7 de agosto de 2017

Beber água é importante



“Vomita mais”,
sussurrei no ouvido dela. Prendi o cabelo num rabo de cavalo improvisado e esperei-a vomitar. Jordana era relativamente boa de mira, embora tenha errado um pouco no início. A última vez que eu fizera aquilo por uma mulher, ela errara todo o imenso buraco do vaso sanitário – foi assim que descobri o quão ruim minha própria mãe poderia ser quanto à pontaria e foi assim que descobri o quão boa Jordana era nisso. Segurei o cabelo um pouquinho mais firme enquanto alisava suas costas com a palma da mão.
- Por que eu tô assim? – Ela perguntou em meio a um arroto e em meio a uma vomitada.
- Quer mesmo saber?
- O que aconteceu, porra?
- Você bebeu demais, meu amor. – Beijei-a no ombro e levantei um pouco mais o rosto para dar descarga.
Quando a água desceu por completo, Jordana pôs tudo para fora de novo.
- Três catuabas e tu ainda tá normal. – Mais um arroto e uma ânsia de vômito sem sucesso. – Como pode?
- Pois é. – Sorri e tentei não pisar no vômito espirrado no chão, aquela coisa amarela e avermelhada ao mesmo tempo com pedaços do hot-dog duvidoso que uma tiazinha gorducha e intricada de mãos duvidosas vendia ao lado do som da festa.
- O que que tu faz, porra?
E lá ia outra vez Jordana a vomitar.
Sorri com aquilo, mas não tanto, senão acabaria apanhando.
- O segredo – comecei, acariciando-a a nuca enquanto enxugava com a própria mão o suor que brotava das costas e do pescoço dela. – É que...
eu não era tão beberrão como todos achavam que eu era, muito embora Jordana e eu tivéssemos nos conhecido na minha pior e mais alcoólica fase da vida. Naqueles dias, eu bebia quatro vezes na semana e minha geladeira estava sempre abastecida. Nos primeiros meses, a coisa toda era mais glamorosa, mas depois eu conheci a Catu. Desde então, meu armário nunca pareceu verdadeiramente desprovido de uma.
Jordana chegou nessa época. A cada semana que frequentava minha minúscula casa e partilhava das manhãs com os pombos, parecia haver sempre uma gordinha daquelas na geladeira. Meu fígado naqueles meses era um motor V8 alá Mad Max e eu estive no auge. Perguntava-me, vez ou outra, se Jordana gostaria do eu-de-antigamente, aquele Felipe outrora mais estranho, ácido, menos sorridente e chegado a um punhado de ironias malditas. Perguntava-me se Jordana teria sequer olhado para mim se eu não virasse cervejas e não amasse Duelos e não me importasse em virar Tropicais. Perguntava-me se Jordana sequer me afagaria o peito se soubesse quem eu realmente era por trás daquela fase e por trás desta.
E o segredo era que apesar de tudo isso, eu não era exatamente como os novos amigos achavam que eu era e como os antigos estranhavam eu ter me tornado. Publicava um milhão de fotos com bebidas e de fato as bebia, mas não tão euforicamente quanto Jordana e todo o resto. O segredo era que quando minha cabeça começava a girar, meu rosto perdia a sensibilidade e meu sorriso ficava cada vez mais espontâneo, aberto a tudo e a qualquer coisa, então era um sinal de parar.
Certa vez, a própria Jordana havia comentado que
- Você nunca perde a consciência
e isso era verdade. Eu jamais poderia perder a melhor parte de mim, a única parte que eu me admirava em possuir e me envergonhava de ter perdido duas ou três vezes na vida – e pior de tudo: completamente sóbrio. Eu precisava ter o controle das minhas pernas, do meu centro secreto e da minha boca, eu precisava ter controle da minha estabilidade e do meu equilíbrio, eu precisava ter controle do que eu era e daquilo que eu ainda não sei o que seria caso perdesse os itens antes citado. A consciência era tudo o que este pequeno corpo possuía de melhor e de mais confiável. Por isso os porres durante estas noites insanas eram sempre vívidos na memória e nunca relegados a grandes arrependimentos, pois ainda havia, no fim de todos eles, uma chama consciente de mim, um fio condutor claro de sobrevivente consciência.
A bebida servia apenas para aliviar as lembranças e as culpas, a bebida servia apenas para anestesiar a dor nos dias em que a dor ficava deveras incontrolável, incalável e hiperativa bombardeando-me a mente e lacrimejando-me os olhos fracos de grandes vacilos. O álcool servia para brotar-me sorriso na face e ajudar-me a esquecer das angústias por algumas horas, pelo menos até a manhã seguinte, quando eu voltasse junto com a dor de cabeça latejando como um pinto virgem e minúsculo cutucando-o as costas enquanto tenta encontrar o buraco certo.
O álcool servia para os momentos de trégua, servia como um dia inteiro compactuado entre Troianos e Gregos como quando no luto a Heitor. A trégua, a pequena e efêmera trégua da consciência: porém não sua morte, não a morte daquilo que eu mais tinha de sagrado e profano em mim – a coisa mais poderosa, a mais generosa quando usada para o bem e a mais animalesca quando usada deliberadamente para o mal.
Por isso Jordana jamais me vira bêbado, louco ou descontrolado.
Exceto na derradeira noite em que mandei-a mensagem enquanto decidia se levava um punhado de pílulas garganta abaixo pela segunda vez na vida.
O único vacilo.
Palavras para outra história.
- ...Eu não bebo tudo, finjo que viro, mas na verdade eu só molho a boca, repasso a garrafa e espero todo mundo ficar bêbado em volta.
Àquela altura, Jordana havia feito um sinal de legal com a mão e caiu para trás, apoiando as costas na parede do banheiro e tentando esquivar-se da própria sujeira espalhada pelo chão.
- Seu filho da puta, tu fizeste eu beber todas aquelas catuabas sozinha?
- Eu te acompanhei.
- Porra, Felipe, vai tomar no cu – e continuou com a longa lista de xingamentos que nem eu consigo lembrar enquanto isto escrevo.
- Desculpa, meu amor. – Sentei ao seu lado e ambos contemplamos o vômito no banheiro.
- Nós nem temos nada, por que tu me chamas assim?
- Não temos?
- Tá louco? Não. Essa merda é cilada.
- Ah, é?
- É, porra.
- Tá bem, Jordana.
Eu levanto e ajudo-a a levantar em seguida. Jordana é menor que eu, mais leve e fácil de carregar, o que me dá a falsa impressão de que sou forte e que posso protegê-la de tudo e de todos, mas ela está certa: essa merda é cilada e essa é a boa e eficiente forma que ela possui como autoproteção. Uma bela e eficiente forma de proteger-se, quando eu, mesmo sóbrio, não consigo protegê-la de mim.
- Vem cá, eu não perdi a consciência, mas você já. Há um tempinho.
Aí eu tiro a roupa dela e a dou banho. É a primeira vez que eu faço isso: a primeira vez que cuido de alguém realmente bêbada, quase inconsciente e falastrona, discorrendo em meus ouvidos todos os porquês de relacionamentos serem o declínio de homens e mulheres no século XXI e o quanto seu ex foi um merda por tê-la agredido e sua ex uma sacana admirável por tê-la traído sem nunca deixar pistas concretas e sólidas para provar. Falou deles por uma hora inteira enquanto eu ensaboava o corpo e lavava os pés sujos de lama.
Atrapalhado e lento, quase escorregando com Jordana entre os braços, eu a levo até a cama, enxugo os cabelos e estendo uma toalha seca sobre o travesseiro para que deite a cabeça. Visto-a com os pijamas da Marceline que eu tanto amo e ao fim de tudo, enquanto ela diz mais uma centena de coisas que a minha cabeça já não aguenta escutar e os olhos, meio idiotas, meio crentes em algo que nunca verdadeiramente vai acontecer, insistem em marejar. 
São cinco horas da manhã, a casa está vazia, preenchida apenas por nós dois porque os pais dela estão na terra do Sol, aproveitando este mês de férias que eu jurei, em algum momento (e inutilmente), que poderia ser o melhor da vida.
Aí a campainha vermelha do Game Show japonês toca na minha cabeça, dizendo que o tempo acabou e a equipe de jogadores será penalizada com a desclassificação e um mico esquisito que apenas os orientais aplicam como ninguém.
Eu recordo agora que em algum momento da noite Jordana me pede para deitar ao seu lado, porque quer dormir comigo. Eu ainda consigo sorrir neste ponto, são poucas as mulheres que ainda desejam dormir comigo quando os últimos dias estão anunciados. Eu dei um beijo na testa dela após o pedido e respondi:
- Eu vou buscar um pouco de água. Beber água é importante, meu amor.
Ela assentiu e esqueceu o pedido que havia feito.
Foi só depois do copo d’água que Jordana caiu no sono.
Beber água é importante.
Hidratar-se sempre é.  



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