em
uma forte crise de gradativo Alzheimer, citasse meu nome e o poema que para ela
fiz após uma transa inesquecível, despedida melancólica ou relação
pateticamente platônica.
Queria que um jovem paspalho, virgem e perdedor, em uma mesa de bar,
pensasse em meu carcomido nome com inspiração e gritasse aos amigos:
- Um brinde aos poetas!
Pois com veia poética não se nasce, nem veia poética se lapida – não
para os desprovidos de sorte, não para os desafortunados.
Queria ser poeta, não desses que aleatoriamente qualquer degradação
linguística ousam chamar de literatura suas detestáveis linhas e sua humilde
prosa. Queria ser poeta, mas poetas de verdade são aqueles que na vida têm
sorte – sorte para a veia, para a sensibilidade, para o amor e para o digno
desastre.
Queria que alguém por mim gritasse, em uma mesa de bar ou no ecoar do
tempo.
Se, eu poeta tivesse nascido, queria que gritassem: um brinde!