Eu que sempre serei arruído como Brás
foi.
Eu que sempre me considerarei à
margem, andando a passos contados e lentos o sobrado de um precipício ou as
bordas de um poço. Eu que sempre afogarei no meu próprio reflexo em palavras
vagais, sujas e desprezíveis, mesmo quando sei que aquilo não sou eu, não no
íntimo, não no palpitar mais profundo. Eu que o farei por um estranho excesso
não de humildade, mas talvez de modéstia – não a falsa, apenas modéstia. Direi
que minha mente é torpe e lenta, quando na verdade sei que ela vaga a
incontáveis milhas por segundo, se é que a ciência permite essa relação. Direi
que o monstro que aqui cativo está sempre à solta, descontrolado,
desacorrentado, faminto e sedento por destruir o que quer que se aproxime, quando
na mais íntima e sincera consciência, sei que o monstro está bem preso, solto
apenas em temporadas de desapego e traição. Eu que o farei na ausência de
pretendentes, exatamente como o Universo conspira para ser – pois só assim, só
assim, na solidão e na carência, há realmente algum tipo de paz.
Direi que sou sujo, direi que sou
canalha, embora eu saiba, bem no fundo, que isso é apenas o que querem de mim,
que é o mais aceitável e o mais plausível pelo estilo de vida que levo, os tipos
de linhas que escrevo, os heróis que venero ou os livros que leio. Certa vez
uma distante, longínqua e passada admiradora odiou-me ao saber que eu, em meio
a palavras tão bem articuladas já naquela época, pouco sabia a respeito da
verdadeira artimanha entre corpos, amores e vivências. Ela me odiou por eu não
corresponder às linhas e pela verdade ser muito mais sem graça do que a mentira
que ela tanto quis acreditar. Odiou-me não por eu mentir, mas por ter caído no
engano que suas próprias expectativas acerca de mim a seduziram. Mas eu cresci,
querida. Hoje tornei-me o que você queria, embora nem sequer lembres de mim,
embora nem eu mesmo consiga enxergar qual a sedução nisso.
Não há.
Pois eu já venci o embate de saber
quem sou, já descobri a resposta: sou, para cada um, o que quiserem que eu
seja. Pois como pisciano desgraçado, volúvel e idiota, dobrar-me-ei aos pés da
primeira que me cativar e por ela farei tudo. Tudo. Doar-me-ei sem o menor pudor e meu coração entregarei de
novo, de novo, de novo e de novo e quantas vezes ele puder ser desgastado,
açoitado e molestado, porém devolvido para a próxima pisada. E serei de novo
fiel – gritarei ao mundo sem vergonha, sem desleixos, sem o menor escrúpulo.
Odiarei e criarei guerras. Assumirei lados que nunca ousaria assumir e farei
inimigos pelo bel prazer da satisfação companheira. Serei fiel diante de meus
próprios erros: como sempre e desde o início, direi o que sou, perdido,
melancólico, viciado pela dor e fissurado no triplo carpado suicida. Pois eu
vou fundo, vou fundo apenas se, primeiramente, me permitirem ir. Pois sem
permissão eu não vou, sem permissão eu não me apego, sem permissão eu não amo. Não
qualquer uma, não assim com grande frequência, não como as vãs crianças desta
geração insistem tão rapidamente amar, não de mês em mês ou de seis em seis
meses – de cinco em cinco anos já é um ótimo prazo, como bem tem sido e como
bem há de ser, que continue assim. Serei
fiel ao dizer o que sou desde o início, serei fiel por cada aviso prévio
proferido, embora todas elas detestem o “eu
te avisei” quando os fins trágicos se anunciam. Serei fiel sobretudo na fidelidade
(e que todos ignorem as redundâncias): quando digo que, não, eu não a trocaria
por outra, mesmo nas temporadas de cinzas, mesmo nas épocas de quarentena, é
porque jamais trocaria. Pois eu nunca troquei, pois eu nunca nem sequer segui
ao chamado da tentação, embora ele estivesse ali, latejando e me chamando como
uma Nereida maldita.
Serei eu afugentado para sempre com
os mesmos dilemas e as mesmas substituições. Eu não sou perfeito, talvez me
falte um punhado de músculos, centímetros, clube de futebol para me fascinar ou
um violão para tocar. Talvez, para a perfeição, falte-me a manha de um bom
macho alfa com a coragem para impedi-las de sair, para impedi-las de vestir
certa roupa, para impedi-las de passar um batom vermelho e, sobretudo, impedi-las
de existir e de conhecer, lá fora, o próximo rapaz a me substituir. O problema
é que eu sempre permito, de um jeito ou de outro, embora acabe surtando com o
resultado ao fim do processo. Acabo por não ser o macho alfa tão perfeito e
desejado que elas tanto dizem odiar, porém terminam sempre a buscar. Estou
sempre idiotamente permitindo, sempre deixando que vivam, embora digam que
nunca permiti, embora culpem-me por prender, quando na verdade deixei janelas e
portas abertas para que partissem ou para que decidissem voar. E elas sempre voam.
Então fico aqui com esses textos. Da
última tão gloriosa, inesquecível e nostálgica vez (a vez que não causou dor,
apenas desejos de retorno e sonhos utópicos), espalhei aos ventos palavras que
talvez nunca tenham de fato alcançado sua dona. “Outro texto perdido de amor” foi como chamei todas aquelas palavras
destinadas a ela. Talvez ela tenha lido, talvez não. Muito provavelmente julgou
que para outra eram as palavras que por anos a dediquei. Não importa. Hoje tudo
não passa de memórias e agradáveis saudades. Foi bom e prazeroso o exercício da
dedicação, mesmo muitos taxando-me de covarde e imbecil.
Foi bom e prazeroso ser um covarde imbecil.
Se todas essas palavras alcançaram
seus objetivos, no passado, no presente ou nas areias incertas do futuro, isso
eu jamais saberei.
Talvez tenham encontrado suas
destinatárias, talvez tenham se perdido.
É como alguém disse uma vez: lobos
uivam para uma lua nem aí.