31 de março de 2017

Esquinas improváveis



Talvez esteja eu fazendo um tutorial, um caminho incerto para a felicidade passageira que em uma noite chuvosa de Dezembro encontrei. Acontece que se você subir com passos cautelosos, bêbados e animados pela Frutuoso Guimarães, esperar por um minuto ou um minuto e meio enquanto seus camaradas, desesperados, procuram um poste para despejar a urina e negar todos seus anos gloriosos de refinamento intelectual e desconstrução social, vai encontrar o que eu encontrei em uma noite improvável. Tenho uma garrafa gordinha e quase vazia da bebida dos deuses profanos na mão, estou seguindo quieto, rindo com as piadas que contam atrás de mim e abestalhado com o perfume que exalam os cabelos negros e curtos à minha frente. Jordana me olha vez ou outra, garantido que eu ainda esteja ali – ou ao menos é dessa forma que, admirado demais, interpreto. Ela até diz "já tamo chegando” e eu balanço a cabeça, como se nada estivesse errado – e nada realmente está.
Cai uma fina garoa.
As ruelas estão vazias.
A casa de Jornada também.
Somos jovens demais, impetuosos demais, invencíveis demais, corajosos demais e capazes de enfrentar qualquer ameaça que surja na madrugada. Raquel (que obviamente não se chama Raquel a não ser nestas linhas), com seus cabelos raspados à máquina um, olhos verdes e sardinhas no nariz, me olha e dá uma gargalhada, trôpega demais, jamais esquecendo a piadinha que fiz horas atrás sobre aquele programa de tv com o João Kléber e a esposa que revela o segredo de ter se apaixonado pelo Papai Noel do shopping. Parece tudo mais engraçado quando se está bêbado. A Frutuoso Guimarães parecia muito menos perigosa com tanto álcool em nossas cabeças. Mas estou apenas zonzo, a sobriedade vagarosamente retornando – talvez por isso eu questione o ímpeto corajoso que alcoolicamente nos atinge. Os camaradas gritam atrás de nós, parecem ter retrocedido no tempo, àquela época em que nós rapazes éramos em totalidade aficionados por atitudes infantis (não que este impulso uma hora morra completamente). As meninas, guerreiras verdadeiramente valentes, seguem na vanguarda sob piadas, risadinhas e certas que serão elas a nos defender, não o contrário.
E não discordo.
Dou um gole na Catuaba já quente e aperto os passos. Agora estou ao lado dela, sutilmente reparando no modo como a ponta do cabelo balança em contraste com a pele alva do pescoço. Jordana tem uma camiseta listrada, “sou uma zebra”, havia dito com aquela risadinha meio sacana, meio sem graça. Desbravadores e barulhentos, vibramos quando ela avisa que chegamos, apontando para a esquina com a Gen. Gurjão e provando-nos que realmente mora em uma casa rosa. “Um contraste e tanto”, ironizou mais cedo, quando sugerira a ideia de alongar a noite.
São em noites assim, quando uma fina garoa cai e que ruelas desertas da Campina não nos assustam, que encontramos estranhas primaveras. Ou verões, decerto. Eu caio no sofá e fecho os olhos, sentindo o peso da gordinha bebida dos deuses profanos e bocejando o que parece ser seu efeito de praxe. Os camaradas continuam a bebedeira, as outras meninas acendem seus fumos artesanais. A música toca relativamente alta, uma mistura de baladinha-anos-oitenta me parece distante demais para identificar – eu realmente sou um ignorante musical.
Aí Jordana senta ao meu lado, desabando com sua roupinha de zebra.
(Acho que nestas linhas a chamarei de Jordana, por causa daquela webcomic pela qual você disse ter se apaixonado na primeira vez que conversamos).
Jordana está perto demais e me oferece um cigarro que eu aceito de imediato. “Como chegamos aqui vivos?”, pergunto. Ela me despeja aquela gargalhada gostosa herdada da mãe e diz “eu também não sei”. É nessa noite que ambos rimos da insanidade e na cara do perigo, é nessa noite que trocamos alguns tragos, é nessa noite que gritamos em coro para que Raquel tenha cuidado com a mesa de vidro no centro da sala. É nessa noite que um dos camaradas quebra uma tulipa e Jordana só abana a mão obrigando-os a limpar, é nessa noite que liga a Netflix e me mostra seu filme favorito do Cameron Crowe (já que Elizabethtown me pertencia).
É nessa noite que nos beijamos pela primeira vez. É nessa noite que ela entrega a mim o primeiro passe livre àquela esquina improvável. Três dias depois, ela jura que eu não lembro de nada que acontecera ali – as trapalhadas de Raquel, a tulipa quebrada, a roupa da zebra e sua preferência por Say Anything, já que Elizabethtown me pertencia. Duas semanas depois, estou ali de volta por causa dos cabelos que beijam seus ombros e implorando para que seja uma zebra novamente. Vinte e cinco dias depois, sou apresentado ao churrasco de seu pai e escuto a recitação de sua mãe. Trinta e dois dias depois, volto àquela esquina improvável para aplacar o inevitável.
Dois meses depois, provo nestas linhas que lembro cada detalhe a respeito daquela noite de Dezembro naquela esquina tão improvável.
Dois meses depois, provo o quanto ela estava errada.
Coisa que, aliás, Jordana admiravelmente odeia estar.       


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