16 de fevereiro de 2017

As manchinhas do teu ombro




Sou um repetitivo desastre, com vãs palavras avariadas sobre os mesmos dramas de outrem. Eu repito os cabelos e geralmente estou me jogando neles, como me jogo nos seus agora – negros e brilhantes, aparados à altura dos ombros alvos e pintados pelas manchinhas herdadas do seu pai, “esse velho marinheiro pilantra”, como você carinhosamente costuma reclamar. É quase um segredo, mas da última vez que comi o bom churrasco sulista do velho, contou-me ele uma peripécia que aprontou para enfim aportar em definitivo na Terra das Mangueiras por causa da sua mãe de sorriso fácil, gargalhada gostosa e professora recitadora de Drummond.
Assim, ele aqui ficou e assim você aqui brotou, com as manchinhas nos ombros que ele carrega no rosto e a acolhedora risada que sua velha carrega na alma. É dessa forma que em teus ombros tocados por teus cabelos eu me perco, repetindo as mais proferidas, porém articuladas palavras que tantos homens antes, durante e depois de mim proferiram ou haverão de proferir – não para você, é claro, mas bem poderia ser. Aqui eu facilmente me perco, durante o churrasco sulista do teu velho marinheiro pilantra de manchinhas no rosto e da tua velha e sábia professora de cativante sorriso, que até Drummond recitou pra mim naquele domingo, em sinal de sincera empatia. Acho que teus velhos gostam de mim, é um bom sinal, pois assim haverei eu de retornar aí e cair de mente e peito revirado por esses curtos cabelos negros, beijar esses aveludados lábios de orvalho e afagar as manchinhas do teu ombro com meus dedos indignos, perdidos, vadios e profanos.
Sou um repetitivo desastre, com vãs palavras empasteladas sobre os mesmos dramas de outrem – ombros, cabelos e sorrisos.
Os melhores temas a me desgraçar.


11 de fevereiro de 2017

Gratidão



Café preto, quente.
São oito da manhã e ainda estou de calça e meia, ainda não liguei o ferro para passar a camiseta, tampouco pus o sapato ou apertei o cinto. Estou atrasado há meia hora. Meia hora leva 67% do caminho até a Universidade, é tarde demais agora. Por isso dou de ombros e observo o café quente cair na jarra da cafeteira, divagando sobre o modo como o cabelinho de Carl Sagan era estranho e o quanto vou demorar para ficar com as entradas iguais às de meu pai, quanto tempo meu cabelo vai sumir da minha cara ou quanto tempo vou levar para me tornar tão sábio quanto Carl Sagan – talvez quando meus cabelos permanecerem intactos, certamente. Então o café cai e a cafeteira faz um ruído estranho, porém habitual, aquele som de sucção que esquenta a água e a suga para o próximo nível, o do coedor. Espero mais um pouco, o café quase pronto. E penso no cabelo do Carl Sagan. Penso nas moedas contadas na carteira e agradeço até mesmo aos deuses – inclusive ao judaico-cristão – por eu ter conseguido algum trocado para frequentar alguns minutos (agora perdidos) de aula.
“Gratidão”, como diriam as boas moças descontruídas de hoje em dia que tentavam parecer zen e desprendidas, mas não conseguiam desprender-se das sórdidas amarras do cinismo, provocação, ironia e ferrenha rivalidade. Gratidão é o novo Eu Te Amo, alguém me disse recentemente. Comecei a rir e peguei a jarra, enchendo minha xícara. Olho para o café lá dentro refletindo meu nariz amassado e meus olhos inchados de cansaço existencial e 3 horas diárias de sono. Como está meu ânimo hoje? Péssimo? Não. Então misturo o leite. Desce pela garganta e dissolve tudo de ruim que possa haver na garganta, desce esôfago abaixo. Meus dedos indicador e médio nem mesmo sentem a coceirinha sedutora do cigarro entre eles. Estou bem, revigorado, olhos pesados e bocejos. Estou acordado há mais de uma hora e há mais de uma hora está tocando Johnny Cash. On the evening train agora. Da minha cozinha, acho que os vizinhos conseguem ouvir minha trilha sonora, é uma boa trilha sonora, admitamos. Certa noite, enquanto acendia o cigarro e virava a gordinha garrafa de catuaba, era Kansas que tocava. “Continue, meu flho desobediente, haverá paz quando você tiver terminado” e então alguém reagiu, um desses vizinhos aqui ao lado que vivem gritando e brigando e se matando. O cara reagiu positivamente, como se surpreendido por ouvir música boa de onde menos esperava. Desde então, sinto-o interessado, toda a noite, quando possível, quando sento para fumar e alcançar um pingo algum de sono através da catuaba, até sinto que o vizinho canastrão quer ouvir a minha trilha. Isso é bom, poucas vezes me senti útil na vida, agora é uma dessas vezes. Valeu mais do que todos os meus relacionamentos anteriores, sinto-me mais útil do que a soma de todo o resultado deles. Ahá. O café desce pela garganta, ele está bom, suficientemente agradável. Agora o Sr. Cash canta Wayfaring Stranger e penso: “isso aqui é vida, isso aqui é tá bom. Por que sair de casa?”. Deito no sofá, estico as pernas e fecho os olhos. 98 músicas do Homem de Preto na playlist garantem algumas longas horas de companhia. Quando abro os olhos, são onze da manhã e está tocando One. Música desgraçada para desgraçar a minha desgraçada cabeça. Levanto e faço mais café, mas agora não misturo com leite. Merda, meu ânimo mudou. Até os dedos começam a coçar.
É quase hora do almoço, minhas panelas estão vazias e eu só tenho moedas contadas para o transporte e um real para o almoço, mas dormi demais. Eu sempre durmo demais. Claire havia dito que passamos mais da metade de nossas vidas dormindo e certamente eu já mencionei isso em outro texto. Defasado e repetitivo, porém ainda verdadeiro. Meu estômago ronca, aparentemente apenas café não enche o bucho. Faço um estalo com a boca e volto a deitar no sofá.
Pelo menos ainda está tocando Cash. Quando se está tocando Cash, tudo fica um pouquinho melhor.
É como diriam aquelas mocinhas descontruídas de hoje em dia:
gratidão.
É como vai se chamar esse texto.




9 de fevereiro de 2017

Baseado em loiras reais



Minha cabeça rodava levemente quando ela se aproximou de mim, na calçada. Um leve chuvisco caía e observei-a atravessar a rua com passos rápidos, animada e agitada demais, com a garrafa de Skol Sense na mão. Traguei meu cigarro e confesso que olhei para cima, na direção da lâmpada do poste, com uma patética atitude de quem se mostra indiferente. Eu não fazia a mínima ideia do porquê ela havia atravessado, já que desse lado da rua estava só eu e os chuviscos. Sua sapatilha era de um verde claro, quase branco, daquelas tonalidades que certamente tinham um nome, mas só as mulheres eram capazes de definir – as aulas de semântica e pragmática serviram-me, pelo menos, para comprovar a histórica conclusão de que homens não eram lá muito bons com cores. A calça jeans escura de cintura alta e a camisa vermelha de botões, com as mangas até os pulsos, realçavam as mãos de pele clara. Os cabelos eram loiros e caíam lisos pelas costas.
Pouco se importou com o chuvisco e veio até o meu lado. Afastei-me para que a fumaça não fosse até ela.
- Tão novinho e já fuma?
- Quê?
- Tão novinho e já tá fumando.
- Ah. – E ri, meio indiferente, embora algo gritasse dentro de mim. Por. Que. Está. Falando. Comigo? – É, moça, acontece.
Talvez eu tivesse até mais idade que ela, embora nossos corpos não aparentassem. A nível de embriaguez, era ela quem mostrava-se desde cedo mais animada e propensa a dancinhas com a amiga e os cinco homens que as rodeavam.
O que está fazendo aqui?
Continuei fumando e talvez por irritante desconcerto, segurei a alça da mochila com a outra mão.
- Até que horas vocês vão ficar por aqui? – Ela perguntou, sorrindo demais.
Julguei ser o efeito do álcool. Aliás, loira alguma em sã consciência atravessaria a rua para falar comigo, senão fosse o efeito do álcool. Era o preço das duas caipirinhas e das infinitas Senses, imaginei.
- Estamos quase indo. – Sorri de volta, menos indiferente e mais espontâneo, igualmente levado pelo efeito do álcool que fazia minha cabeça rodar.
- O que tu e teu amigo fazem aqui?
- Enchendo a cara, moça. Alguém tem que sextar depois da semana fodida.
Ela gargalhou brevemente, escandalosa demais.
- Vocês estudam?
- Sim, senhora. Ele faz cinema – apontei na direção do meu bom e velho amigo, que ficou sozinho com o copo de cerveja quando atravessei para foder a garganta – e tá quase se formando.
- E tu?
- Letras português. – Mordi o lábio, pensando na minha atual situação. – Longe demais pra aguentar, perto demais pra desistir. Por isso eu encho a cara.
- Ahhh, que bonitinhos!
- É, o cineasta e o escritor fodido.
- Mas quem faz letras não vira professor?
- A gente tem que quebrar as regras, moça.
E então ela riu e me estendeu a mão.
- XXXXXXX, prazer.
- Ah, prazer, XXXXXXX. Felipe.
- Me diz duas coisas? – Ela olhou no relógio caro que tinha no pulso.
-  Claro.
- O que tu costumas escrever? Poesias?
- Poesias? – “Poemas”, poderia eu tê-la corrigido sorrateiramente, sem que necessariamente percebesse. Era um hábito escroto que os acadêmicos de literatura, metidos a sabichões, geralmente tinham e que me irritavam a ponto de matar cada um deles mentalmente, todo dia útil da semana, mas por sorte eu não era um babaquinha sabichão e peçonhento da literatura. – Ah, não, não. Não é pra tanto, isso é pros fortes.
- Escreve o quê?
- Contos sobre amor e morte, crônicas de dor, sofrimento, chifres e acidez desgraçada.
- Uaaaaau – ela fez, mostrando alegre interesse. – Como é que funciona isso?
- É uma maldição fodida, XXXXXXX. Nem queira saber. – Mais um trago, dei alguns petelecos para as cinzas caírem.
- Tá, então se eu te pedisse pra escrever sobre... sobre... – E olhou em volta, expressando um esforço mental que não era de todo verdadeiro. Ela tinha as sobrancelhas grossas que sobressaltavam bem o castanho dos olhos. Mordi o lábio com um sorriso de ponta enquanto a esperava concluir. Quando encontrou o que procurava, voltou a me olhar com um fervor que, sim, eu voltava a me convencer: era efeito do álcool. Loira alguma atravessaria a rua ou me olharia com aquele fervor se não fosse o álcool. – Sobre mim. O que seria preciso?
- Ah. – E gargalhei da mesma forma que ela fizera há um instante. Duas cachaças de Jambu e quatro cervejas e minha cabeça já rodava justificavelmente. – Depende, XXXXXXX. Tu queres a resposta habitual ou a resposta verdadeira?
- Quero as duas!
Nós rimos. Ela insistiu:
- Qual é a habitual?
- A habitual é que pra eu escrever sobre ti e sobre como atravessaste a rua pra, aparentemente, só falar comigo... Comigo, logo comigo...  A resposta habitual seria “um beijo”. Eu precisaria de um beijo teu pra escrever.
- Tu usas sempre essa resposta?
- Ah, é a habitual. Não que funcione sempre.
- Sei!
Nós rimos. Ela insistiu novamente:
- E qual é a verdadeira?
- A verdadeira?
- É, qual que é?
Do outro lado da rua, agora bebendo a quinta cerveja, meu amigo quase-inteiramente-cineasta mal parecia acreditar que a loira falava comigo. Atrás dele, eu via a amiga dela rindo e os caras em volta segurando copos de cervejas sem entender nada.
Nem mesmo eu entendia porra nenhuma do que acontecia.
- A verdadeira é que eu só preciso de um momento apenas, um único momento que valha a pena e que desperte qualquer coisa em mim, desde um sentimento mais idiota e romântico, até um de escárnio por causa do tiozinho que tá em volta de vocês duas desde cedo, mas não consegue desenvolver papo algum porque aquele bonitão ali tá em um assunto muito interessante com a tua amiga. O tiozinho é engraçado, ele é meio careca e penteia o cabelo pra frente e...
A loira começou a rir. Na realidade, ela gargalhava, mas agora não pelo efeito do álcool, e sim porque o cabelinho do tio era verdadeiramente digno de risada ou o modo como ele travava sempre na hora de avançar e no fim acabava ali, em volta, parado e concordando com o andamento das conversas alheias que não era capaz de penetrar.
- Ou eu precisaria do momento em que tu começaste a me olhar quando eu cheguei ali e fiquei me perguntando se aquela porra era verdade. – Balancei os ombros, fatídico.
- Poxa, tu precisas de um pouco mais de confian...
- Todo mundo fala isso. – Estalei os lábios. – Mas o que faria uma loira como tu, olhar pra um cara como eu?
- Ahhh, para!
- Parei. – Dei um peteleco na bagana de cigarro.
- Eu atravessei a rua, não atravessei?
- É verdade.
- Então!
Nós rimos. Dessa vez, eu continuei:
- Agora me diz, XXXXXXX. Qual era a segunda coisa que tinhas pra me perguntar?
- Ah, tá. A segunda coisa era: eu te olhei a noite inteira, garoto. Por que não fizeste nada?
- Quer saber a resposta habitual ou a verdadeira? – Tirei outro cigarro do bolso e pus na boca, rindo.
Ela riu e sinalizou com os dois dedos que mais uma vez, queria ambas.
- A habitual é que eu sou um frouxo, e dessa vez sempre funciona. Todas concordam. – Acendi o cigarro, traguei suavemente e deixei a fumaça escapar devagar entre os lábios. – A verdadeira é que, veja bem, vocês são três mulheres. Tu estiveste com a tua amiga a noite inteira enquanto o bonitão conversava com ela e os outros quatros circulavam tu e a outra. – Ela prestava atenção com um sorrisinho de claro interesse. Balançava a cabeça positivamente enquanto eu apontava para o outro lado da rua e me sentia mal por ter abandonado meu bom amigo. – Esse, em si, já é um grande bloqueio. Na pior das hipóteses, eu sairia dali com um não gigante e seria uma piada para os tios e o bonitão. Acredite, de piadas eu já ando meio saturado. – Outro trago, outra risada. – E tem o Walter.
- Como sabe o nome dele?! – Questionou, espantada.
- Prestei atenção em algum momento que chamaste o nome dele. O Walter. Tipo, vocês estão todos bem vestidos e o Walter tá de uniforme. Eu diria que saíram da firma ou, sei lá, são funcionários públicos...?
- Uau, bela observação. – Bateu palminhas, animada.
- Firma?
- Funcionários públicos.
- Tá, beleza, viu? – Dei uma piscadela vitoriosa. – O Walter é um senhor de quase meia-idade que parece ainda ter tudo em cima e te circulou a noite inteira. Certo, vocês provavelmente são colegas de trabalho, mas estão bebendo, tu estavas animada demais e ele interessado demais. O Walter parece ter grana o suficiente pra pegar um táxi de volta pra casa, meu amigo e eu ali... voltaremos logo, por causa do ônibus.
- Tá me chamando de interesseira? – A voz vacilou.
- To falando sobre estabilidade e aparente maturidade. – Frisei, categórico. – Meu amigo e eu somos uns moleques comparados ao Walter, que esteve a noite inteira ao teu redor. Walter é vivido, aparentemente maduro, funcionário público e... Eu sei lá, eu certamente escolheria ele ao invés de um universitário fodido com cara de criança. – Outro trago e sorri, franco. – Você não parece o tipo de mulher que...
- Que...?
- Que atravessaria a rua por um cara como eu.
- Ah, não?
- Não.
Mas ela atravessou, palerma.
- Fui um idiota, né?
- Pra cacete.
Ao invés de virar e dar o fora dali, ela permaneceu de pé, olhando-me como se aquele fosse meu último oportuno momento de redenção. Peguei o recado. Eu ficava mais esperto com um pouco de álcool nas veias, talvez fizesse aflorar minha lua em Capricórnio.
- Mas pelo menos foi a resposta verdadeira, não a habitual. Fui sincero, desculpa. – Soltei a fumaça devagar. – É só que entre um homem e um menino, tu parecias o tipo que escolheria o homem.
- E vou escolher. É com o Walter que vou voltar agora à noite. – Ergueu as sobrancelhas, sugestiva e desafiadora. Era provocação naqueles olhos castanhos? – Mas por algum motivo idiota, seu babaca, eu atravessei a rua. Não se tocou disso?
- Me toquei. – Assenti, meio risonho. – Posso fazer uma pergunta, agora?
- Vai lá.
- Por que atravessou a rua?
- Porque eu já vou embora com a porra do homem maduro do Walter, mas queria vir aqui antes. Babaca.
- É o que todas dizem, moça.
Aí ela finalmente riu. Com um longo suspiro que denunciou a falsa carranca que queria manter, olhou para o relógio caro no pulso e me perguntou:
- Eu te dei um momento marcante pra escrever alguma coisa?
- Com toda a certeza. Mais que um momento.
- Melhor que um beijo?
- Eu não colocaria dessa forma, pera lá.
Nós rimos, ela inclinou o rosto e ordenou meio baixinho:
- Anota meu número.
- Sim, senhora. – Obedeci prontamente, anotando o número dela e quase não acreditando na merda inteira.
- E escreve sobre isso.
- Sobre tu?
- É, é. Sobre o tal momento que eu te dei, quero ver se é tão bom assim.
- Não mesmo, mas eu vou tentar. Quer que seja triste, doído, ácido ou...?
- Só seja legal e tenta ser menos babaca, babaquinha. – Gargalhou. – Hoje eu volto com o homem maduro, mas amanhã eu espero que tu fales comigo.  
- E aí a gente conversa sobre aquela outra resposta?
- Qual?
- A resposta habitual. A do beijo.
- A gente vê isso daí.
- Sim, senhora.
Ela sorriu, mas nenhum de nós arriscou um aperto de mão, abraço ou troca de beijos nas bochechas.
- Vou escrever e fazer que pareça mentira, só um texto idiota. Nem teu nome vou revelar. – Fiz uma pequena continência.
- Só escreve!
Ela continuou a rir com aquela gargalhada sincera sob efeito de álcool. Acenou na minha direção com um tchauzinho animado. Todos eles foram embora: o tiozinho do cabelo engraçado, o cara bonitão e o Walter ao lado dela, ambos em um táxi rumo a sabe-se lá aonde iriam.
Não dei asas à imaginação.
Acendi outro cigarro e voltei na direção do meu parceiro quase-inteiramente-cineasta. Ele bateu no meu ombro e sorriu, empolgado demais com o rumo dos fatos. Nove anos depois, parecíamos ainda aqueles dois nerds adolescentes que não acreditavam nas pequenas e improváveis circunstâncias que a vida nos pregava.
Bebemos a última cerveja e descemos, zonzos, a Manoel Barata numa chuvosa sexta-feira à noite em direção à Doca. Passamos por travestis nas esquinas e contamos com a sorte de não encontramos nossos queridos amigos malacos que brotavam sempre sorrateiramente das sombras. Então chegamos vivos à Doca. Ele apanhou um ônibus, já eu parei no Batistão e enchi o bucho de hambúguer, Coca-Cola zero e um prato gigantesco de babatas fritas. Talvez naquele momento XXXXXXX estivesse se divertindo ou talvez Walter nem fosse lá tão maduro ou interessante assim, mas de qualquer forma, enquanto mastigava, eu estava rindo.
No dia seguinte, fiz o combinado.
Enviei uma mensagem.
“Oioi, moça”, eu disse.
“Oiii, babaca”, ela respondeu.


6 de fevereiro de 2017

Ela odeia Bukowski




Já faz um tempo que esses olhos castanhos pousam em mim de maneira turbulenta e ao mesmo tempo apática, não sei o que fazer.
Faço.
Refaço.
E me perco nos esforços.
Encontro raiva,
rancor,
a cólera escaldante de saber que nesse jogo as cartas não mais me são favoráveis.
Esquento o café preto sobre a pia, mesmo achando que a cafeteira já deu tudo de si: o botão vermelho continua aceso, mas o café já não está tão quente assim. Estou sentado sobre a mesa com as mãos cruzadas embaixo do queixo, encarando a cafeteira do mesmo modo que me encaro no espelho em alguns dias da semana, perguntando-me o que diabos aconteceu e o que farei agora. É um problema complexo esse, já que minha conta corrente e carteira andam um tanto quanto vazias e encarecidas de futuras esperanças.
Todos precisamos de café: eles, eu e você.
É então que ela desce as escadas, quase completamente vestida e com perfume exalando, porém com as Havaianas surradas enfiadas nos pés de longos e esbeltos dedinhos. Por sorte já estou quase inteiramente arrumado, mas isso não a impede de me despejar uma bronca daquelas que têm sido frequentes demais às seis e vinte e quatro da manhã, todas as manhãs, porque estou sempre fazendo algo errado: passando a roupa deveras amassada, enrolando dois minutos para levantar ou correndo aqui por baixo para prepará-la ou preocupado demais em fazê-la tomar café antes de sair. Em suma, estou sempre levando uma bronca e um coice por sempre atrasar nossa saída – por sempre atrasar qualquer mínimo detalhe em nossas vidas.
Por sempre te atrasar – nos mais complexos e pragmáticos sentidos da palavra.
Ela desce e me flagra com as mãos dobradas sob o queixo, divagando sobre o que diabos farei agora com a cafeteira que tem esquentado cada vez menos, como ela. É o que me faz lembrar, pela bronca que levo em seguida, que por mais vazias que minha conta corrente e carteira estejam, há sempre um modo de arrumar alguns trocados para situações emergenciais, como no caso da cafeteira, que pouco consegue esquentar com eficácia o nosso café da manhã. Apesar disso, nem todo o dinheiro do mundo consertaria o que realmente importa ser consertado. Levo uma típica bronca que começa com um “porra” bem eloquente aliado àquele olhar de decepção e irritação que ela tem me pousado com certa frequência e que eu, falho, tento sublimar. Meus sapatos já estão nos pés e meu cinto apertado. Só me falta a camisa, enquanto ela tem as havaianas surradas nos pés e o cabelo enrolado na toalha. Mais uma vez, o ânimo dela nem sequer amanheceu dos melhores, não que o meu sempre amanheça, mas não era a hipocrisia falando, era apenas o fato de me obrigar a saltar da cama com um empurrão no ombro, infelizmente não pelo celular despertando pela centésima vez. Tendia ela a odiar, inclusive, meu toque de despertador, embora fosse familiarmente parecido ao de seu celular. A diferença, claro, é que ela acorda de imediato, enquanto eu peço mais dois minutos – dois minutinhos. Então levanto da cadeira e ponho seu café na xícara, exprimindo aquele sorrisinho que anda cada vez mais desanimado, que sonha em demasiado aumentar os minutinhos de dois para cinco, de cinco para dez e de dez para sempre.
Engulo em seco, mas não com drama, embora os maxilares já se contraiam e os olhos marejem (patético). Engulo em seco, de uma forma que a saliva já me desce a garganta com um crescente gosto de substância biliar, liberada por esse sentimento pútrido de ingratidão do qual tem estragado meu bom humor das manhãs, sempre quando acho que ela vai me sorrir por servi-la o café (quase não mais) quente na mesa e tudo o que recebo de volta é um suspiro pesado e irritadiço. Em alguns minutos, quando ambos ajeitamos os botões de nossos respectivos uniformes, o mundo parece ter girado e ela agora é toda sorrisos. À essa altura, já fui longe demais no abismo e agora sou eu quem tem o matinal e estressante ânimo às migalhas. Aí ela reclama das minhas reações e eu contraio ainda mais os dentes, uns contra os outros, tentando não explodir dentro de um ônibus lotado. Abro um sorriso, mas não consigo olhá-la nos olhos, tento evitá-la por irritação severa ou talvez para evitar napalm, narizes sangrando e bombas atômicas – acho que o segundo caso.
Abro a mochila e prolongo nosso silêncio ao retirar de lá um livro do Bukowski. Eu só preciso de um conto sacana ou desastrado enquanto não abraçamos nossa rotina massacrante e diária. Eu só preciso relaxar um pouquinho, e juro, juro que tudo vai voltar ao normal e nem sequer tantos coices haverei de devolver na mesma moeda.
Mas ela não entende, e de certa forma eu não a culpo. Encara meu ato como um ofício de afronta, digníssima declaração de guerra. Cruza os braços e me diz que “eu não acredito que tu tá fazendo isso”. Fecho o livro ainda no terceiro parágrafo do conto. Tentava lê-lo em paz há semanas, mas aparentemente não possuía sorte nem paz suficiente.
Então eu lembro: desde o instante despertado até o último segundo de consciência antes do sono, ela repugnava uma porção de coisas que de mim partiam. Quando eu tentava consertar, quando eu tentava ser bom ou quando eu jogava tudo para o alto e entrava no jogo do bate-e-volta, ela igualmente me repugnava.
Então eu lembro: era, de fato, um oficial gesto de afronta.
Lembro agora que uma vez ela me disse, com aquela amável e corriqueira tonalidade de nojo, menosprezo e repulsa,
que odiava Bukowski.
Ora, não era de se surpreender.






3 de fevereiro de 2017

Grupo de apoio: sala C-3




Eles não me viam há semanas e exigiram minha presença em um momento não muito agradável, ainda assim, obedeci expressamente.
O tiozinho barrigudo da portaria foi o primeiro a me lançar um olhar estranho, uma ânsia desgraçada de perguntar o que havia acontecido misturada à diversão estranha que não entendi muito bem qual era, talvez pelo fato de eu aparentemente ser criança demais para aquilo. O nome dele era Patrício, vulgarmente chamado de “Seu Patrício”. Talvez até houvesse o “Seu” na identidade, ficava muito tentando a averiguar com uma simples perguntinha, mas sempre me contive atrás de um sorriso sem graça. Todas as moças que cruzavam a portaria sorriam para ele em função daquele aspecto de panda inofensivo, talvez pelas respeitosas brincadeiras que ele fazia com todas. Com os homens, era sempre amigável, porém um pouco mais sisudo. A mim, sempre direcionava um aceno de cabeça e notei que agora esteve tentado a me questionar o que era aquilo na minha cara, mas fingi que nada tinha de errado e fiz um comentário sobre “muita chuva, quase me afoguei lá fora”, que obrigou-o a sorrir e a responder qualquer resposta banal relacionada à chuva.
Então entrei no prédio. Cruzei pela senhorinha do café e pelas irmãs coroas do A-2, depois dei um olá ao cara com a cicatriz na sobrancelha, que estava sempre com alguma roupa ou acessório do Paysandu. Incrivelmente, apesar da camisa, era um cara legal. Incrivelmente. O que era raro. Subi as escadas, ignorei todos aqueles que não costumava conversar. Todos, sem exceções, olhavam espantados e curiosos para minha cara amassada. Ok. Eu abanava a mão e comentava que “viu a chuva lá fora? Quase me afoguei”. Eram educados demais para perguntar e eu esquivo demais para explicar. Subi mais um andar. Sala C-3. Obviamente, eu estava atrasado. Bati duas vezes e acenei pela janelinha antes de entrar. Denise tinha uma boca gigantesca e um sorriso tão grande quanto, mostrou-me os dentes brancos e bem cuidados e sinalizou para que eu entrasse. Muito bem, vamos lá. Entrei. Todos sorriram e se espantaram, nessa exata ordem de fatos. Parece que tudo aquilo era um tanto quanto incomum, como se pessoas não escorregassem em casa, como se pessoas não sofressem acidentes domésticos.
Mentira.
Procurei uma cadeira vaga, que por acaso estava do outro lado da roda e que me obrigou a passar pelo meio e pela frente de todos antes de procurar meu devido lugar. Aguilar já estava sem o gesso na perna, Joana sem as olheiras e somente Gustavo, de olhos azuis, é que tinha um recente curativo no pulso esquerdo. Foi o único que me olhou sem interesse, o único que aparentemente sabia que caras amassadas e olhos roxos eram normais nesse mundo insano de pessoas sem rumo. O único que nunca expressava coisa alguma, o que era ruim, aos olhos de gente como Denise. Gustavo era aquele que parecia sempre um centímetro à beira do abismo, o mais cauteloso dos casos.
- Ô, rapaz, o que aconteceu contigo? – Denise perguntou, sorridente, mas observadora. Qualquer resposta ou coisa esquisita e ela anotava na caderneta. Irritante.
Eu não aparecia há semanas na roda.
Não frequentava a universidade há dias.
Saía de casa há bem menos.  
E não por vergonha do supercílio inchado ou do olho levemente roxo.
Era apenas a boa e indisposta vontade de sempre, minha velha amiga.
 Escorreguei no banheiro.
 Humm. – Ela fez, circunspecta. – Meu Deus, menino, me conta como aconteceu isso...
 Escorregou? Rá-Rá-Rá. Isso tá com cara é de confusão. – O velho Roger comentou com aqueles dentes amarelos de cigarro. Aquele merdinha escroto e indiscreto podia morrer e eu nem sentiria falta.
 Pois é, precisava ver a outra garota... Opa... – e fingi um espasmo de surpresa e vergonha, abanando a mão e tentando me corrigir – O outro cara. Eu quis dizer “o outro cara”.
Todos riram.
Até o velho Roger riu.
Exceto as três feministas da roda. Certamente, em dois segundos problematizaram meu comentário ou talvez já assumissem que tudo precisava ser problematizado. Eu gostava das feministas, não traziam consigo as frescuras e preconceitos e cargas negativas e opiniões calcificadas que as não-feministas traziam. Elas até dividiam a conta do restaurante e pagavam suas próprias despesas, não se surpreendiam com caras bonitos em carros bonitos em cidades litorâneas bonitas de beiras bonitas de praias bonitas. Incríveis, maravilhosas. Porém nem sempre. Olhei para elas e tentei imitar o sorriso da Denise, mas mesmo com meu carisma e fofura, elas não expressaram a menor empatia. Talvez já estivessem me queimando mentalmente em praça pública. Era divertido. Dei de ombros. Sentei na cadeira.
 E então, como foi isso? – Denise insistiu. – Primeiro foi no banheiro, agora foi com outro cara.
 Uma garota. – Corrigi.
 O quê?
 É, o outro cara. – Voltei atrás, propositalmente confuso. – O outro cara. O banheiro.
 Ihhh, o outro cara tava no banheiro? – O velho Roger gritou, apontando na minha cara como se eu fosse uma bicha. Como se ser bicha fosse um crime.
Ele gargalhou.
Aquele Rá-rá-rá-rá estalado de uma rança nojenta na garganta, Deus quisesse que fosse um câncer crescendo. Fase 5. Terminal. Ninguém sentiria falta.
 É, me pegou. Ele tava no banheiro, o outro cara. – Apontei o dedo de volta, rindo com a animação forçada. – O outro cara. No banheiro. O negócio tava tão bom que escorreguei e me bati no chão. Pronto, a verdade.
Mentira.
Que se fodessem todos aqueles depressivos e suicidas e aquela terapeutazinha de caderneta implacável.
Por que eu estava ali?
Ah, sim.
 Vocês estão muito engraçadinhos hoje. Que tal me contar tudinho mais tarde?
 Ah, mas... – Dei de ombros. – Só escorreguei no banheiro. – E abanei as mãos.
 Sei. – Denise fez uma anotação na caderneta.
Irritante.
 Sei. – O velho Roger repetiu, encrenqueiro.
O câncer fazia sucumbir os melhores. Levou Swayzer, por que não o velho Roger?  
 Por onde tem andado, mocinho? – Denise insistiu.
 Por aí.
 O que tem feito, por que nos abandonou?
 Eu to aqui, ué. Senti saudades e apareci.
 Se eu não telefonasse para a sua mãe, né, espertinho? – Havia aquela delicadeza e falsa simpatia sempre por trás do largo sorriso.
Irritante.
 Andei dormindo, assistindo séries e escrevendo – “bebendo, fumando, fodendo e chorando”, acrescentei mentalmente.
 Ah, você escreveu! – E houve um burburinho de sentimentos mistos. Enquanto Roger desdenhava, as feministas continuavam a me queimar com os olhos, Aguilar sorriu com carinho e Joana bateu palminhas. Gustavo inclinou-se, como se aquilo fosse interessante. – Sobre o que escreveu?
 Uma garota que ao ser interrogada por um policial de uma cidadezinha isolada, conta sobre um grupo de caipiras que cultuam um deus-inseto ancestral. Ela quase é estuprada por algumas das criaturas-monstros-inseto quando o herói do conto aparece e acaba com toda a festa.
 Uau. – Ela forçou empolgação.
 Na verdade, é bem menos fantasioso e excitante que isso, embora seja... isso, basicamente. Mensagem de auto-estima e perseverança e tudo no final.
 Crianças. – O velho Roger suspirou.
Gustavo sorriu. Apoiava o rosto com as mãos sob o queixo. Eu só esperava que a pressão da cabeça não abrisse os pontos do pulso.
 Talvez eu até escreva sobre esse meu retorno aqui na roda. Ou sobre como escorreguei no banheiro com o outro cara.
Aí o velho Roger sorriu.
 Que ótimo saber disso! Se escrever sobre esse retorno, seria bom que mostrasse a todos nós.
 É, veremos. Talvez eu publique para todos verem.
E então mais murmurinhos de reações diversas, mas pareciam gostar da ideia.
Denise anotou alguma coisa com aqueles olhos investigadores, sorrateiros e dissimulados que só os terapeutas eram capazes de ter. O velho Roger sorriu, com o câncer que eu torcia para existir estalando com mais sonoridade. As feministas cruzaram os braços e reviraram os olhos, talvez àquela altura eu já tivesse virado churrasco na fogueira mental delas e já estivesse servido com farinha enquanto me mastigavam com desprezível prazer. Aguilar e Joana sorriam, eram os meus favoritos. Eu gostava deles. E tinha o Gustavo.
Alguma coisa me dizia que Gustavo seria o único propenso a divertir-se com esse tipo de irônica poesia que engolia a todos nós e da qual era a merda dessa vida.
Na próxima semana, haveria outra reunião da roda, sala C-3. Àquela altura, o roxo na minha cara já teria sumido, minha mãe saberia apenas do resultado de minhas desastrosas brigas de bar através de uma mensagem de texto da terapeuta irritante e fofoqueira e, em alguns dias, eu talvez até sentisse vontade de frequentar novamente as aulas na universidade. Talvez.
Eu cumpriria minha promessa. Publicaria para todos aqueles depressivos-suicidas apanharem o recado. E que o velho Roger morresse de câncer, definhando enquanto seu time de futebol perde de 5x0 numa noite chuvosa dessas de Fevereiro de quarta-feira Global de retrocesso mental e alienante.    
E que o Gustavo risse de tudo isso, pois era o único que realmente tinha e compreendia o bom, velho e negro senso de humor.
O Gustavo era o único que tinha estilo.