Nota do autor: apesar da imagem, este conto não aborda, não faz apologia e nem sequer toca no tema de suicídio.
Fiquem tranquilos.
Here comes the priest and the
prophet
A cold, steel floor on my feet
I hope that you've come down to see
me
If a dyin' boy's wish of release
Here stands the man dressed in
black now
And he says with a trembling sigh,
"do you have any words or
requests now?
(The Gallows – The Builders and the
Butchers)
Foi o vigário Antunes quem mandou o povo fazer silêncio
enquanto eu subia os degraus de madeira no centro da praça. Respeitado, porém
raquítico e assíduo fumante de tabaco, o homem de Deus ergueu as mãos para o
povo que berrava e apontava-me dedos furiosos, duros como os de delatores,
retos como os dos crentes e mentirosos. Os guardas que estavam em volta
levantaram as armas e ameaçaram as pessoas umas sobre as outras, caso não
obedecessem. Imediatamente, acataram as ordens.
Posicionaram-me ele, o Prefeito e o rapaz alfaiate
encostado na alavanca. Ele faria o serviço, pois o Carrasco Oficial estava de
cama há uma semana com disenteria braba. Como todos o conheciam muito bem por
seus serviços com a agulha, e a cidade era pequena demais, tinha ele o capuz
preto levantando e palitava os dentes com as unhas sujas e grandes, enquanto
comia uma tangerina e exalava o perfume cítrico pela praça.
– Valeu, Vigário. – Agradeci de imediato.
Entretanto o silêncio do povo não impediu que um tomate
amassado parasse na minha nuca ou uma banana nanica na minha cara.
O velho de Deus, que não simpatizava muito com meu rosto
desde o conto d’A Goteira da Carla,
resvalou o olhar para o meio da multidão. O Prefeito então tomou o centro da
armação de madeira e disse:
– Estamos aqui hoje para oficializar o enforcamento de...
– Peraí, peraí – interrompi, estarrecido. – Não vai ter
julgamento?
- E para quê isso, meu filho? – Indagou o gorducho.
– Eu mereço defesa, seu Prefeito.
– Deus já te julgou, criança – interpôs o vigário.
– Mentira! – Berrei, desesperado. – Ele só julga no final
do livro!
– Final? – Alguém no meio do público perguntou. Era a voz
de uma criança. – Que final?
– Apocalipse, parceiro – respondi, apelando à curiosidade
do público. – Todas as almas só serão julgadas no dia do juízo. Hoje não é o
dia do juízo. Apressar o juízo não é juízo, é desjuízo.
– Não me importa. Hoje é o dia do seu – sussurrou o Prefeito
com a eloquência de sua voz política.
– Peraí, peraí... – interrompi novamente. – Isso daí,
galera? Isso daí tá errado, não pode ser desse jeito, não.
O povo começou a gritar e o Vigário pediu ordem.
– Ora, que porra é essa?
– Olha o linguajar! – Advertiu o Vigário.
- Que benção de Cristo é essa? – Corrigi.
O povo começou a rir e eu ri de volta.
– Vocês não leram o livro sagrado?
– A Bíblia? Não blasfemais, garoto! – O Vigário saltou
sobre mim. O indicador duro como se quisesse me dedar.
– Não, homem. A Constituição!
O Prefeito engoliu em seco, nervoso, e gritou ao
Carrasco-Alfaiate:
– Prepare-se!
O povo começou a gritar de novo. Entre ele, os rostos
apreensivos de minha mãe e de minha pequena irmã estavam em lágrimas. A
pequenina, atracada nas ancas maternas.
– Pagarás pelos teus crimes, fedelho! – O Prefeito sorriu e
acenou para o povo, que respondeu com palmas e gritos de euforia. Parecia até
gol do Brasil com menino Ney e tudo. – Teu julgamento já esperou demais.
– Mas o senhor não é o Senhor, sr. Prefeito!! – Esfolei a
garganta. – Não pode decidir uma coisa dessas – e ao povo, pisquei: – Tá na
Constituição.
Todos riram.
O Vigário gritou:
– Blasfêmia!!
– Nem o senhor é o Senhor, senhor Vigário!
Mais gritos.
– Deves pagar pelos teus crimes, criança! – O Vigário abriu
a Bíblia Sagrada. – Açoitas Deus, profanaste com tuas palavras a pobre Santinha
– outra menção ao conto d’A Goteira da
Carla, o que não o deixava em paz. – E, principalmente: açoitaste uma moça
com tuas palavras desvairadas impressas na folha. E isso, ah, isso é
imperdoável.
Com vigor lascivo e potes nas mãos, as mulheres na plateia
o aplaudiram.
- É mentira! – Berrei de novo, desesperado. – É mentira,
vocês leram errado!
– Eu li certo! – Assobiou o alfaiate com os dentes sujos e
com o hálito de tangerina. Ele limpou as mãos nas calças e abaixou o pano preto
sobre o rosto, preparado para o serviço.
– Peraí, peraí... – novamente interrompi o alvoroço
popular. – Isso daí que vocês estão fazendo? Isso é injusto!
– Injustiça é o que fizeste para com a honra da moça, maldito
– o Prefeito pançudo quase saltou sobre mim. – Escreveste coisas de escárnio,
veja só – ele retirou dos bolsos do paletó um amontoado de papéis dobrados,
folhas A4 impressas em Arial 12, espaçamento 1,5 linhas. – Eis o teu crime:
todas estas palavras, palavras agressivas de escárnio, de mal dizer, de lamentações,
ironias...