11 de fevereiro de 2017

Gratidão



Café preto, quente.
São oito da manhã e ainda estou de calça e meia, ainda não liguei o ferro para passar a camiseta, tampouco pus o sapato ou apertei o cinto. Estou atrasado há meia hora. Meia hora leva 67% do caminho até a Universidade, é tarde demais agora. Por isso dou de ombros e observo o café quente cair na jarra da cafeteira, divagando sobre o modo como o cabelinho de Carl Sagan era estranho e o quanto vou demorar para ficar com as entradas iguais às de meu pai, quanto tempo meu cabelo vai sumir da minha cara ou quanto tempo vou levar para me tornar tão sábio quanto Carl Sagan – talvez quando meus cabelos permanecerem intactos, certamente. Então o café cai e a cafeteira faz um ruído estranho, porém habitual, aquele som de sucção que esquenta a água e a suga para o próximo nível, o do coedor. Espero mais um pouco, o café quase pronto. E penso no cabelo do Carl Sagan. Penso nas moedas contadas na carteira e agradeço até mesmo aos deuses – inclusive ao judaico-cristão – por eu ter conseguido algum trocado para frequentar alguns minutos (agora perdidos) de aula.
“Gratidão”, como diriam as boas moças descontruídas de hoje em dia que tentavam parecer zen e desprendidas, mas não conseguiam desprender-se das sórdidas amarras do cinismo, provocação, ironia e ferrenha rivalidade. Gratidão é o novo Eu Te Amo, alguém me disse recentemente. Comecei a rir e peguei a jarra, enchendo minha xícara. Olho para o café lá dentro refletindo meu nariz amassado e meus olhos inchados de cansaço existencial e 3 horas diárias de sono. Como está meu ânimo hoje? Péssimo? Não. Então misturo o leite. Desce pela garganta e dissolve tudo de ruim que possa haver na garganta, desce esôfago abaixo. Meus dedos indicador e médio nem mesmo sentem a coceirinha sedutora do cigarro entre eles. Estou bem, revigorado, olhos pesados e bocejos. Estou acordado há mais de uma hora e há mais de uma hora está tocando Johnny Cash. On the evening train agora. Da minha cozinha, acho que os vizinhos conseguem ouvir minha trilha sonora, é uma boa trilha sonora, admitamos. Certa noite, enquanto acendia o cigarro e virava a gordinha garrafa de catuaba, era Kansas que tocava. “Continue, meu flho desobediente, haverá paz quando você tiver terminado” e então alguém reagiu, um desses vizinhos aqui ao lado que vivem gritando e brigando e se matando. O cara reagiu positivamente, como se surpreendido por ouvir música boa de onde menos esperava. Desde então, sinto-o interessado, toda a noite, quando possível, quando sento para fumar e alcançar um pingo algum de sono através da catuaba, até sinto que o vizinho canastrão quer ouvir a minha trilha. Isso é bom, poucas vezes me senti útil na vida, agora é uma dessas vezes. Valeu mais do que todos os meus relacionamentos anteriores, sinto-me mais útil do que a soma de todo o resultado deles. Ahá. O café desce pela garganta, ele está bom, suficientemente agradável. Agora o Sr. Cash canta Wayfaring Stranger e penso: “isso aqui é vida, isso aqui é tá bom. Por que sair de casa?”. Deito no sofá, estico as pernas e fecho os olhos. 98 músicas do Homem de Preto na playlist garantem algumas longas horas de companhia. Quando abro os olhos, são onze da manhã e está tocando One. Música desgraçada para desgraçar a minha desgraçada cabeça. Levanto e faço mais café, mas agora não misturo com leite. Merda, meu ânimo mudou. Até os dedos começam a coçar.
É quase hora do almoço, minhas panelas estão vazias e eu só tenho moedas contadas para o transporte e um real para o almoço, mas dormi demais. Eu sempre durmo demais. Claire havia dito que passamos mais da metade de nossas vidas dormindo e certamente eu já mencionei isso em outro texto. Defasado e repetitivo, porém ainda verdadeiro. Meu estômago ronca, aparentemente apenas café não enche o bucho. Faço um estalo com a boca e volto a deitar no sofá.
Pelo menos ainda está tocando Cash. Quando se está tocando Cash, tudo fica um pouquinho melhor.
É como diriam aquelas mocinhas descontruídas de hoje em dia:
gratidão.
É como vai se chamar esse texto.




Nenhum comentário:

Postar um comentário