3 de junho de 2016

Sobre café matinal



Um gole de café e ela remexeu-se sobre a cama.
Uma sorvida no líquido fumegante e ela abriu os olhos, levemente desorientada. Os cabelos eram longos e perdiam-se num emaranhado esquisito de matinal e natural beleza. Segurei a xícara pela alça e revezei o olhar entre meu reflexo no café preto e as pernas dela, tão longas quanto as estradas que sempre me levavam em sua direção, tão sinuosas quanto tudo o que enfrentei para estar ali e até mesmo meio esburacadas: uma celulite perdida em meio a uma sutil dobrinha, outra celulite sob as redondas e bem formadas nádegas – ou talvez nem fossem lá tão redondas assim, talvez atém fossem murchas ou pequenas demais, deformadas demais, feias demais, talvez mais esburacadas que os meus olhos pudessem ver.
Admirei-a abrir e esfregar os olhos gradativamente despertos, imaginei se a mulher que agora estava embaixo de menos de um terço de lençol, de fato era tão bela assim. Imaginei se aquilo tudo não passava de mera superestimação dos meus olhos, que agora encontravam-se perdidos demais naquela linda mentira para descobrir a – talvez – monótona verdade. Em sincero? Não que eu ligasse, porque eu não ligava. Na atual conjectura, talvez (muito provavelmente) eu até soubesse de seus defeitos: as celulites nas pernas, as pontuais cicatrizes nas canelas, os eventuais hematomas nos joelhos e as bem distribuídas acnes nas costas. Enquanto continuei a tomar meu primeiro café da manhã, imaginei que talvez meu inconsciente soubesse que ela não era lá tão linda assim, mas mantinha-se calmo e tranquilo, em momento algum querendo reivindicar a soberania que o consciente atualmente tinha em cegar-me os olhos e coração ao estampar, por entre todas as vielas e muros de meu corpo, que não havia coisas mais ímpar, gostosa e magnífica que ela – aquele corpo, aquelas pernas, aquele par de seios milimetricamente esmerados e aquele sorriso meio infantil, meio pilantra, aquele par de olhos castanhos e aquela pele que nunca desistia de aromatizar minhas narinas ou nunca desistia de impregnar-se na ponta dos meus dedos.
O dia lá fora acordava e ela também, revirando-se na cama no mesmo ritmo preguiçoso da grande estrela. Esticou-se como um gato, girou o quadril e o lençol caiu, revelando a calcinha branca e barata, com desenhos toscos e imbecis. Passou a mão pelos cabelos na tentativa de arrumá-los ou na vã tentativa de retirá-los no rosto. Bocejou e mergulhou o rosto pequeno de traços finos de volta ao travesseiro. Sorvi o café. Logo em seguida ela aninhou as pernas às pernas ao lado da sua, acariciou pés com pés, a ponta dos dedos de esmaltes desgastados com dedos masculinos – sem esmaltes, sem esmeros, sem a mínima beleza. Depois dos pés, foi o resto do corpo a se aninhar, ao ponto de que no instante seguinte os dois corpos mais pareciam um.
Uma boa forma de se acordar, imaginei.
Ela apertou um dos braços em volta do outro corpo e tirou o rosto do travesseiro, obrigando-se a manter os olhos abertos. Inclinou-se para um beijo de bom dia e o fez, alongando-se demais no tempo dele – não que fosse algo ruim. Bom dia, ela disse com um sorriso meio brincalhão, meio envergonhado. Até pude entender o motivo do desconcerto: era sua primeira vez naquela cama; era sua primeira vez completamente nua e despreocupada naquele quarto; era sua primeira vez inteiramente manhosa e sedutora ao lado deste homem; era sua primeira vez que ali adormecia e ali despertava. Nesse instante, bebi um pouco mais de café e balancei sutilmente a cabeça, perdido em meio ao sorriso dela.
Eu o amava com boa parte de minhas forças. Era um bom sorriso, era um bom sorriso a se ficar imaginando.
Ela então recebeu outro sorriso e outro beijo como resposta, teve seu corpinho delicado, porém rijo, ser apertado em volta dos ombros. Daí aninhou-se outra vez, sempre buscando um centímetro a mais a ser aplacado.
Quando o sol entrou por uma fresta da janela e tocou-lhe as costas nuas, esquentando sutilmente corpo e espírito, ela já despertara por completo. Lembrou-se da noite passada, lembrou-se do valor dos suspiros, lembrou-se como as pernas ficaram trêmulas e as articulações quase doloridas e exaustas – aquilo tinha valido a pena. Por mais alguns poucos minutos, em meio a um beijo mais acalorado e outro, ela visivelmente despertou dentro de si algo muito mais além que a disposição ou o ânimo. Despertara aquilo que a fizera desmaiar no sono, despertara aquilo que arrancara da pele macia demasiado suor.  
Queria outra dose.
Foi aí que pus a xícara de café sobre o balcão e respirei fundo. O resto foi com ela: girou sobre o corpo e ficou em cima, movimentou o quadril, acariciando e excitando, no mesmo ritmo em que acordara – lenta e preguiçosamente.  O sorriso retornou, mas agora havia algo diferente nele, algo que estivera ali na noite passada, quando o sol ainda não raiara e o silêncio da madrugada fora interrompido por seu intenso arfar de voz suave.
Bem devagar, ela cavalgou. Jogou os longos cabelos para trás e deixou-se guiar pura e instintivamente pela vontade do próprio corpo. Ignorou a leve dor nos quadris, ignorou o pequeno peso sobre as costas, ignorou os roxos doídos na nuca e nas costelas, ignorou a leve sensação de puxão que ainda pulsava doloridamente no couro cabeludo. A mente há muito já estava desligada e também há muito ignorava cada flagelo no corpo – porque no fundo queria apenas mais de cada um deles.
Cavalgou.
Cavalgou um pouco mais e em seguida arredou aquela calcinha cafona para o lado. Sustentou o peso do próprio corpo com ambas as mãos espalmadas no peito do cara entre suas pernas, arqueando e afundando a ponta dos dedos de unhas afiadas entre os mamilos dele. Mordeu o lábio inferior com força demais enquanto fitava o rosto bruto de barba bem feita e pele bronzeada do belo rapaz ali embaixo.
Aí então ela fechou os olhos e continuou a cavalgar.
Suspirei um pouco mais profundamente nesse momento e voltei a pegar a xícara. Tomei uma golada de café longa demais que desceu dilacerando língua e garganta. Bati-a sobre o balcão e gemi.
- Puta merda. – E me afastei, quase derrubando o café entre as pernas e ensopando a roupa.
- Cuidado. – Disse o tiozinho atrás do balcão que servia pão e café para uma senhora ao lado que também me olhou preocupada.
- Pode deixar. – Assenti, com um sorriso atrapalhado em direção aos dois.
Recomposto, sentei de volta no banco e olhei para o primeiro telejornal do dia.
O sol nascia.
Contemplei mais uma vez meu reflexo no café preto e pestanejei, tentando tirar o pensamento da porra da cabeça que lá fora, em alguma outra cama, ao lado (ou mais precisamente em cima) de qualquer outro cara, era ela quem iniciava o dia da melhor forma possível, não eu.
Seja lá quem ele fosse, seja lá o que a levara até ali, era porque essa tinha sido sua vontade. Se ela estava na cama de qualquer outro por livre e espontâneo prazer, sacanagem e tesão, então o cara valia a pena. Ele tinha algo melhor a oferecer.
- Sexo é sempre mais fácil pra elas. Que inveja. – Dei de ombros, falando com o tiozinho do pão. A senhora ao lado limitou-se a esbugalhar os olhos. Tomei o que sobrara do café e apontei para a xícara, pedindo outra dose. – É sempre bom imaginar esse tipo de coisa pela manhã.
É sempre bom.
Revigorante.