3 de dezembro de 2017

Carolita




Cai lá fora a chuva de Belém.
Eu a vejo pela janela escorrendo no vidro em veios transparentes, oblíquos. Porém que saibam todos: isso é um fragmento de memória, um breve lampejo de três segundos na tela do cinema, uma cena desconexa, perdida diante de olhos que ainda se adequam ao que está por vir.
Cena introdutória, misteriosa e a princípio irrelevante.
Cena fictícia, não factual.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito.
Distante, o som tão igualmente pode ser dos pingos contra o asfalto mal pintado ou das calçadas irregulares quanto tão igualmente pode ser o som de fiapos de bacon fritando em óleo vencido ao fundo na cozinha, onde pés descalços número 36 tendem a caminhar.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito de novo.
Em outro lampejo, Carolina me pergunta, curiosa:
- Como tu fazes isso?
- Como eu faço o quê?
- Todos esses contos: de onde eles brotam? – Os dedos esqueléticos, sinuosos e elegantes de Carolina bailam pelos meus cabelos, depois apertam meu crânio como se eu fosse bicho esquisito.
Ela sabe que sou um bicho esquisito.
- Brota de tudo e de nada, Carol.
- Mas como é? – Ela se aproxima cada vez mais perto, cada vez mais curiosa. A respiração está quente, um fio de suor escorrendo pela testa como o fio oblíquo da chuva a escorrer pela janela. Também está chovendo neste lampejo quando ela insiste: – Como é? Como funciona? Como tu fazes?
- É normal como qualquer outro trabalho ou como fritar um ovo.
- Como assim?
- Às vezes o ovo sai bom, às vezes você queima a frigideira.
- E a inspiração?
- O que tem ela, Carol?
Ela sorri e se aproxima um pouco mais, movendo os dedos entre meus cabelos como aquelas garrinhas que você encontra no comércio e que te massageiam o couro cabeludo e te dão arrepios e quase te dão orgasmos e te levam de mãos dadas ao seu Buda interior.
- Tu esperas a inspiração?
- Não. Tu precisas de inspiração pra fritar um ovo, Carol?
- Não, não preciso.
- Eu também não preciso de inspiração. Nem pra escrever, nem para fritar o ovo. Inspiração não existe, tu fazes sem ela ou tu morres de fome.
- Eu te vejo nessa cama há três semanas e tu não escreveste nada. Tá esperando a inspiração? – Provocou ela, debochada.
- Não, só tô morrendo de fome.
Carolina sorriu. Desses sorrisos que tornam-se lampejos eternos e poemas que você sempre repetirá, não importa o quanto se desligue de sentimentalismos e experiências próprias.
- É assim que funciona.
- Entendi.
Carolina se deu por satisfeita. Utilizou os dedos para carícias que não faziam-me parecer o animal esquisito que ambos sabíamos que eu era. Lá fora, a chuva de Belém continuou a cair e meu dei satisfeito por vê-la através da janela e por ter Carolina aqui ao lado.
Aqui termina o primeiro lampejo de Carolina: a memória transcorrida ligeira, foto borrada de movimento, alguém pulando ou correndo ou mexendo o rosto porque riu e não manteve a pose. Aqui Carolina se distancia com suas perguntas meio bobas, a risada despretensiosa, o jeitinho curioso de pensar e a ligeira capacidade de apanhar explicações complexas sobre fluxos de consciência ou movimentação quântica de átomos.
Agora, no entanto, Carolina ficou para trás.
Agora, no entanto, Carolina ficou um tanto quanto distante, como também ficaram distantes a chuva de Belém e a janela de vidro com o veio de água a escorrer, oblíquo. O suor de Carolina também ficou para trás, aquele suor sorrateiro descendo da testa que sempre fazia germinar tais perguntas curiosas.
Cai lá fora a chuva de Belém, ouso repetir novamente.
Embora o lampejo agora seja outro, eu continuava ainda sem escrever há semanas. Carolina outra vez pergunta:
- E quando as palavras não saem e precisam sair, como tu fazes?
“Boa pergunta, Carolita”, sussurro mentalmente. Na janela de vidro não há veios, na página em branco não há letras, não há vocábulos, não há estrofes simples, não há sonetos vagabundos com rimas previsíveis, não há prosa poética, não há prosa, não há linha, não há tecidos, não há dignas tecelagens.
“Boa pergunta, Carolita”, sussurro mentalmente, e então levanto, sento na cadeira diante do computador e abro a página em branco. Acaricio os teclados como acariciaria a bochecha de Carolina depois da briga infernal que quebrou metade da nossa estante e os meus discos do Bob Dylan.
Respondo a ela:
- Hemingway disse que quando sentia dificuldades, o truque mais simples que possuía na manga era escrever a frase mais sincera que conhecia. Ele escrevia a frase mais sincera e então acho que soltava a fera criativa que havia lá dentro.
- É esse truque que tu usas?
- Mais ou menos. Às vezes, escrevo a frase mais sincera. Às vezes, escrevo a frase mais simples.
- Escreve uma agora. – Desafiou ela.
Pensei por um instante antes de começar a digitar. Ela prostrou-se sobre os meus ombros e leu em voz alta:
- “Cai lá fora a chuva de Belém”.
Ela olhou para a janela seca e depois de volta para mim.
Carolina apenas sorriu.
E na penúltima vez, repito: cai lá fora a chuva de Belém.
O toró inunda a cidade e transborda os canais baixos, os raios iluminam os céus e estremecem o solo paraense onde as raízes cada vez mais fracas e centenárias das árvores balançam e fazem cair mangas, galhos, fios e postes elétricos. Na altura deste penúltimo lampejo, o solo estremece com trovões.
Algumas coisas parecem ter morrido.
Carolina sabe disso, os dedos dela não estão curiosos entre meus cabelos, muito menos as mãos prostradas sobre meus ombros e lendo o que escrevo, pois não estou escrevendo. Tudo o que faço é olhar pela janela, a mesma chuva sobre a mesma cidade, o mesmo veio oblíquo correndo diante dos meus olhos.
Carolina está sentada na ponta da cama, cheia de perguntas e cheia de outras reticências também. Ela finalmente pergunta:
- Me diz uma coisa?
- Claro.
- Quando escreves e sentes que não ficou do jeito que querias, tu jogas fora?
- Não.
- Escreves tudo de novo?
- Não.
- O que tu fazes?
- Eu volto ao texto. Leio. Releio. Repasso. Leio em voz alta. Encontro às vezes rima barata, encontro quase sempre rima necessária. Aparo as pontas, quebro parágrafo, excluo frase solta, desnecessária. Enxugo o que anda molhado demais, lubrifico o que precisa melhor se mover. Quebro, excluo, mato e regenero. Leio. Releio. Repasso. Leio em voz alta, eloquente. Faço de mim outro, faço de mim não eu, mas o outro, o outro universal, o outro sentado do outro lado do mundo, o outro que nunca conhecerei e que nunca saberei que por aqui passou. O leitor, sabe?
- E aí? O texto tá pronto?
- E aí o texto tá melhor.
- E aí tu resolveste o problema dele?
- Sim.
- E quando ele tá bom?
- O que que tem?
- Tu deixas ele bom do jeito que tá?
- Eu volto e ajeito. Corrijo. Aparo. Melhoro o que pode ficar melhor.
- Melhora o que pode ficar melhor?
- Sim.
- Se daqui a 10 anos tu voltares ao texto, ainda podes mexer nele?
- Claro.
- E ainda podes melhorá-lo?
- Posso.
- Então o segredo é só voltar e voltar e voltar pra melhorar? Pra corrigir?
- Sim.
- Oh.
Ela deixou o “oh” escapar por entre os lábios de maneira despretensiosa, os olhos castanhos perdidos entre a roupa suja no canto do quarto. Ela estava nua na ponta da cama, costas lisas, imperfeitamente perfeitas, a respiração leve e controlada, porém o sutil veneno na voz, a sonsa indireta que fingi não entender.
Não estávamos falando sobre textos, é claro.
Ou estávamos?
Então respiro fundo e respondo sob a máscara da ingenuidade, jogando o jogo indireto dela:
- Mas as vezes você não volta, não é certo voltar e lapidar sempre o texto.
- Por que não?
- Porque ele perde a identidade. Às vezes é preciso parar.
- Ah, é? – Perguntou com o mesmo tom de novo.
- É. – Respondi com o mesmo tom de novo.
Ela assentiu e coçou a cabeça, sonolenta.
Carolina vestiu a calcinha e a camiseta, igualmente cansada de tentar o que já não funcionava, o que já não fluía, o que já não lubrificava, o que já não suspirava e o que já não se consumia e não consumava. Algumas coisas na vida acabam por não ter solução e não importa o quanto você volte,
volte e
volte e
volte
e
volte, até com lapidação elas não se lapidam,
não melhoram,
simplesmente terminam.
Na manhã seguinte, Carolina me deu um beijo longo demais na bochecha e me apertou os braços com as unhas pintadas de laranja. Atravessada ao corpo, a alça da bolsa pesada, inchada de coisas.
- Não esquece de levar o resto das minhas coisas na segunda, tá?
- Tá.
Mais um beijo e Carolina se foi.
Fim do penúltimo lampejo.
É Abril e agora chove lá fora.
Cai lá fora a chuva de Belém, repito novamente, este é o último lampejo de Carolina.
Ela entra pela primeira vez em meu quarto, os cabelos molhados e os pés descalços, a toalha que dei a ela estendida nos ombros como um poncho de crochê. Carolina mora do outro lado da cidade, Belém já não oferece tanto transporte público às duas da manhã e ela não pode voltar,
acaba me pedindo para dormir aqui.
Mas já sabíamos que pararíamos aqui.
A noite inteira nos trouxe até aqui.
- Olha – Carolina, meio bêbada, abre um sorriso e puxa um livro da estante – Eu tinha uma ex que estudava Letras e ela enchia a boca pra dizer que tava lendo Faulkner, que Faulkner isso, que Faulkner aquilo.
- E aí?
- Aí eu fui ler.
- E aí?
- Terminei O som e a fúria primeiro que ela.
- Claro que terminou.
- Acho que ela abandonou o livro.
- Estudantes de Letras e seus egos inflados. – Bocejei, igualmente bêbado. Sentei na cama e sorri. – Eu nunca li Faulkner.
- Então por que tens ele aqui?
- Tava na promoção e eu precisava de referência pra um capítulo.
- Conseguiste a referência?
- Uhum.
- Terminaste o capítulo?
- Sim.
- E o livro?
- Um dia eu leio, Carolita. – Dei de ombros, zombeteiro. – Sem pressa.
Ela riu de novo e fez uma careta estranha. Era a primeira vez que eu a chamava de Carolita.
- Ninguém nunca me chamou assim. – Ela pôs o livro de volta na estante e veio até mim. Prostrou-se sobre meus ombros. – Como escritor tu és uma farsa.
- Inteiramente. – Concordei com ela.
Então me beijou.
Cai lá fora a chuva (torrencial) de Belém e na janela um veio de água se forma.
Oblíquo.
Alguns lampejos permanecem mais que outros,
alguns lampejos nunca se vão.