29 de julho de 2017

Dos vasos de três gerações



A mãe de Júlia sempre quis meu couro.
A mãe de Júlia tiraria o meu couro se naquele momento eu não obedecesse às ordens que ela gritava na minha direção, enquanto segurava o vaso de flores que estava há três gerações na família delas:
- Sai de perto da Júlia, Felipe!
E eu saí.
Recuei alguns passos com as mãos levantadas para cima enquanto não sabia o que fazer, como fazer ou quando fazer. Eu já devia ter escrito sobre isso alguma vez, em algum lugar, em alguma de minhas infantis narrativas sobre bêbados perdidos ou sobre rapazes britânicos atormentados por anjos sádicos, sedentos por vingança e protegidos por anjos de curvas esbeltas e de fidelidade duvidosa; eu já devia ter escrito utilizando aquele mesmo recurso cinematográfico de quando uma bomba explode próximo ao protagonista e por dez segundos um zumbido toma conta da sala de cinema, mostrando a perspectiva dele, enquanto todas as explosões ao redor, toda a gritaria, todo o sangue e toda a saraivada de tiros corta o céu acima e o protagonista, perdido, atordoado e desequilibrado, cambaleia pelo chão, agachado com as mãos no ouvido, tentando expulsar o zumbido no tímpano que o impede de caminhar e que o desorienta.
Enquanto a mãe de Júlia gritava, eu era o protagonista com o zumbido no ouvido. A diferença é que eu não sabia se o zumbido era a voz metálica de sotaque irritante nos meus ouvidos, o grito de Júlia atrás dela enquanto a irmã a segurava pelos braços ou a porra do meu descontrole emocional correndo pelas veias, deixando-me agressivo, animalesco, apontando um dedo reto e nem tão imponente na cara da mulher que eu julgava amar ou de outras pessoas que só queriam protegê-la.
A mãe de Júlia tinha um vaso na mão, aquela senhora distinta de classe média com cabelo bem alisado e agenda sempre marcada na clínica dermatológica para limpar a pele e as manchas no rosto. O vaso estava há três gerações na família de Júlia e agora estava prestes a voar na minha cara.
O zumbido continuava.
Eu não temia a porra de vaso algum espatifando-se na minha cara já não tão agraciada pela genética.
Eu temia pela segurança do vaso.
Então levantei as mãos e recuei alguns passos, essa merda passara dos limites.
Reassumi o controle de mim.
- Eu quero que tua saias agora daqui de casa ou eu vou chamar a polícia, Felipe!
- Vish.
Do outro lado da sala de estar, Júlia gritava:
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA. EU TE ODEIO, SEU MERDA. EU VOU ACABAR CONTIGO, SEU VIADINHO DE MERDA.
- Oh.
A mãe de Júlia, que agora eu já poderia considerar chamar de “ex-sogra”, ergueu a mão e arremessou o vaso. Eu já havia recuado e desistido de seguir em frente quando a velha desgraçada atirou o vaso na minha direção, eu amava o desenho em alto relevo que as cidreiras coloridas rodopiavam de maneira helicoidal por toda a porcelana branca, decorada com pequenos pontilhados de pétalas vermelhas. Pétalas que lembravam pétalas de cerejeiras, mas que não eram cerejeiras porque eram vermelhas e pétalas de cerejeiras seriam se não fossem apenas pétalas vermelhas.
Aí o vaso que estava há três gerações na família foi arremessado.
O problema é que ele passou a três pernas de distância da minha cabeça e num ângulo muito aberto, em uma direção deveras distante em um sentido deveras oposto. Quando ele se espatifou contra a vidraça da janela corrida de vidro que dava acesso à varanda, meu olhar apenas o acompanhou. O som de porcelana contra vidro e de vidro quebrando e de porcelana atravessando e explodindo logo em seguida não melhorou muito o zumbido em meus ouvidos, que agora já estava aliviando. Na verdade, o choque sonoro da explosão ecoou por todo o condomínio. Alguém lá fora gritou e o volume das televisões nos apartamentos de cima até diminuiu. Com isso, todos escutavam a voz de Júlia que dizia:
- EU VOU FODER COM A TUA RAÇA AGORA, DESGRAÇADO. SEU MERDA DO CARALHO, EU VOU TE FODER BONITO. VEM PRA CÁ SE TU ÉS HOMEM, VEM PRA CÁ AGORA.
- Eu iria, mas a tua mãe não deixa. – Respondi, mas como não fui capaz de ouvir minha própria voz, julguei ter dito fraco e inaudível demais.
- O QUE TU FALASTE, SEU ARROMABADO DO CARALHO? REPETE! REPETE! REPETE AGORA!
- O quê??! – A mãe de Júlia gritou.
- Quê o quê, gente?
Eu não conseguia tirar os olhos da vidraça.
E havia o vaso.
Três gerações de vida e o vaso não existia mais.
Eu gostava das pétalas vermelhas que seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas rosas e não pétalas vermelhas sobre a porcelana branca envolta por cidreiras helicoidais em alto relevo.
- FALA DE NOVO, CARALHO! – Julia se debatia nos braços da irmã.
- Seu filho da puta, eu vou chamar a polícia! – A mãe de Júlia gritou.
- EU IRIA AÍ, MAS A TUA MÃE NÃO DEIXA. – Respondi, com as mãos no ouvido para afastar o zumbido que não era de fato real, apenas psicológico, mas se eu mesmo escutara minha voz, então elas igualmente escutaram.
- ENTÃO VEM, CARALHO.
- Eu vou chamar a polícia! – Disse a velha já com o celular em mãos.
- A senhora quebrou o vaso, dona Lourdes.
Acho que àquela altura eu não poderia mais chama-la de sogrinha.
- EU VOU TE MATAR!
Aí a mãe de Júlia ligou para a polícia:
- Moço, pelo amor de Deus, ele não quer sair aqui de cas...
- Oh. Meu Deus, gente, vocês quebraram o vaso.
E recuei mais três passos na direção dos cacos de vidro.
Quando olhei para fora, havia gente demais nas janelas dos prédios vizinhos. Acenei para eles e agachei-me para pegar o que sobrara do vaso.
Três malditas gerações para ser arremessado em uma direção tão errônea, tão aleatória.
- O QUE TU TÁ FAZENDO, SEU COVARDE! VEM SER HOMEM AGORA, VEM! ME LARGA, JANAÍNA.
Janaína era a irmã de Júlia. Sete anos mais nova, vinte centímetros mais alta e assídua jogadora de LoL. Janaína entendia todas as referências que minhas piadas ocultistas e nerds continham, Júlia não. Júlia sempre revirava os olhos.
- Meu Deus, moço, ele não quer sair da nossa casa e agora... Ahhhhh, moço, ele tá pegando um caco de vidro pra...
- Não, espera, moço, eu só tô recolhendo o vaso.
- FALA MAIS ALTO, COVARDE!
- Mandem logo alguém, socorro, meu Deus!
- Gente, o vaso...
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA.
- Ah.
- Mandem logo a viatura...!
- Não.
- CAI NO PAU, COVARDE!
- Cai no quê?
- Já tá vindo, graças a Deus, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, graças ao Sagrado Coração de Jesus, meu amado São Benedito eles já tão mandando uma viat...
- Oh, ah, não...
- EU VOU TE MATAR, CARALHO. EU VOU TE MATAR, PORRA. SEGUNDA-FEIRA TODO VAI VER QUEM TU É DE VERDAD...
- Oh, gente.
- Felipe, vai embora daqui, por favor! – Foi Janaína quem gritou agora.
- Jana, mano, o vaso.
- Foda-se o vaso, dá o fora daqui, Felip...
- EU VOU TE MATAAAAAAR!
- Eles vão te prender, seu monstro filho da puta!
Certo.
Eis o clímax da situação e o momento em que os mais jovens devem ser ouvidos:
Guardei no bolso o último pedaço do vaso e corri para a porta. Júlia se desfez dos braços da irmã, mas a essa altura eu já tinha fechado a porta e corria pelos corredores e escadas abaixo enquanto a minha loirinha de mechas azuladas vinha atrás de mim com algo nas mãos que eu não tinha certeza ser uma tesoura, caco de vidro ou uma versão integral da llíada de Homero.
Quando saí do prédio correndo feito um condenado e passando pelos prédios vizinhos, contornando carros e despistando Júlia-Veloz-e-Furiosa atrás de mim, as luzes da polícia já piscavam na entrada do condomínio. Fui até eles com as mãos balançando e abracei o primeiro policial que encontrei, que instantaneamente derrubou-me no chão com uma agradável rasteira e algemou-me de imediato, jogando-me no camburão do carro.
Lá fora, Júlia gritava
- SEU ESCROTO, TODO MUNDO VAI SABER, SEU ARROMBADO DE MERDA, COVARDEZINHO DESGRAÇADO. EU TE ODEIO, SEU PORRA, TOMA NO CU, VAI SE FODER, EU TE ODEIO, SEU MERDINHA.
Meu maxilar pulsava e em algum lugar do meu rosto algo ardia, eu sentia cheiro de sangue, mas nem era isso o que de fato me incomodava.
Se até mesmo o velho e bom Cash tinha uma passagem pela polícia, então eu não importaria de passar um tempo na minha própria, particular e tão paraense Folsom Prison.
O que me incomodava mesmo era o vaso de pétalas vermelhas que até seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas rosas ao invés de pétalas vermelhas na porcelana branca envolta por cidreiras coloridas em alto relevo.
Três gerações para terminar daquele jeito.
Que triste.



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