5 de abril de 2017

Explodiram São Petersburgo



Explodiram São Petersburgo.
Teu gato será uma das mais fortes lembranças que vou ter em longo tempo sobre tua existência; teu gato se chamava Raskolnikov e era taciturno demais, quase traiçoeiro. Pouquíssimos eram os felinos que não gostavam de mim, o gordo Rod era um deles. Eu não lembro exatamente a última vez que o vi ou que tentei exaustivamente brincar com ele, essas lembranças são retalhos indefinidos e inacessíveis que eu gostaria de ter guardado nas gavetas mais acima, aquelas fáceis de se alcançar, mas ao que tudo indica coloquei todos as notas mentais, fragmentos e frames congelados nas gavetas de baixo, aquelas que minhas mãos não chegam. Por essa infeliz razão, eu não lembro de meu último contato com o gordo Rod. Lembro, contudo, da vez em que você disse que ele não miava daquele jeito para mais ninguém, aquele jeito raro que os bichanos miam logo depois do petisco, quando entrelaçam-se, ronronando, entre suas pernas quase em forma de agradecimento. O que há salvo nas minhas gavetas de cima, neste momento, é você deitada no sofá com a cabeça sobre meu colo, comentando essa supracitada forma que o Raskolnikov miava para mim – porque aquele miado implorando por comida, típico deles, ele até esbanjava para todo mundo; o miado pós-petisco, não; era apenas meu. “É a terceira ou quarta vez que ele faz isso pra ti”, você falou. Essa memória eu guardei – e talvez até tenha arquivado a memória desse tão particular e especial miado do Rod, embora permaneça intacta minha opinião a respeito das verdadeiras intenções dele para comigo.
O gordo gato me desdenhava.
Quando eu saí por aquela porta, confesso que não reparei se Rod veio atrás de mim, creio que não. Quando passei por aquela porta e sua priminha, a Teresa, falou comigo com aquele sorrisinho banguela e eu fiz um carinho na cabeça dela, embaraçando aqueles cabelos de um castanho sutilmente queimado, também não reparei muito no bichano. Ela me perguntou se eu ficaria para assistir Titio Avô com ela e eu disse que não, mas dei um “BOM DIA” enérgico e caricato. Ela me respondeu da mesma forma. Sua prima Teresa eu guardei nas gavetas de cima, porque eu olhei para trás e confesso não ter reparado no Rod, mas reparei que você estava ali, ao longe, engolindo aquele choro desgraçado que me dava vontade de voltar atrás, mas eu tinha um orgulho a manter, mas eu tinha que firmar um orgulho que não tivera nos últimos três anos, dois meses e dezesseis dias. Eu contei. Eu sou bom com datas, lembro de cada uma, creio que seja instinto adquirido de algum lado da minha família: Você Possui os Genes Para Lembrar de Datas Importantes. Lembro de nosso dia, lembro qual dia da semana passei por aquela porta e qual o número dele – lembro da Teresa, lembro do “BOM DIA”, lembro do seu olhar contendo o choro e implorando para ficar. Eu não fiquei. Lembro de não ter ficado, também. Sou bom com datas, acho que está no sangue.
Três de Abril de Dois Mil e Dezessete.
Explodiram São Petersburgo.   
Falei com seu pai na saída. Homens são bobos, desatentos aos detalhes mais escancarados. Sua mãe, no entanto, notou a sutileza. Eu amava o café com leite que ela fazia todas as manhãs antes de vestir-se naquelas roupas alinhadas, saltos elegantes e pegar as chaves do carro para mais um dia no Fórum de Belém. O café era glorioso, bebida dos deuses. Havia algo nele de especial que até hoje tento desvendar, que até hoje me condeno por não mais saborear. Sua mãe notou a sutileza, sobretudo por não termos descido à mesa e por eu negar, por três vezes, quando ela insistiu para que dele eu tomasse antes de sair para o que quer que fosse “tão urgente e exigisse minha atenção”. Ela te conhecia há dezenove anos, dezesseis a mais que eu e portanto sabia, mais do que ninguém, que aquilo o que você prendia na garganta era choro, não alergia ao pelo do Rod. Guardei nas gavetas de cima a imagem e o rosto dos seus pais, porque você geralmente tende a guardar a última imagem que mentalmente fotografa de pessoas amadas. Guardei a deles. Aquela foi a última vez que falei com sua mãe.
Não olhei para trás outra vez, porque tudo estava acabado e você faria qualquer para insistir no contrário – tudo bem, qualquer um em são desespero faria o mesmo. Eu faria o mesmo, no seu lugar. Eu faria um escândalo. Eu não me deixaria partir para evitar a tortura futura de ter de partir também. Se fosse eu mais esperto, não teria partido. Se fosse você mais esperta, não teria entrado naquele metrô.
Recordo também o dia de seu voo. Você nunca vai saber agora, mas eu fui ao aeroporto e te vi de longe. Não foi tão dramático como nos filmes, mas me saí bem em não revelar minha presença – naquela época, eu me saí muito bem em não revelar coisa alguma. Cê sabe, eu poderia ser um gelo desgraçado quando bem desejasse. E assim desejei. Eu te vi embarcar, eu vi seu avião decolar. Eu nunca fui te abraçar, nunca te dei a chance de mudar de ideia e parar antes do check-in. Nos últimos meses eu havia escrito uma centena de textos sobre esse dia, fantasiando uma versão alternativa onde eu vou ao teu encontro com aqueles costumeiros abraços de Coala. Eu te apertava forte e você a mim e então você desistia de seus sonhos para ficar comigo, o que oficialmente seria dito aos seus pais que “não estou preparada ainda, posso ir ano que vem?” e assim eles aceitariam porque seus pais são feitos de suprema ternura e compaixão – não é de me admirar de onde você herdou tudo isso. Escrevi há três semanas alguns parágrafos e dois contos, todos dentro do aeroporto; todos com a voz de Bob Dylan ao fundo cantando

One more cup of coffee for the road,
one more cup of coffee for I go
to the valley below

enquanto nos desfazíamos em lágrimas e desistíamos de seu embarque.
Em partes, isso aconteceu – a canção de Dylan, porém não a intervenção no aeroporto. Essa foi a última música que ouvimos juntos, naquela época em que, adolescentes, ainda partilhávamos o mesmo fone de ouvido. Ter escutado Bob Dylan com você, naquela noite em meio às brigas, aos socos surdos, às lágrimas, às palavras tortas, torpes e tortuosas, pedidos de perdão e releituras das tragédias foi, com demasiada certeza, a mais dolorosa memória engavetada que pude guardar nas gavetas de cima – bem pior do que o frame de seu avião decolando, porque nesse momento eu soube que já não havia mais volta.
E nunca houve.
Eu sou bom com datas, sabia?
Três de Abril de Dois Mil e Dezessete.
Eu estava prestes a dormir quando peguei o celular e li as palavras de desespero de nossos amigos e de sua maneiríssima tia Jaque, a mãe da Teresa. Essa madrugada foi um terror para todos nós, meu amor. Essa madrugada foi um terror para mim, porque nunca consegui te contar que estive no aeroporto naquele dia. E graças às crenças materialistas que possuo ou, em outras palavras, graças à falta de crenças que tenho, inconformo-me ao saber que você jamais saberá. Porque não está você em lugar algum além desta vida e do buraco naquela terra para que saiba, com amplitude, o quanto estive no aeroporto naquele derradeiro Sábado de Julho.
Explodiram um metrô.
Explodiram um metrô em São Petersburgo, meu amor.
E eu nunca mais vou te ver.



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