23 de agosto de 2017

Texto de perdão a um cara que um dia pisei (ou tentei pisar)



                   Para H. A.,



Andei um pouco distante, confesso, dos narizes altivos que continuam mirando os topos celestes que mesmo asas de cera não conseguiram alcançar. Aí voltei ao ninho onde eles são criados, uma quarta-feira bonita de se respirar e de se escutar o farfalhar das poucas, tão poucas árvores que do Sol ainda nos cobrem e de aromas suaves nos enchem as narinas. Olhar para essas coisas é um bom tipo de atitude, as pequenas coisas – uma garota recentemente me ensinou isso, ensinou-me ela a olhar o céu.
Voltei ao ninho deles, aquele do qual um dia também foi meu lar e meu ninho, aquele onde um dia eu igualmente ergui o nariz. Mas meu nariz é amassado, redondo, feio, mal desenhado, não durou muito e sumariamente foi pisoteado pelos comparsas de danoso boticário. Dei adeus e sumi, mas nesta linda quarta voltei: admiro narizes bonitos, queria que meu nariz fosse daquele jeito, mas os tempos agora são outros e até gosto do modo como o meu tornou-se mais redondo, mais feio, mais proeminente, antonímia de altivo.
Certa vez, fui arrogante e pisei em um bom rapaz. A vida ensinou-me em pouco tempo a arrepender-me dos meus atos, meus exageros arrogantes, minha supremacia cognitiva. Onde quer que ele esteja hoje, com seus músculos e sua incapacidade de ser fiel às companheiras (foi o que soube, através dos lábios [os de cima e os de baixo] que ambos compartilhamos naquela época), peço que saiba: confesso erro, exagero e arrependimento. Eu fui um arrogante, narcisista prepotente, eu estava furioso por você esfregar as partes baixas em terras que não, nunca me pertenceriam nem nos mais bondosos, inocentes e apaixonados sentidos da palavra, porém fizeram-me acreditar que sim. Eu que nunca fui dado a territorialismos, vi-me engajado no desvario da loucura, envolvendo como posse aquilo que por dois, três ou quatro segundos, no máximo, permitiu se autoproclamar meu na conveniência, ou meu ante os votos secretos das noites serenas indizíveis.

Já a você, nômade e casual ser vivente, mero e perdido leitor do instante agora, saiba que somente uma coisa te pertence
(isto é um conselho):
a consciência do Eu (embora às vezes nem isso). Nem o tempo, nem o acaso, nem o destino, nem o amor ou corações alheios. Somente a tua consciência te pertence. A consciência de ser um danoso boticário, a consciência de manter o nariz elevado ou a consciência de subjugar músculos sob a mente, mesmo quando a mente maior seja tua e o músculo menor, o teu; a consciência de pisar e a consciência de se deliciar, a consciência da maldade, a consciência de perder a consciência e a consciência da vingança, pois essa, já tenha dito o poeta:

nunca seja plena!
aos poucos mata a alma
certamente envenena.

Portanto, se roubarem a única posse que a ti foi dada, cuidado:
não te perdes em lábias,
em línguas belas, 
torpes lembranças
ou alvas promessas.

Mantém a presilha fechada, o zíper intacto, segue o rumo daquilo que só a ti pertence – a consciência – e teus pecados admite, mas somente os teus, somente a parte que te cabe, não a que te pintam. Perdoa teus pés por em vãs consciências ter pisado (ou querido pisar), embora açougueiros pugilistas saibam se esquivar – que bom.
Há de se aprender com os erros,
sejam os teus, sejam dos outros.
Músculos podem ser a resposta:
eles vencem narizes.
Por isso, camarada, peço perdão, mas pela minha parte da canalhice, não da tua.




19 de agosto de 2017

o dorso



Numa esquina qualquer
No tempo exato
A vida gritou para eu sumir
Eu grifei no livro vermelho:
Não sou de choro fácil.


esses versos não são meus, eles não me pertencem, nem em tecelagem, nem em metáfora análoga. Em verdade, sou de choro fácil, os homens antes de mim sempre disseram e é uma
característica falha em homens de verdade, confirmam eles [e elas].
Por tal metáfora análoga (finalmente), eu atendo ao chamado.
Eu escuto o grito.


I wanna hold your hand
Eu deveria ter dito*


Eu escuto o grito,
não tenho mais tanta força para ignorá-lo.






18 de agosto de 2017

Esses olhos, Amanda,



Esses olhos, Amanda,
foram o primeiro detalhe que enxerguei. Eu falei sobre eles, eu disse aquilo que provavelmente mais te entoaram nos ouvidos durante a vida inteira, mas ainda assim, eu disse. Elogiei
esses olhos, Amanda,
e você, num automático e verdadeiro carinho, retribuiu, dizendo que havia beleza aqui em mim, em algum lugar que até hoje estou curioso em encontrar. Eu digo obrigado, com o mais sincero ímpeto da minha alma, porque ser notado por
esses olhos, Amanda,
pra mim é privilégio. E ter conhecido tua voz e ter desejado o pão de queijo de Minas, só o de Minas, ainda habita o topo da minha lista. É estranho escrever isto: palavras aparentemente tão aleatórias a respeito
(d)esses olhos, Amanda,
e a respeito de como admirei tuas palavras e te acompanhei muito antes e sem a menor intenção de conhecer
esses olhos, Amanda,
lá na frente, nesses estranhos e pequenos encontros que a vida nos dispõe. Então brevemente te peço a me perdoar pelas inesperadas e tão dedicadas palavras, é que por
esses olhos, Amanda,
eu juro, no fundo daquele menino mais fiel, louco e sonhador, eu até plantaria uma horta e deixaria de comer carne. Por
esses olhos, Amanda,
se um dia, só por diversão, se você bem permitisse, até passagem só de ida eu comprava para o tão simples e imenso ato de ver
esses olhos, só
esses olhos, Amanda.


16 de agosto de 2017

UM POEMA PARA AQUELES QUE QUEIMAM,




pois os deuses me banharam com
esta dádiva a dádiva da
loucura pois nas esquinas e nos
bancos e nas
praças e nas
salas e nos
quartos sussurrados e urrados de deboches
eles dizem que meu nome
é louco
eles dizem que meu nome
é louco
louco por amar e
louco por gritar e
louco por escrever e
louco por pulsar
pulsar e
pulsar num mundo onde pulsar
é proibido onde
pulsar é devotar-se ao
outro onde devotar-se e
pulsar
é
pecado
proibido
é pecado
pulsar.

Nova lei aquela a imperar
aquela a não pulsar
nova lei aquela a imperar
a supremacia do eu na ponta do
umbigo onde nenhum homem deitará
onde nenhuma mulher reinará
onde nenhuma alma sequer ousará
roubar
invadir
levar
transgredir o plano
bem bolado
e a bolha
não estourar
não roubar
não invadir
nem levar ou
transgredir o conforto
desfrutado.

Tudo o que foi construído com a
demolição
de cada tijolo
de cada pedra
de cada mármore
monumentado
na memória daquilo que se é,
mas se esconde da vista porque a
moda
é ser imune
porque a
moda
é ser cisado do fogo, porque a
moda
é ser blindado do apego e a moda é
dizer que este ato social está cravado em você
quando muito também está cravado em mim, neles e em nós,
mas alguns escolhem e alguns não querem blindar-se por
vergonha e louvam aos deuses do Egoísmo, pois alguns já nascem sabendo que
amar nunca foi sobre ser vulnerável
amar é sobre ter
coragem
amar é sobre ser louco
é sobre derrubar o
Monoteísmo do
sujo e modal
é sobre derrubar o

(santo)

Egoísmo e é sobre
admitir que unir-se não é
anular-se
é admitir que unir-se é loucura
é escrever é cantar é gritar é recitar é criar é pintar e é sofrer e é ser louco neste mundo onde
amar
é pecado
Pecado
Pecado
preguem os hereges
preguem os pecadores
cheios de pecado
pois eles têm
Fogo
ali
dentro
eles têm
Fogo, fogo, fogo
fogo ali dentro
fogo
fogo
fogo eles
queimam. 


(Felipe Santiago)





14 de agosto de 2017

ÀS DEZ E ALGUMA COISA



Eu nunca reparei o modo como a luz entra pela minha
janela
exatamente às dez e
alguma coisa da
manhã.
Fiz uma foto dos lençóis,
não há ninguém nestes
lençóis a não ser eu
mesmo,
eu queria dizer que sinto
sua
falta
acordando primeiro que eu e tomando
banho primeiro que eu e me acordando
já toda arrumada prestes a me
deixar.
Eu queria dizer que sinto
sua
falta
eu queria dizer que sinto
falta
do modo como seu cabelo não embaraçava
e sempre cheirava mesmo quando
fedia
ou mesmo quando você dizia que
fedia, embora ele nunca de fato
fedesse.
Eu sinto sua
falta e sinto
falta de nunca ter descoberto o
modo
como a luz entra pela
janela às dez e
alguma coisa da
manhã
ondulando teus
castanhos
cabelos
e clareando teus
escuros
espelhos.
Eu nunca te vi se enroscar nestes
lençóis às dez e
alguma coisa da
manhã sob a luz desse mesmo sol que eu
percebi hoje,
só hoje
então me faz um favor e vê se
volta,
só volta
porque faz falta eu
descobrir coisa
nova
contigo aqui nesses
lençóis, como o sol que entra pela
minha janela
às dez e alguma
coisa da
manhã, meu amor.

(Felipe Santiago)












7 de agosto de 2017

Beber água é importante



“Vomita mais”,
sussurrei no ouvido dela. Prendi o cabelo num rabo de cavalo improvisado e esperei-a vomitar. Jordana era relativamente boa de mira, embora tenha errado um pouco no início. A última vez que eu fizera aquilo por uma mulher, ela errara todo o imenso buraco do vaso sanitário – foi assim que descobri o quão ruim minha própria mãe poderia ser quanto à pontaria e foi assim que descobri o quão boa Jordana era nisso. Segurei o cabelo um pouquinho mais firme enquanto alisava suas costas com a palma da mão.
- Por que eu tô assim? – Ela perguntou em meio a um arroto e em meio a uma vomitada.
- Quer mesmo saber?
- O que aconteceu, porra?
- Você bebeu demais, meu amor. – Beijei-a no ombro e levantei um pouco mais o rosto para dar descarga.
Quando a água desceu por completo, Jordana pôs tudo para fora de novo.
- Três catuabas e tu ainda tá normal. – Mais um arroto e uma ânsia de vômito sem sucesso. – Como pode?
- Pois é. – Sorri e tentei não pisar no vômito espirrado no chão, aquela coisa amarela e avermelhada ao mesmo tempo com pedaços do hot-dog duvidoso que uma tiazinha gorducha e intricada de mãos duvidosas vendia ao lado do som da festa.
- O que que tu faz, porra?
E lá ia outra vez Jordana a vomitar.
Sorri com aquilo, mas não tanto, senão acabaria apanhando.
- O segredo – comecei, acariciando-a a nuca enquanto enxugava com a própria mão o suor que brotava das costas e do pescoço dela. – É que...
eu não era tão beberrão como todos achavam que eu era, muito embora Jordana e eu tivéssemos nos conhecido na minha pior e mais alcoólica fase da vida. Naqueles dias, eu bebia quatro vezes na semana e minha geladeira estava sempre abastecida. Nos primeiros meses, a coisa toda era mais glamorosa, mas depois eu conheci a Catu. Desde então, meu armário nunca pareceu verdadeiramente desprovido de uma.
Jordana chegou nessa época. A cada semana que frequentava minha minúscula casa e partilhava das manhãs com os pombos, parecia haver sempre uma gordinha daquelas na geladeira. Meu fígado naqueles meses era um motor V8 alá Mad Max e eu estive no auge. Perguntava-me, vez ou outra, se Jordana gostaria do eu-de-antigamente, aquele Felipe outrora mais estranho, ácido, menos sorridente e chegado a um punhado de ironias malditas. Perguntava-me se Jordana teria sequer olhado para mim se eu não virasse cervejas e não amasse Duelos e não me importasse em virar Tropicais. Perguntava-me se Jordana sequer me afagaria o peito se soubesse quem eu realmente era por trás daquela fase e por trás desta.
E o segredo era que apesar de tudo isso, eu não era exatamente como os novos amigos achavam que eu era e como os antigos estranhavam eu ter me tornado. Publicava um milhão de fotos com bebidas e de fato as bebia, mas não tão euforicamente quanto Jordana e todo o resto. O segredo era que quando minha cabeça começava a girar, meu rosto perdia a sensibilidade e meu sorriso ficava cada vez mais espontâneo, aberto a tudo e a qualquer coisa, então era um sinal de parar.
Certa vez, a própria Jordana havia comentado que
- Você nunca perde a consciência
e isso era verdade. Eu jamais poderia perder a melhor parte de mim, a única parte que eu me admirava em possuir e me envergonhava de ter perdido duas ou três vezes na vida – e pior de tudo: completamente sóbrio. Eu precisava ter o controle das minhas pernas, do meu centro secreto e da minha boca, eu precisava ter controle da minha estabilidade e do meu equilíbrio, eu precisava ter controle do que eu era e daquilo que eu ainda não sei o que seria caso perdesse os itens antes citado. A consciência era tudo o que este pequeno corpo possuía de melhor e de mais confiável. Por isso os porres durante estas noites insanas eram sempre vívidos na memória e nunca relegados a grandes arrependimentos, pois ainda havia, no fim de todos eles, uma chama consciente de mim, um fio condutor claro de sobrevivente consciência.
A bebida servia apenas para aliviar as lembranças e as culpas, a bebida servia apenas para anestesiar a dor nos dias em que a dor ficava deveras incontrolável, incalável e hiperativa bombardeando-me a mente e lacrimejando-me os olhos fracos de grandes vacilos. O álcool servia para brotar-me sorriso na face e ajudar-me a esquecer das angústias por algumas horas, pelo menos até a manhã seguinte, quando eu voltasse junto com a dor de cabeça latejando como um pinto virgem e minúsculo cutucando-o as costas enquanto tenta encontrar o buraco certo.
O álcool servia para os momentos de trégua, servia como um dia inteiro compactuado entre Troianos e Gregos como quando no luto a Heitor. A trégua, a pequena e efêmera trégua da consciência: porém não sua morte, não a morte daquilo que eu mais tinha de sagrado e profano em mim – a coisa mais poderosa, a mais generosa quando usada para o bem e a mais animalesca quando usada deliberadamente para o mal.
Por isso Jordana jamais me vira bêbado, louco ou descontrolado.
Exceto na derradeira noite em que mandei-a mensagem enquanto decidia se levava um punhado de pílulas garganta abaixo pela segunda vez na vida.
O único vacilo.
Palavras para outra história.
- ...Eu não bebo tudo, finjo que viro, mas na verdade eu só molho a boca, repasso a garrafa e espero todo mundo ficar bêbado em volta.
Àquela altura, Jordana havia feito um sinal de legal com a mão e caiu para trás, apoiando as costas na parede do banheiro e tentando esquivar-se da própria sujeira espalhada pelo chão.
- Seu filho da puta, tu fizeste eu beber todas aquelas catuabas sozinha?
- Eu te acompanhei.
- Porra, Felipe, vai tomar no cu – e continuou com a longa lista de xingamentos que nem eu consigo lembrar enquanto isto escrevo.
- Desculpa, meu amor. – Sentei ao seu lado e ambos contemplamos o vômito no banheiro.
- Nós nem temos nada, por que tu me chamas assim?
- Não temos?
- Tá louco? Não. Essa merda é cilada.
- Ah, é?
- É, porra.
- Tá bem, Jordana.
Eu levanto e ajudo-a a levantar em seguida. Jordana é menor que eu, mais leve e fácil de carregar, o que me dá a falsa impressão de que sou forte e que posso protegê-la de tudo e de todos, mas ela está certa: essa merda é cilada e essa é a boa e eficiente forma que ela possui como autoproteção. Uma bela e eficiente forma de proteger-se, quando eu, mesmo sóbrio, não consigo protegê-la de mim.
- Vem cá, eu não perdi a consciência, mas você já. Há um tempinho.
Aí eu tiro a roupa dela e a dou banho. É a primeira vez que eu faço isso: a primeira vez que cuido de alguém realmente bêbada, quase inconsciente e falastrona, discorrendo em meus ouvidos todos os porquês de relacionamentos serem o declínio de homens e mulheres no século XXI e o quanto seu ex foi um merda por tê-la agredido e sua ex uma sacana admirável por tê-la traído sem nunca deixar pistas concretas e sólidas para provar. Falou deles por uma hora inteira enquanto eu ensaboava o corpo e lavava os pés sujos de lama.
Atrapalhado e lento, quase escorregando com Jordana entre os braços, eu a levo até a cama, enxugo os cabelos e estendo uma toalha seca sobre o travesseiro para que deite a cabeça. Visto-a com os pijamas da Marceline que eu tanto amo e ao fim de tudo, enquanto ela diz mais uma centena de coisas que a minha cabeça já não aguenta escutar e os olhos, meio idiotas, meio crentes em algo que nunca verdadeiramente vai acontecer, insistem em marejar. 
São cinco horas da manhã, a casa está vazia, preenchida apenas por nós dois porque os pais dela estão na terra do Sol, aproveitando este mês de férias que eu jurei, em algum momento (e inutilmente), que poderia ser o melhor da vida.
Aí a campainha vermelha do Game Show japonês toca na minha cabeça, dizendo que o tempo acabou e a equipe de jogadores será penalizada com a desclassificação e um mico esquisito que apenas os orientais aplicam como ninguém.
Eu recordo agora que em algum momento da noite Jordana me pede para deitar ao seu lado, porque quer dormir comigo. Eu ainda consigo sorrir neste ponto, são poucas as mulheres que ainda desejam dormir comigo quando os últimos dias estão anunciados. Eu dei um beijo na testa dela após o pedido e respondi:
- Eu vou buscar um pouco de água. Beber água é importante, meu amor.
Ela assentiu e esqueceu o pedido que havia feito.
Foi só depois do copo d’água que Jordana caiu no sono.
Beber água é importante.
Hidratar-se sempre é.  



3 de agosto de 2017

Eu não leio tantos livros quanto você acha que leio



- esses livros são sexy, a nova garota disse.
- por que?, eu perguntei.
- o último carinha com quem eu saí só tinha enfeite do Remo no quarto e
wow, isso era uma nova vitória na vida.
Estes livros estão ao meu redor, alguns lidos por completo nos velhos tempos, outros lidos parcialmente e a maioria nem sequer tocada. Um dia foram-me amigos fiéis e ainda o são, sobretudo nas fases de apego, quando eu tenho coisas mais importantes a fazer como beijar lábios fixos, saborear gozos a quem devoto minha alma e preocupar-me com amigos especialistas em computadores. Eu não venero livros ou autores mortos, não venero velhos safados ou velhos andarilhos budistas-conservadores viciados em anfetamina. Eu não venero os parágrafos longos nem as digreções gigantescas, eu não louvo os “hey, ho, baby” nem enfio esses mesmos “babys” em cada verso copioso que não ouso escrever.
“Esses livros são sexy”, a nova garota disse e eu sei, eu concordo e assino embaixo, mas é de profunda ficção julgar que estes livros sejam minha religião quando minha religião, a vida inteira, foram apenas cabelos longos que sempre me acorrentaram pelos calcanhares, pelos pulsos ou pelo pau.
Eis minha religião,
eis minha perdição.
Dez anos preso na minha devoção por aqueles cabelos e dez anos de adeus não concretizados e brigas intensas e xingamentos e dedos na cara e vais-e-vens permeados por sento em uma pica aqui e olá para esta vagina ali e eu nunca, nunca li livro algum nesse meio tempo. Você nunca terá tempo para perder com páginas cultas e mortas quando tem algo mais obsessivo e abusivo cobrando-o a mente já tão distraída, cobrando-o sanidade, cobrando-o atenção e cobrando-o por
- por favor, olha pra mim e deixa dessa merda de livro pra lá, tu não te centras em mais nada quando lê algo ou assiste essas merdas de séries, tu não
- te centras em porra nenhuma e não escreve nada realmente importante e não toca em frente tuas próprias histórias e contos e capítulos quando tá amarrado por longos cabelos pelos
- calcanhares, pelos pulsos ou pelo pau. Tu és um
- vagabundo preguiçoso que não quer trabalhar e só fica deitado nessa cama o dia inteiro,
- escrevendo escrevendo escrevendo e
escrevendo, foi o que ela disse nas entrelinhas, com boas intenções, porém farta de esperar neste vagabundo que sempre fui um futuro idealizado naquela merda de sonho patético com cerca branca e filhos com os nomes de seus monstros favoritos da literatura brasileira e suas cantoras retardadas sem talento para o canto, mas , Diabos, quem liga hoje para talento quando você simplesmente tem um rosto bonito e levanta as bandeiras certas? Porque
- tu tens um futuro promissor e tá jogando fora no lixo não fazendo nada e eu não vou ficar com um cara que vai trabalhar no supermercado quando  pode crescer e
e se formar   
e ser um mestre
e ser um doutor
e ser um grande escritor
ou saber mexer em computadores e eu não
vou ficar com um cara sem ambição.
Ela disse e disse também que
- tu não leste nenhum desses livros nos últimos dez anos que estivemos juntos e eu não vou admitir que tu digas que eu tomo todo o teu tempo quando
na verdade, ela até não tomou por inteiro, eu é que nunca fui habilidoso em conciliar grandes acontecimentos e grandes instâncias e grandes presenças e grandes supostos milagres em meio a livros que podem ser lidos mais tarde, em meio a livros que permanecerão aqui mesmo após a morte do meu corpo e a morte do meu nome, em meio a séries que não valerão a pena serem assistidas aos fins de semana quando ela me cobra atenção integral e acha que estou em outras vaginas quando demoro a responder mas só estou
perdendo tempo 
com estas malditas séries e não
com ela, esta digníssima presença e este digníssimo milagre na minha vida, mísera vida vagabunda.
Então me dá um pouco de
(ela diz):
- atenção, me dá um pouco de atenção, seu vagabundo com falta de foco e atenção, presta atenção em mim que serei teu
(meu) Deus!
No entanto, estes livros empilhados agora finalmente podem ser lidos depois do ato da heresia e depois do expurgo,
SENHOR,
EU PEQUEI,
SENHOR,
EU FINALMENTE
FUI EXPURGADO e
posso ler estes livros e assistir a estes filmes do Woody Allen cujos protagonistas são uns cagalhões intelectuais pretensiosos e rir em euforia quando uma dessas garotas, bobas, tão bobas, diz que
- eu te acho sexy por todos esses livros
e agora a nova garota tem esse sorriso de verão e é um palíndromo perfeito tão perfeito e tem cheiro de Asteraceaes e eu olho pra ela, olho para estes olhos escuros e para estes cabelos castanhos e afirmo, na mente mesmo, que se ela ficar e me escolher, outra vez eu não vou mais ler estes livros e outra vez vou me enfiar em uma nova religião onde negarei a tudo e a todos e devotarei minha alma e meu coração àquele altar (se assim ela até desejar).
Porque sou perdido em foco e sou perdido em atenção, porque meu maior erro será sempre o da total dedicação,
“meu erro é só querer te pertencer”,
eu até diria à nova garota agora
eu até diria ao novo (meu) Deus agora,
mas Ela nem quis ficar.
(que bom)