3 de dezembro de 2017

Carolita




Cai lá fora a chuva de Belém.
Eu a vejo pela janela escorrendo no vidro em veios transparentes, oblíquos. Porém que saibam todos: isso é um fragmento de memória, um breve lampejo de três segundos na tela do cinema, uma cena desconexa, perdida diante de olhos que ainda se adequam ao que está por vir.
Cena introdutória, misteriosa e a princípio irrelevante.
Cena fictícia, não factual.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito.
Distante, o som tão igualmente pode ser dos pingos contra o asfalto mal pintado ou das calçadas irregulares quanto tão igualmente pode ser o som de fiapos de bacon fritando em óleo vencido ao fundo na cozinha, onde pés descalços número 36 tendem a caminhar.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito de novo.
Em outro lampejo, Carolina me pergunta, curiosa:
- Como tu fazes isso?
- Como eu faço o quê?
- Todos esses contos: de onde eles brotam? – Os dedos esqueléticos, sinuosos e elegantes de Carolina bailam pelos meus cabelos, depois apertam meu crânio como se eu fosse bicho esquisito.
Ela sabe que sou um bicho esquisito.
- Brota de tudo e de nada, Carol.
- Mas como é? – Ela se aproxima cada vez mais perto, cada vez mais curiosa. A respiração está quente, um fio de suor escorrendo pela testa como o fio oblíquo da chuva a escorrer pela janela. Também está chovendo neste lampejo quando ela insiste: – Como é? Como funciona? Como tu fazes?
- É normal como qualquer outro trabalho ou como fritar um ovo.
- Como assim?
- Às vezes o ovo sai bom, às vezes você queima a frigideira.
- E a inspiração?
- O que tem ela, Carol?
Ela sorri e se aproxima um pouco mais, movendo os dedos entre meus cabelos como aquelas garrinhas que você encontra no comércio e que te massageiam o couro cabeludo e te dão arrepios e quase te dão orgasmos e te levam de mãos dadas ao seu Buda interior.
- Tu esperas a inspiração?
- Não. Tu precisas de inspiração pra fritar um ovo, Carol?
- Não, não preciso.
- Eu também não preciso de inspiração. Nem pra escrever, nem para fritar o ovo. Inspiração não existe, tu fazes sem ela ou tu morres de fome.
- Eu te vejo nessa cama há três semanas e tu não escreveste nada. Tá esperando a inspiração? – Provocou ela, debochada.
- Não, só tô morrendo de fome.
Carolina sorriu. Desses sorrisos que tornam-se lampejos eternos e poemas que você sempre repetirá, não importa o quanto se desligue de sentimentalismos e experiências próprias.
- É assim que funciona.
- Entendi.
Carolina se deu por satisfeita. Utilizou os dedos para carícias que não faziam-me parecer o animal esquisito que ambos sabíamos que eu era. Lá fora, a chuva de Belém continuou a cair e meu dei satisfeito por vê-la através da janela e por ter Carolina aqui ao lado.
Aqui termina o primeiro lampejo de Carolina: a memória transcorrida ligeira, foto borrada de movimento, alguém pulando ou correndo ou mexendo o rosto porque riu e não manteve a pose. Aqui Carolina se distancia com suas perguntas meio bobas, a risada despretensiosa, o jeitinho curioso de pensar e a ligeira capacidade de apanhar explicações complexas sobre fluxos de consciência ou movimentação quântica de átomos.
Agora, no entanto, Carolina ficou para trás.
Agora, no entanto, Carolina ficou um tanto quanto distante, como também ficaram distantes a chuva de Belém e a janela de vidro com o veio de água a escorrer, oblíquo. O suor de Carolina também ficou para trás, aquele suor sorrateiro descendo da testa que sempre fazia germinar tais perguntas curiosas.
Cai lá fora a chuva de Belém, ouso repetir novamente.
Embora o lampejo agora seja outro, eu continuava ainda sem escrever há semanas. Carolina outra vez pergunta:
- E quando as palavras não saem e precisam sair, como tu fazes?
“Boa pergunta, Carolita”, sussurro mentalmente. Na janela de vidro não há veios, na página em branco não há letras, não há vocábulos, não há estrofes simples, não há sonetos vagabundos com rimas previsíveis, não há prosa poética, não há prosa, não há linha, não há tecidos, não há dignas tecelagens.
“Boa pergunta, Carolita”, sussurro mentalmente, e então levanto, sento na cadeira diante do computador e abro a página em branco. Acaricio os teclados como acariciaria a bochecha de Carolina depois da briga infernal que quebrou metade da nossa estante e os meus discos do Bob Dylan.
Respondo a ela:
- Hemingway disse que quando sentia dificuldades, o truque mais simples que possuía na manga era escrever a frase mais sincera que conhecia. Ele escrevia a frase mais sincera e então acho que soltava a fera criativa que havia lá dentro.
- É esse truque que tu usas?
- Mais ou menos. Às vezes, escrevo a frase mais sincera. Às vezes, escrevo a frase mais simples.
- Escreve uma agora. – Desafiou ela.
Pensei por um instante antes de começar a digitar. Ela prostrou-se sobre os meus ombros e leu em voz alta:
- “Cai lá fora a chuva de Belém”.
Ela olhou para a janela seca e depois de volta para mim.
Carolina apenas sorriu.
E na penúltima vez, repito: cai lá fora a chuva de Belém.
O toró inunda a cidade e transborda os canais baixos, os raios iluminam os céus e estremecem o solo paraense onde as raízes cada vez mais fracas e centenárias das árvores balançam e fazem cair mangas, galhos, fios e postes elétricos. Na altura deste penúltimo lampejo, o solo estremece com trovões.
Algumas coisas parecem ter morrido.
Carolina sabe disso, os dedos dela não estão curiosos entre meus cabelos, muito menos as mãos prostradas sobre meus ombros e lendo o que escrevo, pois não estou escrevendo. Tudo o que faço é olhar pela janela, a mesma chuva sobre a mesma cidade, o mesmo veio oblíquo correndo diante dos meus olhos.
Carolina está sentada na ponta da cama, cheia de perguntas e cheia de outras reticências também. Ela finalmente pergunta:
- Me diz uma coisa?
- Claro.
- Quando escreves e sentes que não ficou do jeito que querias, tu jogas fora?
- Não.
- Escreves tudo de novo?
- Não.
- O que tu fazes?
- Eu volto ao texto. Leio. Releio. Repasso. Leio em voz alta. Encontro às vezes rima barata, encontro quase sempre rima necessária. Aparo as pontas, quebro parágrafo, excluo frase solta, desnecessária. Enxugo o que anda molhado demais, lubrifico o que precisa melhor se mover. Quebro, excluo, mato e regenero. Leio. Releio. Repasso. Leio em voz alta, eloquente. Faço de mim outro, faço de mim não eu, mas o outro, o outro universal, o outro sentado do outro lado do mundo, o outro que nunca conhecerei e que nunca saberei que por aqui passou. O leitor, sabe?
- E aí? O texto tá pronto?
- E aí o texto tá melhor.
- E aí tu resolveste o problema dele?
- Sim.
- E quando ele tá bom?
- O que que tem?
- Tu deixas ele bom do jeito que tá?
- Eu volto e ajeito. Corrijo. Aparo. Melhoro o que pode ficar melhor.
- Melhora o que pode ficar melhor?
- Sim.
- Se daqui a 10 anos tu voltares ao texto, ainda podes mexer nele?
- Claro.
- E ainda podes melhorá-lo?
- Posso.
- Então o segredo é só voltar e voltar e voltar pra melhorar? Pra corrigir?
- Sim.
- Oh.
Ela deixou o “oh” escapar por entre os lábios de maneira despretensiosa, os olhos castanhos perdidos entre a roupa suja no canto do quarto. Ela estava nua na ponta da cama, costas lisas, imperfeitamente perfeitas, a respiração leve e controlada, porém o sutil veneno na voz, a sonsa indireta que fingi não entender.
Não estávamos falando sobre textos, é claro.
Ou estávamos?
Então respiro fundo e respondo sob a máscara da ingenuidade, jogando o jogo indireto dela:
- Mas as vezes você não volta, não é certo voltar e lapidar sempre o texto.
- Por que não?
- Porque ele perde a identidade. Às vezes é preciso parar.
- Ah, é? – Perguntou com o mesmo tom de novo.
- É. – Respondi com o mesmo tom de novo.
Ela assentiu e coçou a cabeça, sonolenta.
Carolina vestiu a calcinha e a camiseta, igualmente cansada de tentar o que já não funcionava, o que já não fluía, o que já não lubrificava, o que já não suspirava e o que já não se consumia e não consumava. Algumas coisas na vida acabam por não ter solução e não importa o quanto você volte,
volte e
volte e
volte
e
volte, até com lapidação elas não se lapidam,
não melhoram,
simplesmente terminam.
Na manhã seguinte, Carolina me deu um beijo longo demais na bochecha e me apertou os braços com as unhas pintadas de laranja. Atravessada ao corpo, a alça da bolsa pesada, inchada de coisas.
- Não esquece de levar o resto das minhas coisas na segunda, tá?
- Tá.
Mais um beijo e Carolina se foi.
Fim do penúltimo lampejo.
É Abril e agora chove lá fora.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito novamente, este é o último lampejo de Carolina.
Ela entra pela primeira vez em meu quarto, os cabelos molhados e os pés descalços, a toalha que dei a ela estendida nos ombros como um poncho de crochê. Carolina mora do outro lado da cidade, Belém já não oferece tanto transporte público às duas da manhã e ela não pode voltar,
acaba me pedindo para dormir aqui.
Mas já sabíamos que pararíamos aqui.
A noite inteira nos trouxe até aqui.
- Olha – Carolina, meio bêbada, abre um sorriso e puxa um livro da estante – Eu tinha uma ex que estudava Letras e ela enchia a boca pra dizer que tava lendo Faulkner, que Faulkner isso, que Faulkner aquilo.
- E aí?
- Aí eu fui ler.
- E aí?
- Terminei O som e a fúria primeiro que ela.
- Claro que terminou.
- Acho que ela abandonou o livro.
- Estudantes de Letras e seus egos inflados. – Bocejei, igualmente bêbado. Sentei na cama e sorri. – Eu nunca li Faulkner.
- Então por que tens ele aqui?
- Tava na promoção e eu precisava de referência pra um capítulo.
- Conseguiste a referência?
- Uhum.
- Terminaste o capítulo?
- Sim.
- E o livro?
- Um dia eu leio, Carolita. – Dei de ombros, zombeteiro. – Sem pressa.
Ela riu de novo e fez uma careta estranha. Era a primeira vez que eu a chamava de Carolita.
- Ninguém nunca me chamou assim. – Ela pôs o livro de volta na estante e veio até mim. Prostrou-se sobre meus ombros. – Como escritor tu és uma farsa.
- Inteiramente. – Concordei com ela.
Então me beijou.
Cai lá fora a chuva (torrencial) de Belém e na janela um veio de água se forma.
Oblíquo.
Alguns lampejos permanecem mais que outros,
alguns lampejos nunca se vão.





23 de novembro de 2017

Linhas côncavas



Linhas,
linhas côncavas,
linhas sob as digitais, linhas entre as palmas. Linhas comigo, em cima, em baixo, linhas in, linhas sobre e linhas sob. Linhas sob a luz da sala apagada e linhas sob a luz da cozinha inerte, diante dos meus dedos, iluminadas, vivas, acesas. Linhas de madrugada, ansiosas e verdadeiras em despirem-se, verdadeiras em exibirem-se serenas ou afoitas. Linhas que sobre mim não se controlam, embora quem a fingir quase-controle seja eu: embasbacado em admirá-las, tolo em afagá-las com dedos, boca e língua. Do corpo feminino, depois de cabelos, depois de unhas, depois de olhos e depois de dedos, eu admiro os seios: são eles milimetricamente posicionados para acolher não a face inteira, mas a lateral do rosto, num acalento estrategicamente orquestrado pela genética feminina; não importando se grandes, não importando se medianos e não importando se pequenos, não importando se um desconcertado broto ou não importando se tão belos e colossais; estão sempre ali, às vezes em sincronia, às vezes acanhados, às vezes sem pudor e às vezes paradisíacos em simetria.
Desejei, tão falho, escrever sobre tuas linhas.
Desejei, tão falho, falar sobre os teus seios, acalantos arredondados, discretos, não dos pequenos que por aí encontrei e tanto venerei, mas desses quase-medianos, com linhas côncavas, insanamente esculpidas pela natureza, pela genética ou pelo Desenhista Universal, O Arquiteto Criador de céus, mares, galáxias e seios.
Desejei, falho, falar sobre eles sem soar agressivo, torpe e violento, sem soar misógino como aquelas duas meninas (que sempre revezam nomes e aparências aonde quer que eu vá) bem disseram que eu era, quando, horrorizadas, escutaram a leitura minha de um conto, crônica ou poema em volta da roda. Algumas delas levantaram-se. Outras reviraram os olhos. Essas duas permaneceram como as duas do outro texto, texto distante, numa agora perdida sala de um antigo e perdido grupo de apoio para suicidas em potencial.
Desejei, tão falho, escrever sobre teus seios sem soar como Bukowski, porque há quem diga por aí que faço-os lembrar do velho safado quando escrevo, pois estas linhas, às vezes, trazem consigo um palavrão ou o nome de alguma genitália devidamente escrita e carregada, como alguém que digita em caixa alta para expressar grito e eloquência.
Desejei, falho, no entanto escrever de maneira diferente de Bukowski e diferente de mim, sem palavrões, sem nomes de genitálias, sem ofensas ou podridões; desejei, tão falho, escrever sobre as linhas dos teus seios sem nem mesmo usar a outra palavra, a mais vulgar delas, porque enquanto estavas sobre mim, daquele jeito intenso, sim, mas tão bela e louvável, com a camisa do Monkey Business sobre o corpo – a única peça ainda a te cobrir –, e minhas mãos subiam e arrastavam a camisa só pra vê-los balançando, subindo macios, descendo orgásmicos, foi com beleza que te enxerguei e foi com ternura que desejei te eternizar, independente dos caminhos que nos guiarem daqui em diante.
Desejei, falho, tecer a respeito das linhas do teu corpo e dos teus seios arredondados com o mesmo toque dos poetas, embora poeta eu não seja – sou só um contador de histórias a domar aqui e ali as palavras. No entanto, domar palavras não requer dom, requer prática. Com dom, meu bem, nascem os poetas, que dos teus seios fariam poema épico com palavras rebuscadas, trocadilhos em latim e referências classicistas; dominariam a musicalidade, o ritmo e a rima, não A com B ou B com A como os domadores de guardanapo tão banalmente ousam dominar.
Com teus seios eu faria muito, muito mais do que tão mera e tolamente falar sobre
linhas,
linhas côncavas, suadas e bem alinhadas com as tortas linhas de torto destino que marcam as palmas de minhas mãos.
Desejei, tão falho, escapar da sina de tantos Bukowskis de prosas agressivas que afastam leitores sensíveis e críticos xiitas, exacerbados e desesperados por poesia nata e sensibilidade latente. Desejei, falho, escapar da sina de escrever da maneira antiga (pelo menos aos ouvidos das meninas que escutaram apenas um conto errado e outro), sem tratar com banalidade, descaso ou desrespeito o teu corpo com cheiro de sabonete líquido, o teu corpo pós-banho de pele macia, suave e com os seios vivos, redondos, macios e bem-talhados.
Desejei, espero que não tão falho, talhar por aí o casual primeiro encontro de quando tuas linhas vieram parar sob o meu toque, para tocá-las e para senti-las, para talhá-las na atual lembrança da minha pele.
E por isso tuas linhas em minhas linhas toco agora:
tão côncavas,
tão lindas.


7 de novembro de 2017

À primeira das musas



Dizei-me agora, ó Musas que no Olimpo tendes vossas moradas -
pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis,
ao passo que a nós chega apenas a fama e nada sabemos -,
quem foram os comandantes dos Dânaos e seus reis.
A multidão eu não seria capaz de enumerar ou nomear,
nem que tivesse dez línguas, ou então dez bocas,
uma voz indefectível e um coração de bronze,
a não ser que vós, Musas Olímpias, filhas de Zeus detentor da égide,
me lembrásseis todos quantos vieram para debaixo de Ílion.

(A Ilíada, canto II)







À primeira e última das musas,



Eu nunca escrevo confissões. Detenho-me a nada mais que envolva poesia, arranjo, encenação, ficção, desprezo ou exagero.
No entanto, hoje é o dia de seu aniversário e nos últimos anos eu falhei em parabenizá-la, talvez de propósito, talvez por vergonha de ser o sujeito aleatório do passado que ainda passa aqui de vez em quando. Eu não queria ser esse cara, embora tenha sido com frequência. Então saiba, aqui e agora, que desde esses últimos sete Sete de Novembro, estive lembrando de você.
Eu nunca esqueci.
Queria agradecê-la por tudo.
Este blog não existiria sem você: quando a conheci, você escrevia. Foi você quem me inspirou a levar ao mundo o que eu fazia, foi você a primeira a me incentivar a isto. Foi por você também todos os meus melhores textos, embora você nunca tenha acreditado (e eu voltarei a este maldito e doloroso ponto mais à frente). Foi você aquela a me inspirar nas primeiras linhas sobre curvas e cabelos castanhos – os primeiros cabelos castanhos foram os seus e os primeiros olhos castanhos também foram os seus. Foi por você, na distante adolescência, que aprendi um pouco mais sobre horóscopo, no entanto, especificamente sobre dois signos, o meu e o seu. Foi por sua causa aqueles dois apelidos infantis e bobos, criados por você e adotados tão severamente por mim.
Foram por você também todas as metáforas com os escorpiões, as boas e as ruins – sobre como eu te achava por vezes distante, fechada, alheia a um universo maravilhosamente charmoso e secreto que tanto permeou minhas linhas e meus primeiros poemas. Foram por você todas as noites escuras repetindo Skid Row com Breaking Down ou quando contou que The Suburbs te fazia lembrar de mim e, mais à frente, Somebody that I used to know, que eu, tão burro, vim a compreender só depois. Claro que eu escrevi sobre isso, mas certos escritos não referenciarei aqui, não mais. Não alguns deles.
Você me manteve na linha, foi meu norte secreto – eu sabia, no fundo, que essa intensa dedicação secreta em nada daria, como em nada tem dado ou nada dará, mas era um porto seguro: ter a quem se dedicar, ter a quem voltar, metaforicamente, todas as noites.
Bem, vieram então as outras mulheres e todas elas, sem exceções, eu magoei desastrosamente em função deste apego que existia e desses textos que nunca paravam. Eu não me controlei, eu fui um péssimo mentiroso porque não fiz questão de esconder, não fiz questão de ocultar. Parecia-me charmoso, parecia-me uma espécie estranha de fidelidade e eu fui tão fiel a você ou ao que eu criei de você. Eu fui fiel: ao que eu acreditava, ao que eu escrevia, ao que eu tanto desejei ter um dia. E por tantas vezes eu te disse, em meio aos inúmeros vai-e-vem que nos levavam àquelas perdidas conversas, que todas minhas criações mais dedicadas eram suas.
Mas você não acreditou.
Nesse ínterim, eu quebrei mais um punhado de corações. Eu não me permiti apegar, não me permiti sair da bolha. Eu fui uma criança tola, apegada a um ideal romântico fora de moda, degradado, sustentado por um punhado de filmes e histórias fajutas que nos fazem acreditar em mentiras e nos distanciam do fortalecimento de nossos próprios corações, nossas próprias seguranças e nossas próprias fortalezas. Eu fui tão fraco e tolo e construí-me tão fracamente, tão tolamente.
E quebrei mais alguns corações.
E conheci estranhos amores ou estranhas formas de amar, mesmo que gradativamente, mesmo que às pauladas e à insistência. Mas eu sempre fui um caso perdido e de avisos enchi todos os cantos da cidade. Em partes, cada um dos meus textos e das minhas dedicações ao teu nome eram a minha forma explícita de dizer a cada uma delas que eu já pertencia a alguém, metaforicamente falando, é claro. Meu corpo e minha dedicação por alguns instantes poderiam ser delas, mas não o coração. E por isso quebrei outro punhado de corações. Mas elas não pararam de vir: afoitas, desesperadas, tão empolgadas pela promessa que eu era, embora eu sempre soubesse e dissesse que era pouco, tão pouco. Fiquei conhecido por meus escritos a você, todos vinham, curiosos, a perguntar: quem é ela? Quem era você, senão algo além de uma pessoa? Quem era você, senão transmutação de carne em linha, mera criação minha? Inaugurei o jogo da autodepreciação e antes que considerar-se lixo fosse uma moda dos tempos atuais, eu já me considerava primeiro. No início, fazia por charme. Com o tempo, tornou-se hábito. No fim, acabou sendo verdade. No meio do caminho, conheci mais a fundo meus heróis: os Henrys da vida. Moodys e Chinaskis. Aprimorei-me tanto. E escrevi e escrevi e escrevi como um louco a ponto de transformá-la não mais na causa, mas na consequência.
Na noite que escrevo isso (metade de Setembro ainda), assisto ao episódio de Californication em que Hank decide voltar para Karen, mesmo tendo em Faith a promessa mais intensa e digna de felicidade que a série em seis temporadas jamais o proporcionou. É um episódio triste, porém necessário – foi graças a ele que sentei aqui para escrever estas palavras que há quase um ano pretendia. Hank não fica com Faith, Hank abandona a fé, põe seus monstros abaixo e volta àquela porta vermelha, volta à Karen e à sua promessa de vida mais verdadeira (sim, eu também escrevi sobre isso em algum ponto da vida).
Você foi a minha Karen por tempo demais, antigo amor. Entretanto, eu me agarraria a uma fé nova – não vejo muitas por aqui, ultimamente.
Há aquele dialogo em 500 Days of Summer: "Henry Miller disse que a melhor maneira de esquecer uma mulher é transformá-la em literatura". Foi uma garota quem me relembrou desse diálogo, comentando sobre um dos meus mais icônicos escritos a seu respeito, em um distante ano de dois mil e onze que você provavelmente não leu.
Tudo bem.
Já a garota, ah, ela também se perdeu. Com o tempo, todas se perdem.
Henry Miller estava certo. Com o tempo, você deixou de ser furacão, tornou-se ventania. Em seguida, apenas uma brisa. Eu havia crescido e havia conhecido, como mencionei, estranhas formas de amar. E eu amei. Forçadamente. Irresponsavelmente. Depois fielmente e fui amado tão abusivamente que dobrei-me e deixei a maré me conduzir, permiti-me ajoelhar e acumular coisas ruins, embora houvesse um estranho amor. Por vezes sereno, por vezes insano. Para sujeitos perdidos e loucos como eu, quase caiu como luva, quase. Foi a esta altura que eu te deixei partir de mim, na verdade eu a assassinei, catacumbei-a em um texto nada dolorido à época, mas extremamente necessário.  
Escrever sobre sua morte foi necessário.
Na realidade, foi ouvindo Audioslave, Like a Stone, que percebi pela primeira vez que você não estava mais por aqui. Quis, em tentativa desesperada, ainda sentir por você qualquer esperança ou anseio de retorno, mas não era por você quem me fazia chorar a música. Era por outra – aquela com quem eu aprendi amar de forma estranha e gradativa, mas a amar.
E eu amei (ou não, muito provavelmente e com toda a certeza).
E eu me perdi – em (des)controle, em (in)consciência e em (in)sanidade.
E perdi tudo.
Então veio o mundo.
Ele é um lugar perigoso e você encontra coisas que mudam absolutamente tudo.
Surpreendentemente, eu encontrei. Se existe um Deus e se ainda estou aqui para contar, esse encontro foi dado a mim como breve dádiva, salvação necessária. Eu encontrei algo novamente, o bom e verdadeiro algo (logo eu, que era tão receoso e tão impenetrável, vi-me diante daquele estalar de dedos que não via há tanto, tanto tempo).
Mas como furacão, tão breve quanto tudo, ela também se foi – sem desastres, sem brigas ou sem motivos. Apenas se foi.
Mas você aprende algo com a maldita loucura e aprendizado e foi o que colhi com essa profunda dedicação e com esses estranhos caminhos. Eu construí monumentos em nome de Nomes: obras desprezíveis, sim, mas belas, incendiárias, ardentes e irônicas, escarradas de ódio e injúrias, desesperadas por defender a própria imagem e desesperada ante as injustiças, maldosa em sua malícia, generosa em sua bondade, acima de tudo infinitamente íntegra em sua sinceridade.
Hoje, quando escancaro tais palavras ao mundo, é Novembro e já fazem meses desde que fui uma última vez a você. Contei a grande verdade desmedida, perguntei em direto e definitivo a verdade e falei o que aqui tudo escrevi – o que aqui tanto invoquei, como um Homero esquecido. Mas eu já sabia, no fundo, que você sempre estivera alheia ao que eu sentia ou ao que eu escrevia; sempre esteve alheia à minha dedicação. Lobos uivam para uma lua nem aí, certo? Eis o texto em definitivo a expressar a verdade sobre aqueles que tão irresponsavelmente dedicam-se a algo. Você me confirmou: disse-me que não fazia ideia, disse-me que nunca desconfiou do que de fato eu te dediquei.
Aí disse que sentia muito, preocupou-se por ter causado estrago a alguém, um sinto muito, ligeiro susto, ligeira distância e...
Foi isso.
Apenas isso.  
A última mensagem.
Então regressei para casa e enchi a cara por uma semana, recluso por um mês inteiro:
Tudo o que fiz foi em vão.
O universo devolve alguns karmas e dos ruins eu estive cheio e acumulado, mas aprendi algo sobre as musas. Sinto falta de tê-las hoje, sinto falta de ter alguém a amar ou alguém a quem desejo voltar. Não desejo mais o regresso a alguém, e isso, de certa forma, é em si liberdade. Não há ninguém a quem voltar no fim da noite a não ser a mim mesmo, embora eu não tenha cabelos castanhos ou olhos castanhos tão belos quanto os seus; embora eu não tenha curvas sinuosas como as delas; embora eu não tenha manchinhas marrons no tornozelo; embora eu não tenha meios de pernas saborosos, suculentos e acolhedores; embora eu não tenha cabelos curtos e negros como as francesas do século passado; embora eu não seja loiro como eram as traiçoeiras Marias de rostos angelicais criadas por Eça de Queirós; embora eu não possua aromas de plantas nos cabelos ironicamente também castanhos.
Hoje, é somente a mim a quem retorno, a quem vivo e a quem, gradativamente, dedico-me.
Eu não sou tão belo ou sequer digno de qualquer inspiração. Não sou digno sequer de boas lembranças como as boas ou os bons antigos amantes o são. A minha sina e penitência, antigo amor, é ser amado brevemente e depois despido, descoberto e desamado; minha sina é ser passageiro; minha penitência, da memória obliterado.
Por isso eu escrevo e por isso eu luto contra o tempo e o esquecimento. Acho que é essa minha mais desesperada tentativa: saber que não fui amado por nenhuma delas para o sempre, porém saber que para cada uma delas teci amor infinito que nem o tempo nem as trágicas ocasiões ousarão apagar.
Para isso servem-me as palavras, para isso servem-me as musas.
Para isso, primeiramente, serviu-me você a quem tão severamente servi.
Foi você quem me ensinou tudo isso e é aqui onde tudo acaba, fechando ciclos (este chulo blog) que outrora jamais julguei que seriam fechados.
Obrigado pelo meu poieîn,
obrigado pela aventura.

Uma vez e agradecidamente seu,
F.S.



29 de outubro de 2017

Eu não sou uma máquina como os rapazes




Os rapazes, eles debatem euforicamente sobre coisas demais, sobre muitas coisas.
Os rapazes, eles agora debatem sobre atitudes femininas do mesmo modo que sanguessugas engravatadas às terças-de-manhã debatiam sobre transporte público e o calor nas grandes metrópoles enquanto gastavam dinheiro com combustível em seus jatos particulares. Enquanto isso, quem caía do céu eram pombos com infartos ou pilotos com milhares de horas de voo que hoje à noite não voltarão para casa.
Os rapazes, eles são experientes, experientes demais, excessivamente experientes, mas estou calado e eles sempre batem em meu ombro, porque estou quieto aqui nesta mesa e eles precisam de alguma forma, desesperadamente, saber o que penso a respeito.
– Não vai beber? – Fernando me pergunta pela terceira vez.
– A doutora disse que eu não posso. – E com mais uma golada na garrafinha de água eu sou obrigado a olhar para ele: Fernando, seus cabelinhos cheios de gel e a barba bem-feita nos maxilares com o barbeiro que custa metade da minha fatura do mês.
– Que frescura, essa doutora manda em ti?
– Ela é pelo menos gostosa? – Questionou Carlos.
Imaginei aquela senhora distinta e extremamente humana, sempre preocupada (verdadeiramente) comigo ou com todos os outros pacientes por debaixo do jaleco. A imagem não formou-se tão bem quanto achei que se formaria, algo como uma tela azul emergencial no Windows surgiu em todo meu vislumbre mental.
Imaginei o quanto queria beber para deixar passar aquela ladainha irritante que os rapazes orquestravam.
Imaginei também os meus rins apodrecendo e se fodendo e a doutora triste. Imaginei a doutora decepcionada.
Aí bebi outro gole e fingi, forçando, entediado, uma risada sacana:
– Com toda a certeza, por que tu achas que tô obedecendo? – Virei a água como um cowboy viraria o velho scotch.
– Meu garoto! – Fernando bateu novamente no meu braço, meio orgulhoso.
– Tá certo, caralho! – Carlos bradou.
– O que que quero saber é: o que achas disso? – Marçal voltou ao assunto, endireitando no rosto os caros óculos de grau que davam a ele aquele tom intelectual que fazia questão de conservar nas rodas da cidade e entre as moças que comia.
– Orgasmos femininos? – E dei de ombros. – Todos temos o direito de tê-los. – E bocejei. Bocejei de verdade, porque eu sempre bocejo de verdade, mesmo quando o assunto me interessava. Aquele assunto, no entanto, dava-me nos nervos.
– Não, espertão. O que tu achas sobre essas minas que fingem prazer?
– Um bando de mentirosa. – Fernando estalou os lábios.
– Mulher não me engana não, caralho. – Carlos bateu na mesa e riu. Virou o quadragésimo sétimo copo.
– Acho de boas, habilidade difícil de se adquirir e administrar. – Respondi por fim, enquanto Calos e Fernando davam tapinhas um no outro como dois eternos camaradas invioláveis.
– Tá, mas não achas ardiloso? – Marçal moveu as mãos. Ele sempre movia as mãos quando tentava argumentar ou impressionar alguém com seus argumentos bem estruturados de um quase-formado-historiador.
– Ardiloso?
– É. Tu estás lá, de pau duro, ela pulando em cima de ti e tu sabes que ela tá fingindo.
– Como é que eu sei que ela tá fingindo? – Bocejo de novo.
Olho no relógio: dez e quarenta da noite.
– Ela tá gemendo e não tá lubrificada. – Pontuou Marçal, convicto.
– Mas aí a camisinha ajuda, papai. – Fernando ergue o dedo.
Carlos faz uma cara estranha:
– Camisinha?
Marçal ignora os dois e eu encaro Fernando por três segundos, meio perdido, antes de voltar ao Marçal.
– Se eu sei que ela tá mentindo e ela tá fingindo, eu paro ou sei lá, deixo pra próxima. – E bebi um pouco mais da minha água antes que eles explodissem em revolta e me olhassem torto.
– Isso é sério? – Marçal exige silêncio dos outros dois, que estão eufóricos demais acotovelando-se como macacos.
– É. Mas no geral eu acho um esforço louvável. A moça com quem to transando: é desconhecida ou namorada?
– Tanto faz. Qual a diferença?
– Se for desconhecida, as chances de ela parar e dar o fora são maiores. Se for namorada, eu vou me sentir importante.
– Importante por que ela tá fingindo? – Carlos pronunciou como uma injúria.
– Se uma mulher finge enquanto tá contigo, é no mínimo porque ela se preocupa excessivamente a ponto de não te falar a verdade, porque aparentemente tu vais ficar magoadão com os fatos. – Girei a tampinha da garrafa. – No mínimo ela se importa com o teu bem-estar psicológico, com a tua virilidade que não pode ser danificada.
– O que isso significa? – Marçal inclina-se sobre os joelhos, interessado em mim como se eu fosse um animal exótico.
– Significa que se uma mulher mente pra ti, ela com certeza se preocupa contigo ou ela tá tão acostumada a fazer aquilo com caras que nunca a satisfazem que já não nota que tá fodendo por foder e não pra ganhar prazer.
– Continua. – Marçal sorri um pouquinho.
Os dois outros macacos se acotovelavam.
– Se uma mulher mente pra ti e finge que foi bom, talvez ela se preocupe contigo... Talvez ela se preocupe em não destruir o teu moral. O que é louvável: saber que a moça se importa com você a esse ponto, mas também é errado, né?
– Por que é errado? – Os três perguntam.
– Porque ela nem tá excitada, pra início de conversa. E porque ela tá mentindo só pra te deixar bem.
– Viu? Eu disse. – Fernando cutucou Carlos e balançou a cabeça para Marçal. – Mulher não me engana não, porra.
– Não ligo se não tiver lubrificada, mando bala assim mesmo.
Os dois macacos brindaram.
Os dois macacos riram.
Marçal balançou minimamente a cabeça e me perguntou:
– Então pra ti, ser enganado é privilégio?
– É consideração, em algum nível.
– Então é bom?
– É ruim.
– Já foste enganado?
– Com toda a certeza que sim.
– Te disseram?
– Precisa?
– E como tens tanta certeza?
– Não é possível que eu tenha sido eficiente todas as vezes.
– Tu não costuma ser?
– Não é isso.
– Então o que é?
– É, então o que é? – Fernando pergunta.
– Nunca me enganaram. – Carlos gargalhou, convicto demais.
– Mulher é bicho mentiroso, mano. – Pontua Fernando.
– Eu não sou uma máquina de fazer sexo gostoso como vocês, camaradas. – Destampo a garrafa, bebo o restante e peço outra ao garçom. – Então provavelmente não satisfiz todas elas, alguma devo ter deixado passar.
– Tu és fresco? – Fernando questiona.
– Ê, caralho. – Carlos continua.
– Humm. – Marçal me olha de cima, sempre de cima com seus óculos arredondados e ingleses, sua barbicha altiva, aquela que mostrava o quanto ele refletia sobre os assuntos do mundo.
– Tu gostas que elas mintam pra ti?
– Eu prefiro que elas digam a verdade na hora e que parem ao invés de fingir.
– Mas disseste que achava consideração que elas finjam.
– Disse que julgava consideração, sim, em algum nível. Não disse que achava certo.
– Tu tá é fazendo a parada errada, caralho. Tem que aprender mais. – Diz um deles.
– Tem que aprender mais. – Concorda o outro.
– Oh. – Coço a cabeça, outra vez bocejando. – Verdade, tenho que aprender mais com vocês.
A água chega.
Embora me olhem desconfiados, a conversa progride e são onze horas agora. A-ha canta a música de sempre no telão do bar e os rapazes vão gradativamente enchendo a cara.
Às onze e quinze eles começam a falar sobre pelos. Marçal é o que tem mais teorias e opiniões sobre os pelos, argumenta uma série de pontos e ressalvas a respeito da conduta do século XXI em contraponto à conduta do século XIV e faz uma analogia antropológica extremamente rebuscada com o mosteiro tal em outro século tal que possuía freiras com hábitos diferentes e coloca a questão em pauta mediante ao conservadorismo liberal do século XVIII e as influências nas correntes femininas do século seguinte e como isso formatou o posicionamento da mulher no século XX e a essa altura a moça da mesa ao lado se aproxima e diz concordar com Marçal e Marçal enche o copo dela e diz que não se importa, diz que as mulheres estão certas e diz o quão atraído sente-se por mulheres que possuem voz e enquanto Marçal fala, fala, fala, Fernando e Carlos mantém-se calados, porque quando Marçal fala eles o respeitam e o glorificam ou eles fingem entender e fingem concordar, por mais que discordem, até porque fora o próprio Carlos quem dissera firmemente, antes da garota da mesa ao lado juntar-se à nossa:
– Mulher pra mim tem que tá aparadinha.
– Pra mim também, porra. Não me vem com aquele matagal todo, não sou agricultor, caralho.
Todos os três riram.
Até Marçal chegou a comentar:
– Uma vez tava lá no Oito e conheci uma moleca de Nutrição. Depois da quarta catuaba levei ela lá pra casa e quando tirei a calcinha dela, puta que o pariu...
– O que que era? – Fernando ria.
– O que tinha lá? – Carlos enchia o copo.
– Porra, parecia que eu era um Bandeirante abrindo caminho pro interior do país.
Os dois espocaram de rir.
– E quando cheguei lá – prosseguiu Marçal – o cheiro era foda, moleque. Foda!
– O que fizeste?
– O que fizeste?
– Deixei meu nariz longe de lá e só torei, né? Mas já tava quase vomitando.
Fernando balançou a cabeça, espocando de rir. Carlos parecia verde, quase a ponto de correr ao banheiro.
Mas por sorte a garota da mesa ao lado não escutou o que Marçal realmente julgava das condutas femininas e dos aromas femininos.
– E tu: o que achas disso? – Marçal me perguntou enquanto nossa mesa não fora agraciada com o prêmio da noite.
– Disso o quê?
– O pelo das libertárias. – Fernando fez a piada que explodiu Carlos em risadas.
– Eu acho que tá de boas.
– De boas?
– É, de boas?
– De boas, porra?
– De boas.
– Tem certeza?
Para Marçal, respostas curtas eram uma ofensa. Se você não problematizasse e não tecesse comentários... Se você não tivesse comentário algum a fazer baseado em todos os livros que ele leu para o TCC, embora nunca tenha finalizado o TCC, embora nunca tenha sequer finalizado o curso, então você não era lá muito digno de se conversar.
As colegas de Marçal, sempre que estavam por perto, diziam-me, categoricamente:
– Tinha que ser pisciano, mano.
E todas caíam em gargalhadas e todas riam e eu fazia uma piadinha concordando.
Mas Marçal não era tão engraçado quanto as colegas: ele dizia sempre que tinha o ascendente em Dinossaurus e que astrologia não era ciência. Não que eu de todo discordasse, mas debochar já não era tão divertido assim. Quando de mim caçoavam e dos meus bocejos menosprezavam, dizendo que odiavam homens lentos, pelo menos as colegas de Marçal eram mais divertidas.
Marçal nem tanto, não com aqueles óculos alá John Lennon.
– É, pra mim tá de boas. – Respondi.
E tava mesmo.
E sem mais argumentos porque àquela altura da noite, às onze e dezessete, antes da garota da mesa ao lado unir-se ao grupo, eu esticava os pés e bebia a porra da água como se tivesse algum sabor, um sabor agradável.
Aí a garota chegou. Sentou-se ao lado de Marçal. Aí Marçal metralhou e jogou sobre a mesa todos os seus atributos usando apenas a habilidade da voz sábia e melódica. E a garota que Marçal arranjara foi a atração pelo resto da noite, tanto para ele quanto para os dois macacos.
Tanta água na minha corrente sanguínea finalmente fez efeito e levantei para ir ao banheiro. Tirei-a dos joelhos e quando saí de lá topei com a garota. Ela sorriu na minha direção, esperando em uma fila quilométrica para esvaziar a bexiga.
– Ei, moça.
– Oiii. – Quase como os rapazes, ela também estava bêbada, mas nem tanto.
– Eu queria te dizer uma coisa, mas tô meio...
– Ahhh.
– Não vou dar em cima de ti, nem nada. Relaxa.
– É o que todos dizem, né?
E as moças da frente concordaram com um comentário debochado e outro.
– Pois é, é sim. – Concordei, rindo de volta. Aí bocejei rápido antes de continuar. – Na verdade, é um aviso importante.
– Fala logo, mana.
– Meu amigo Marçal ali, sabe?
– Simm, sei. O que que tem?
– Ele brigou com a namorada ontem. Brigaram. Terminaram. – Pontuei com cada dedo. – Então talvez ele esteja revoltado e com certeza eles voltarão.
– Mas eles terminaram, né?
– Uhum, só durante as primeiras 72h. Depois ela volta correndo. Ou ele volta correndo. Sempre variam ou revezam.
– Por que estás me dizendo isso?
– Porque ele tá bêbado e já tá fazendo merda de novo. Vai por mim, não é a primeira vez.
– Ahhhh, é?
– É.
– Macho, mana. Tinha que ser macho. – Uma delas disse.
– Pula fora, manaaa! – Outra delas falou.
– Mas ele é bonitinho e tá solteiro, lembra disso. – Comentou a moça atrás da garota.
Ela realmente hesitou. Ela realmente pensou duas ou três ou quatro vezes.
– Só tô dizendo isso porque a namorada dele é legal e a briga de ontem foi besteira, ela não merece isso.
– Ok, valeu pelo aviso.
A menina da frente entrou no banheiro e a garota ficou lá, de braços cruzados, meio pensativa e meio eufórica com os comentários que a moça de trás fazia.
Quando voltei à mesa e não muito tempo depois a garota também, Marçal debatia sobre o quanto o modo de produção atual contribuía para o estopim da depressão e da ansiedade. O próprio Marçal era cheio de ansiedades e depressões, mas foi no meu ombro que ele tocou e riu quando discorreu seus argumentos e todos na mesa riram. Inclusive fingi rir, divertido, fiz uma piadinha sobre lágrimas e reidratei com minha água.
Em seguida, a moça avisou que precisava ir e Marçal tentou convencê-la a ficar. Os dois se afastaram da mesa, foram para fora. Marçal acendeu um cigarro e pelos quinze minutos seguintes variava entre convencê-la a ficar ou convencê-la a beijá-lo.
No fim, o beijo aconteceu e ele conseguiu o número da dama. Ela foi embora e assentiu pra mim, com um sorriso meio grato. Esperava eu que a garota nunca descobrisse que nem namorada Marçal possuía, embora no fundo soubesse que ele venceria a batalha, que ele a convenceria no fim de tudo, pois agora possuía o número dela e possuía, principalmente, aquilo pelo qual tanto se orgulhava, aquilo que chamava de
o poder da retórica.
Meia-noite e o bar fecha. Somos expulsos junto com todos os outros e os rapazes seguem bêbados para casa. Ao longo do caminho, ainda discorrem sobre a conquista de Marçal e sobre o quanto até fariam um esforcinho para entrar na Cláudia Ohana.
– O que tu achas da Cláudia Ohana? – Marçal inclina-se sobre mim com aqueles óculos redondos, no meio da rua mesmo.
– Nunca mais vi uma novela com ela.
– Sobre a mata da Cláudia Ohana, caralho!!! – Esbraveja Carlos.
– Ah.
– “Ah” o quê, caralho? O que tu achas?
– Eu acho de boas.
Eles riem e cospem em mim. Metaforicamente, é claro.
Quando nos separamos, cada um subindo no último ônibus de volta pra casa ou dentro de algum táxi negociado, lá pela Presidente Vargas mesmo, eles ainda estão me xingando por ser um pau mole e complacente.
Quando chego em casa, Anastácia me abraça e pergunta “como é que foi com os meninos?”. Eu digo que foi de boas, digo que estão bem e que continuam os mesmos. Ela entende como uma coisa boa.
Certo mesmo e aliviado estou eu, ao perceber que os bocejos pararam.
Quando saio do banho, ela me diz “vem cá” e eu vou, prontamente, não tão lento quanto as colegas de Marçal julgariam. Anastácia está nua na cama, as pernas abertas, convidativas, as mãos roçando na cintura, coçando as auréolas dos seios devagar, sem a pressa do cotidiano ou o desespero dos solitários. Ali estão suas pernas: magricelas e sinuosas, sempre sinuosas, com linhas às vezes íngremes demais, às vezes retas demais. O suficientemente retas. Sorrio com a imagem dela entre os travesseiros e os lençóis e deito na cama, pousando a cabeça exatamente sobre ela, exatamente entre as pernas, onde ela tem agora um pequeno tufo de pelos não aparados.
Anastácia às vezes não raspava as axilas, às vezes deixava os tufos dali tão altos quanto os tufos debaixo e os rapazes, ah, os rapazes sabiam das axilas, mas nunca diziam nada, os rapazes nunca falavam de Anastácia comigo, nunca perguntavam sobre ela.
Os dedos compridos acariciam meus cabelos enquanto eu esfrego o rosto entre os cabelos dela, fechando os olhos com o leve roçar da virilha, com o leve roçar que vai em volta dos grandes lábios até o meio das nádegas e com o leve roçar sobre meus lábios, sobre a pele do meu rosto.
No instante que começo a amá-la, lembro que não, eu não sou uma máquina perfeita e insaciável como os rapazes, não, não como os rapazes. Porém havia um lugar para regressar todas as noites, todas as tardes e todas as manhãs, às seis em ponto, quando o Sol acabava de sair ainda do horizonte de dentro d’água.
Eu não era uma máquina incansável e eficaz como os rapazes, não, não como os rapazes. Não tinha muito interesse em ser.
Mas tava de boas.
Porque todas as noites havia a quem voltar e onde ser feliz.
E sim:
tava de boas.