Explodiram São Petersburgo.
Teu gato será uma das mais fortes
lembranças que vou ter em longo tempo sobre tua existência; teu gato se chamava
Raskolnikov e era taciturno demais, quase traiçoeiro. Pouquíssimos eram os
felinos que não gostavam de mim, o gordo Rod era um deles. Eu não lembro
exatamente a última vez que o vi ou que tentei exaustivamente brincar com ele,
essas lembranças são retalhos indefinidos e inacessíveis que eu gostaria de ter
guardado nas gavetas mais acima, aquelas fáceis de se alcançar, mas ao que tudo
indica coloquei todos as notas mentais, fragmentos e frames congelados nas
gavetas de baixo, aquelas que minhas mãos não chegam. Por essa infeliz razão,
eu não lembro de meu último contato com o gordo Rod. Lembro, contudo, da vez em
que você disse que ele não miava daquele jeito para mais ninguém, aquele jeito
raro que os bichanos miam logo depois do petisco, quando entrelaçam-se,
ronronando, entre suas pernas quase em forma de agradecimento. O que há salvo
nas minhas gavetas de cima, neste momento, é você deitada no sofá com a cabeça
sobre meu colo, comentando essa supracitada forma que o Raskolnikov miava para
mim – porque aquele miado implorando por comida, típico deles, ele até
esbanjava para todo mundo; o miado pós-petisco, não; era apenas meu. “É a
terceira ou quarta vez que ele faz isso pra ti”, você falou. Essa memória eu
guardei – e talvez até tenha arquivado a memória desse tão particular e especial
miado do Rod, embora permaneça intacta minha opinião a respeito das verdadeiras
intenções dele para comigo.
O gordo gato me desdenhava.
Quando eu saí por aquela porta,
confesso que não reparei se Rod veio atrás de mim, creio que não. Quando passei
por aquela porta e sua priminha, a Teresa, falou comigo com aquele sorrisinho
banguela e eu fiz um carinho na cabeça dela, embaraçando aqueles cabelos de um
castanho sutilmente queimado, também não reparei muito no bichano. Ela me
perguntou se eu ficaria para assistir Titio Avô com ela e eu disse que não, mas
dei um “BOM DIA” enérgico e caricato. Ela me respondeu da mesma forma. Sua
prima Teresa eu guardei nas gavetas de cima, porque eu olhei para trás e
confesso não ter reparado no Rod, mas reparei que você estava ali, ao longe,
engolindo aquele choro desgraçado que me dava vontade de voltar atrás, mas eu
tinha um orgulho a manter, mas eu tinha que firmar um orgulho que não tivera
nos últimos três anos, dois meses e dezesseis dias. Eu contei. Eu sou bom com
datas, lembro de cada uma, creio que seja instinto adquirido de algum lado da
minha família: Você Possui os Genes Para Lembrar de Datas Importantes. Lembro
de nosso dia, lembro qual dia da semana passei por aquela porta e qual o número
dele – lembro da Teresa, lembro do “BOM DIA”, lembro do seu olhar contendo o
choro e implorando para ficar. Eu não fiquei. Lembro de não ter ficado, também.
Sou bom com datas, acho que está no sangue.
Três de Abril de Dois Mil e
Dezessete.
Explodiram São Petersburgo.
Falei com seu pai na saída. Homens
são bobos, desatentos aos detalhes mais escancarados. Sua mãe, no entanto,
notou a sutileza. Eu amava o café com leite que ela fazia todas as manhãs antes
de vestir-se naquelas roupas alinhadas, saltos elegantes e pegar as chaves do
carro para mais um dia no Fórum de Belém. O café era glorioso, bebida dos
deuses. Havia algo nele de especial que até hoje tento desvendar, que até hoje
me condeno por não mais saborear. Sua mãe notou a sutileza, sobretudo por não
termos descido à mesa e por eu negar, por três vezes, quando ela insistiu para
que dele eu tomasse antes de sair para o que quer que fosse “tão urgente e
exigisse minha atenção”. Ela te conhecia há dezenove anos, dezesseis a mais que
eu e portanto sabia, mais do que ninguém, que aquilo o que você prendia na
garganta era choro, não alergia ao pelo do Rod. Guardei nas gavetas de cima a
imagem e o rosto dos seus pais, porque você geralmente tende a guardar a última
imagem que mentalmente fotografa de pessoas amadas. Guardei a deles. Aquela foi
a última vez que falei com sua mãe.
Não olhei para trás outra vez, porque
tudo estava acabado e você faria qualquer para insistir no contrário – tudo
bem, qualquer um em são desespero faria o mesmo. Eu faria o mesmo, no seu
lugar. Eu faria um escândalo. Eu não me deixaria partir para evitar a tortura
futura de ter de partir também. Se fosse eu mais esperto, não teria partido. Se
fosse você mais esperta, não teria entrado naquele metrô.
Recordo também o dia de seu voo. Você
nunca vai saber agora, mas eu fui ao aeroporto e te vi de longe. Não foi tão
dramático como nos filmes, mas me saí bem em não revelar minha presença –
naquela época, eu me saí muito bem em não revelar coisa alguma. Cê sabe, eu
poderia ser um gelo desgraçado quando bem desejasse. E assim desejei. Eu te vi
embarcar, eu vi seu avião decolar. Eu nunca fui te abraçar, nunca te dei a
chance de mudar de ideia e parar antes do check-in. Nos últimos meses eu havia
escrito uma centena de textos sobre esse dia, fantasiando uma versão
alternativa onde eu vou ao teu encontro com aqueles costumeiros abraços de
Coala. Eu te apertava forte e você a mim e então você desistia de seus sonhos
para ficar comigo, o que oficialmente seria dito aos seus pais que “não estou
preparada ainda, posso ir ano que vem?” e assim eles aceitariam porque seus
pais são feitos de suprema ternura e compaixão – não é de me admirar de onde
você herdou tudo isso. Escrevi há três semanas alguns parágrafos e dois contos,
todos dentro do aeroporto; todos com a voz de Bob Dylan ao fundo cantando
One more cup of coffee for the road,
one more cup of coffee for I go
to the valley below
enquanto nos desfazíamos em lágrimas
e desistíamos de seu embarque.
Em partes, isso aconteceu – a canção
de Dylan, porém não a intervenção no aeroporto. Essa foi a última música que
ouvimos juntos, naquela época em que, adolescentes, ainda partilhávamos o mesmo
fone de ouvido. Ter escutado Bob Dylan com você, naquela noite em meio às
brigas, aos socos surdos, às lágrimas, às palavras tortas, torpes e tortuosas,
pedidos de perdão e releituras das tragédias foi, com demasiada certeza, a mais
dolorosa memória engavetada que pude guardar nas gavetas de cima – bem pior do
que o frame de seu avião decolando, porque nesse momento eu soube que já não
havia mais volta.
E nunca houve.
Eu sou bom com datas, sabia?
Três de Abril de Dois Mil e
Dezessete.
Eu estava prestes a dormir quando
peguei o celular e li as palavras de desespero de nossos amigos e de sua
maneiríssima tia Jaque, a mãe da Teresa. Essa madrugada foi um terror para
todos nós, meu amor. Essa madrugada foi um terror para mim, porque nunca
consegui te contar que estive no aeroporto naquele dia. E graças às crenças
materialistas que possuo ou, em outras palavras, graças à falta de crenças que
tenho, inconformo-me ao saber que você jamais saberá. Porque não está você em
lugar algum além desta vida e do buraco naquela terra para que saiba, com
amplitude, o quanto estive no aeroporto naquele derradeiro Sábado de Julho.
Explodiram um metrô.
Explodiram um metrô em São
Petersburgo, meu amor.
E eu nunca mais vou te ver.