6 de fevereiro de 2018

Ronronar n.1



Hoje te flagrei ronronando em minhas mãos, durante um abraço. E confesso que nem sempre mereço os amores que recebo, e confesso que a maior parte do tempo não sou merecedor das coisas boas, porém certa vez, assistindo a Meu Gato Endiabrado (pois sou pai de primeira viagem e queria aprender a lidar contigo), ouvi uma frase, dessas frases aleatórias que seu cérebro grava sem propósitos grandiosos, do mesmo jeito que grava um sorriso ou fotografa um tom de voz, uma risada. No programa, ao lidar com um desses bichanos agressivos que nada entendem de si mesmos e o porquê de repelirem aproximações e carinhos a agatanhadas, Jackson Galaxy o convencia a vir aos seus braços e dizia que estes animais estão sempre dispostos a perdoar e a amar, ele dizia que isso os diferenciava do resto, que isso os diferenciava de nós.
Então te coloco no chão.
Você começa desesperadamente a encher o buchinho com o croc-croc-croc da ração. Ainda está ronronando. Daqui a pouco, frouxa como é, cagará um barro do tamanho do de gente.
Então se lamberá, bagunçará a areia e sujará o chão. Vai me olhar com olhos esbugalhados, cínicos e sonsos de quem nada fez, e aí vai dormir.
A merda fica pra mim.
E quem sabe,
talvez,
na próxima vez,
só talvez,
outro ronronar também.


1 de fevereiro de 2018

[Parte III] e por fim eu nem sei





Um texto sobre uma foto e uma foto sobre um frame, e aí
Jordana se senta:
as mãos esparramadas para trás, as pernas sobre o banco, dobradas e cruzadas. Acima, milhares de bandeirinhas dançam com o vento a cruzar cada uma delas, farfalhando como folhas antes da tempestade e produzindo um som que àquela hora inicial da noite soa confortável aos nossos ouvidos. Suas infinitas cores sobre nós quase formam uma estranho arco-íris noturno, um arco-íris a louvar os santos festeiros, doceiros e comilões do mês de junho.
Minhas mãos estão cansadas, fruto de uma tarde inteira carregando cadeiras & mesas & panelas & gelo & isopor & esticando cordinhas & amarrando bandeirinhas coloridas & subindo em escadas & pregando chapéus de caipiras nas paredes & nos cantos mais improváveis do espaço do condomínio.
Sento no chão.
Jordana está sorrindo.
– Tá sentindo o cheiro da comida? – Pergunta ela, soltando os cabelos que caem sobre os ombros e escondem, por um segundo, as manchinhas que repousam ali.
– Tô sim.
Ela fecha os olhos e inclina a cabeça levemente para trás, num ângulo quase imperceptível, quase nada visível e quase pouco a demonstrar o prazer corporal que o aroma da culinária junina causa no corpo.
– É hoje que eu vou encher a porra do bucho, Fê.
“Encher o bucho” era a  frase dela.

(encher o bucho™)

– Eu também vou – respondo, igualmente empolgado.
– Vou encher até o buraco do cu.
Então gargalhou.
Jordana e sua boca suja e sua gargalhada descontrolada que às vezes, de tão descontrolada, a fazia se desequilibrar na vibração, falhando a voz e travando a garganta. Ela então tossia e se descontrolava ainda mais, não sabendo se gargalhava da própria piada ou se gargalhava das próprias falhas.
Começo a rir junto, porém não da mesma maneira descontrolada. Estou mais contido, porque agora, enquanto o resto do pessoal arruma as cadeiras e checa os últimos arranjos no palco para a festinha anual do condomínio dos padrinhos dela, Jordana vai lentamente gargalhando mais devagar até transformar aquele escândalo admirável numa sutil risadinha de felicidade.
Não. Não uma risada, não, mas certamente
um sorriso.
Jordana está sorrindo, com pernas cruzadas e olhar perdido na direção entre a piscina de pescaria e as senhoras carregando panelas de mingau de milho & cuscuz & alegria.
Sem notar a minha presença tão reles ali, sentado no chão, mãos cruzadas sobre os joelhos ou sem notar o modo como o cabelo gradativamente longo parece incólume à presença do vento ou sem notar qualquer interferência externa ou interna que sequer ouse atrapalhá-la ou afastá-la do sorriso leve e sutil que preenche o rosto, Jordana, alheia ao mundo, sorri para preencher um acontecimento solidamente estabelecido na minha memória. No futuro, mesmo sob a possibilidade do Alzheimer mais cruel, neste frame congelado, Jordana nunca será esquecida; no futuro, sob a possibilidade do Alzheimer implacável, é para este frame que muito provavelmente retornarei.
Retiro o celular do bolso. Sem que perceba, a fotografo – mas ela não sabe, pois Jordana odeia fotografias, pois Jordana odeia que o façam sem sua permissão e Jordana odeia que seus registros sejam guardados em outro lugar que não seja na memória.
Mas, Jordana, sussurro naquele momento como se ela pudesse me escutar, eu preciso provar a mim mesmo que essa merda foi real. Então sorrio (não tão belamente quanto ela) e discretamente aperto a tela do celular, capturando, por fim, o frame.
Mas, Jordana, preciso te ter uma só vez no futuro, nem que seja em uma foto.
E tive.
Guardo o celular após fingir que olhei as horas.
Ela volta ao mundo real e começa a falar coisa alguma que eu, nervoso demais por ser descoberto, quase não presto atenção. Jordana está certamente tagarelando algo sobre comida, sobre estar feliz por ajudarmos a montar a festa ou sobre ser boa em me obrigar a fazer coisas que nunca fiz ou que tenho preguiça de fazer,
como montar festas juninas no condomínio.
Ela continuou a falar, a falar, a falar e a falar – eu nunca quis que parasse.
Jordana nunca soube desta foto.





EIS O FIM.