A mãe de Júlia sempre quis meu couro.
A mãe de Júlia tiraria o meu couro se
naquele momento eu não obedecesse às ordens que ela gritava na minha direção,
enquanto segurava o vaso de flores que estava há três gerações na família
delas:
- Sai de perto da Júlia, Felipe!
E eu saí.
Recuei alguns passos com as mãos
levantadas para cima enquanto não sabia o que fazer, como fazer ou quando
fazer. Eu já devia ter escrito sobre isso alguma vez, em algum lugar, em alguma
de minhas infantis narrativas sobre bêbados perdidos ou sobre rapazes
britânicos atormentados por anjos sádicos, sedentos por vingança e protegidos
por anjos de curvas esbeltas e de fidelidade duvidosa; eu já devia ter escrito
utilizando aquele mesmo recurso cinematográfico de quando uma bomba explode
próximo ao protagonista e por dez segundos um zumbido toma conta da sala de
cinema, mostrando a perspectiva dele, enquanto todas as explosões ao redor,
toda a gritaria, todo o sangue e toda a saraivada de tiros corta o céu acima e
o protagonista, perdido, atordoado e desequilibrado, cambaleia pelo chão,
agachado com as mãos no ouvido, tentando expulsar o zumbido no tímpano que o
impede de caminhar e que o desorienta.
Enquanto a mãe de Júlia gritava, eu
era o protagonista com o zumbido no ouvido. A diferença é que eu não sabia se o
zumbido era a voz metálica de sotaque irritante nos meus ouvidos, o grito de
Júlia atrás dela enquanto a irmã a segurava pelos braços ou a porra do meu
descontrole emocional correndo pelas veias, deixando-me agressivo, animalesco,
apontando um dedo reto e nem tão imponente na cara da mulher que eu julgava
amar ou de outras pessoas que só queriam protegê-la.
A mãe de Júlia tinha um vaso na mão,
aquela senhora distinta de classe média com cabelo bem alisado e agenda sempre
marcada na clínica dermatológica para limpar a pele e as manchas no rosto. O
vaso estava há três gerações na família de Júlia e agora estava prestes a voar
na minha cara.
O zumbido continuava.
Eu não temia a porra de vaso algum
espatifando-se na minha cara já não tão agraciada pela genética.
Eu temia pela segurança do vaso.
Então levantei as mãos e recuei
alguns passos, essa merda passara dos limites.
Reassumi o controle de mim.
- Eu quero que tua saias agora daqui de casa ou eu vou
chamar a polícia, Felipe!
- Vish.
Do outro lado da sala de estar, Júlia
gritava:
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA. EU TE
ODEIO, SEU MERDA. EU VOU ACABAR CONTIGO, SEU VIADINHO DE MERDA.
- Oh.
A mãe de Júlia, que agora eu já poderia
considerar chamar de “ex-sogra”, ergueu a mão e arremessou o vaso. Eu já havia
recuado e desistido de seguir em frente quando a velha desgraçada atirou o vaso
na minha direção, eu amava o desenho em alto relevo que as cidreiras coloridas
rodopiavam de maneira helicoidal por toda a porcelana branca, decorada com
pequenos pontilhados de pétalas vermelhas. Pétalas que lembravam pétalas de
cerejeiras, mas que não eram cerejeiras porque eram vermelhas e pétalas de
cerejeiras seriam se não fossem apenas pétalas vermelhas.
Aí o vaso que estava há três gerações
na família foi arremessado.
O problema é que ele passou a três
pernas de distância da minha cabeça e num ângulo muito aberto, em uma direção deveras
distante em um sentido deveras oposto. Quando ele se espatifou contra a vidraça
da janela corrida de vidro que dava acesso à varanda, meu olhar apenas o
acompanhou. O som de porcelana contra vidro e de vidro quebrando e de porcelana
atravessando e explodindo logo em seguida não melhorou muito o zumbido em meus
ouvidos, que agora já estava aliviando. Na verdade, o choque sonoro da explosão
ecoou por todo o condomínio. Alguém lá fora gritou e o volume das televisões
nos apartamentos de cima até diminuiu. Com isso, todos escutavam a voz de Júlia
que dizia:
- EU VOU FODER COM A TUA RAÇA AGORA,
DESGRAÇADO. SEU MERDA DO CARALHO, EU VOU TE FODER BONITO. VEM PRA CÁ SE TU ÉS
HOMEM, VEM PRA CÁ AGORA.
- Eu iria, mas a tua mãe não deixa. –
Respondi, mas como não fui capaz de ouvir minha própria voz, julguei ter dito
fraco e inaudível demais.
- O QUE TU FALASTE, SEU ARROMABADO DO
CARALHO? REPETE! REPETE! REPETE AGORA!
- O quê??! – A mãe de Júlia gritou.
- Quê o quê, gente?
Eu não conseguia tirar os olhos da
vidraça.
E havia o vaso.
Três gerações de vida e o vaso não
existia mais.
Eu gostava das pétalas vermelhas que
seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas rosas e não pétalas vermelhas
sobre a porcelana branca envolta por cidreiras helicoidais em alto relevo.
- FALA DE NOVO, CARALHO! – Julia se
debatia nos braços da irmã.
- Seu filho da puta, eu vou chamar a
polícia! – A mãe de Júlia gritou.
- EU IRIA AÍ, MAS A TUA MÃE NÃO
DEIXA. – Respondi, com as mãos no ouvido para afastar o zumbido que não era de
fato real, apenas psicológico, mas se eu mesmo escutara minha voz, então elas
igualmente escutaram.
- ENTÃO VEM, CARALHO.
- Eu vou chamar a polícia! – Disse a
velha já com o celular em mãos.
- A senhora quebrou o vaso, dona
Lourdes.
Acho que àquela altura eu não poderia
mais chama-la de sogrinha.
- EU VOU TE MATAR!
Aí a mãe de Júlia ligou para a
polícia:
- Moço, pelo amor de Deus, ele não
quer sair aqui de cas...
- Oh. Meu Deus, gente, vocês
quebraram o vaso.
E recuei mais três passos na direção
dos cacos de vidro.
Quando olhei para fora, havia gente
demais nas janelas dos prédios vizinhos. Acenei para eles e agachei-me para
pegar o que sobrara do vaso.
Três malditas gerações para ser
arremessado em uma direção tão errônea, tão aleatória.
- O QUE TU TÁ FAZENDO, SEU COVARDE!
VEM SER HOMEM AGORA, VEM! ME LARGA, JANAÍNA.
Janaína era a irmã de Júlia. Sete
anos mais nova, vinte centímetros mais alta e assídua jogadora de LoL. Janaína
entendia todas as referências que minhas piadas ocultistas e nerds continham,
Júlia não. Júlia sempre revirava os olhos.
- Meu Deus, moço, ele não quer sair
da nossa casa e agora... Ahhhhh, moço, ele tá pegando um caco de vidro pra...
- Não, espera, moço, eu só tô
recolhendo o vaso.
- FALA MAIS ALTO, COVARDE!
- Mandem logo alguém, socorro, meu
Deus!
- Gente, o vaso...
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA.
- Ah.
- Mandem logo a viatura...!
- Não.
- CAI NO PAU, COVARDE!
- Cai no quê?
- Já tá vindo, graças a Deus, Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, graças ao Sagrado Coração de Jesus, meu amado São
Benedito eles já tão mandando uma viat...
- Oh, ah, não...
- EU VOU TE MATAR, CARALHO. EU VOU TE
MATAR, PORRA. SEGUNDA-FEIRA TODO VAI VER QUEM TU É DE VERDAD...
- Oh, gente.
- Felipe, vai embora daqui, por
favor! – Foi Janaína quem gritou agora.
- Jana, mano, o vaso.
- Foda-se o vaso, dá o fora daqui, Felip...
- EU VOU TE MATAAAAAAR!
- Eles vão te prender, seu monstro
filho da puta!
Certo.
Eis o clímax da situação e o momento
em que os mais jovens devem ser ouvidos:
Guardei no bolso o último pedaço do
vaso e corri para a porta. Júlia se desfez dos braços da irmã, mas a essa
altura eu já tinha fechado a porta e corria pelos corredores e escadas abaixo
enquanto a minha loirinha de mechas azuladas vinha atrás de mim com algo nas
mãos que eu não tinha certeza ser uma tesoura, caco de vidro ou uma versão
integral da llíada de Homero.
Quando saí do prédio correndo feito
um condenado e passando pelos prédios vizinhos, contornando carros e
despistando Júlia-Veloz-e-Furiosa atrás de mim, as luzes da polícia já piscavam
na entrada do condomínio. Fui até eles com as mãos balançando e abracei o
primeiro policial que encontrei, que instantaneamente derrubou-me no chão com
uma agradável rasteira e algemou-me de imediato, jogando-me no camburão do
carro.
Lá fora, Júlia gritava
- SEU ESCROTO, TODO MUNDO VAI SABER,
SEU ARROMBADO DE MERDA, COVARDEZINHO DESGRAÇADO. EU TE ODEIO, SEU PORRA, TOMA
NO CU, VAI SE FODER, EU TE ODEIO, SEU MERDINHA.
Meu maxilar pulsava e em algum lugar
do meu rosto algo ardia, eu sentia cheiro de sangue, mas nem era isso o que de
fato me incomodava.
Se até mesmo o velho e bom Cash tinha
uma passagem pela polícia, então eu não importaria de passar um tempo na minha
própria, particular e tão paraense Folsom Prison.
O que me incomodava mesmo era o vaso
de pétalas vermelhas que até seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas
rosas ao invés de pétalas vermelhas na porcelana branca envolta por cidreiras coloridas
em alto relevo.
Três gerações para terminar daquele
jeito.
Que triste.