Reencontrei Antonella na praia.
Era de tarde e eu estava na areia com parte do pessoal. O
resto dos meninos mergulhava na água. Ao meu lado esquerdo a Julinha e o Andrei,
abraçados; ao meu lado direito, tio Carlinho. A conversa andava lá pela novela
das sete quando ela passou pela minha
frente: shorts jeans, biquíni amarelo e mochila nas costas. Sempre com a
mochila nas costas.
Na hora, uma viu a outra: um adorável par castanho-sombrio
olhando no meu par castanho-normal. Caminhava em grupo, mas com o silêncio com
que pisava na areia, sem seu costumeiro tagarelar frenético, era quase um
elemento externo entre eles. A natureza canalhamente sociável com que costumava
dançar e bailar por entre os diálogos ou como domava com rédeas firmes os
assuntos em rodinhas sociais nem parecia estar ali.
Por isso, quando os olhos me enxergaram, um sorriso se
abriu e correu. As Havaianas alaranjadas penduradas na lateral da mochila.
Apenas dois rapazes olharam para trás quando se afastou, porém ninguém parou
por causa dela. Continuaram andando.
– Olha sóóó! – Veio até mim com os braços abertos, mais
rápida do que minha atrasada reação de levantar. – Olha só quem eu encontrei
aqui.
– Olha só – abracei-a de volta com um aperto desengonçado a
princípio, mas igualmente urgente em seguida. – Eu que o diga: quais as chances
de te encontrar aqui?
– Vim com uma galera pra passar o fim de semana, mas o
pessoal com que eu tava foi embora hoje. Daí eu ainda tô na casa que os primos
de uma amiga alugaram... – ela apontou para além da pequena inclinação que
levava às ruas asfaltadas e, depois, provavelmente, onde a casa ficaria. – Mas acabei
nem indo, mana.
– Por quê?
Antonella levou tempo demais para responder, parecia mais
com uma espécie de hesitação autocontrolada. Foi percebendo que estava perto
demais de nossa conversa que tio Carlinho levantou e ofereceu “seu” lugar na
areia. Ao se afastar, perdeu-se em outros assuntos com Andrei e Julinha.
Uma vez mais a garota hesitou. Só então olhou na direção do
grupo de antes, que agora estava distante, subindo uma das ruas e quase sumindo
de vista. Ela então retirou a mochila das costas e sentou ao meu lado. Trazia
consigo um leve aroma de álcool e de cigarro, talvez fosse vinho.
– Por que não foste embora?
– Ah, sei lá – balançou os ombros, levemente sem graça. O
nariz e as bochechas avermelhadas não me deixaram concluir se a cor era por causa
do sol ou por causa do embaraço. – A verdade é que eu tava bêbada demais pra...
sabe... pra levantar. Aí perdi o bonde, literalmente.
– Puta merda, Tomtom.
– Quê? – Ela perguntou.
– O quê?
– O que tu disseste?
– “Puta merda”...
– Não, o...
– O quê?
Olhou-me com uma cara engraçada. Não estava de todo bêbada,
pendia mais para a sobriedade, porque ainda parecia serena e sutilmente séria e
sisuda. Tudo o que fez foi balançar a cabeça, sussurrando um “nada, nada” e prosseguiu:
– E agora vou ter que ficar com o pessoal, os primos da
menina.
– Mas tu não perdeste trabalho, essas coisas?
– Perdi, sim.
– E agora?
– Perdi, mas já tava perdido, sabe? – Ela riu, brincalhona.
– Eu não tô trabalhando, more. Já faz um tempinho.
– Achei estivesse...
– Não, pedi demissão – outra vez o pequeno balançar de
ombros. – Mas eu me arranjo, tá tudo bem.
– Tu tens grana?
– Tenho um saco de leite, um pote de margarina e uma
sacolinha de miojo.
– Sério?
Acho que Antonella viu algo no meu súbito espanto, porque
começou a sorrir de um jeito engraçado. Depois, trocou de assunto:
– E tu? O que estás fazendo aqui?
– Todas as férias nós passamos aqui em Pontal, meus tios
têm uma casa. Por isso estranhei em te ver, juro que não esperava.
Pontal dos Guarás era um pedacinho de paraíso meio
esquecido. Um dia, servira de parada para frotas portuguesas e até igreja
icônica os jesuítas fizeram no farol da pequena vila, mas o tempo praticamente
engolira a tudo. Por ser uma região estuarina, quase beijando uma parte do
oceano, havia dias em que você entrava na água e o sal na ponta da língua até
podia ser notado. Em outros, apenas o aroma salobre nas narinas e na boca.
– Juro que eu também não – concluiu, surpresa.
Um detalhe passado sobre Antonella, vulgo detalhe manjado: a casca. Tomtom era
cascuda, um muro por fora, às vezes impenetrável, não muito adepta ao orgulho,
mas ao desconcerto extremo. Às vezes, optava por calar-se ao invés de pedir
ajuda, com uma discrição treinada desde a infância para jamais invadir o espaço
alheio. Se não fossem os ombros vermelhíssimos, afirmaria com total certeza de
que era desconcerto aquilo a dominá-la quando perguntei:
– Se quiseres ficar mais um tempo em Pontal, podes ficar lá
com a gente.
– Não precisa, meu
amor.
Meu amor, ela disse. E foi como um aparelho de som ligado na
madrugada, ao longe, tocando uma lista de flashes nostálgicos dos anos 80,
quando seu avô sentava na varanda e punha as mesmas ou suas próprias músicas para
tocar, talvez com uma latinha nas mãos, talvez com aquele suco de caju
Palmeiron com três pedras de gelo. E você está parada no umbral da porta,
observa o velho magricela bebericar lentamente, as músicas tocando na rádio ou
à distância na vizinhança e a luz apagada na varanda.
As músicas de vô tinham gosto de nostalgia de uma época
muito, muito melhor. E o “meu amor”
de Tomtom também – de uma época absurdamente melhor ainda.
– Claro que precisa – apressei o tom, com as babas de jumenta
escorrendo da boca. – Tem lugar lá, tem colchão e armador de rede. Tu podes
ficar mais um tempinho.
– Não, não, não...
– Ah, vai. Só uns dias, sei que tu queres. Além do mais, tu
tens uma porrada de coisas pra me
contar. Todas as viagens, todos os trabalhos.
– Desempregada e falida, assim? Trabalhos onde?
– Não tava falando desses trabalhos.
– Parei de pintar vasinhos.
– E tuas plantinhas?
– Todas mortas – e suspirou. – Viraram adubo.
Até as piadas permaneciam com a mesma sonoridade
nostálgica.
– Tá vendo? Disso eu não sabia – encorajei-a. Ou insisti. –
Vai lá pra contar qualquer coisa, Antonella. Pontal dos Guarás vai adorar que
tu fiques mais alguns dias.
– Só Pontal?
– Eu te garanto que não.
Ela sorriu com a resposta, mas frustrou qualquer tentativa
de minha parte depois disso, porque foi a única reação visível por minutos
inteiros. Ainda permanecia em silêncio quando os meninos voltaram, jogando de
um lado ao outro uma bola surrada de vôlei que nunca mantinha-se no ar – estava
sempre caindo e rolando pela areia molhada de maré seca.
Assim que sentiram o faro, as reações da espécie masculina foram
instantâneas: um deles aventurou-se a chegar mais perto, deu uma checadinha básica no produto, mas acho
que imediatamente afastou-se quando Tomtom forçou a voz rouca e mandou um “e aí, brother?”. O abutre de verão
agarrou-se na bola e voltou aos braços dos outros meninos, que o receberam com
vaias e tapões na nuca.
Ela também riu, mas se você olhasse atentamente para
Antonella naquele ângulo amarelado de pôr do sol com a lua desde manhã cedo
pendurada no céu, veria que, minimamente (se você realmente olhasse bem), os
dentes mordiam o lábio inferior, tão fino quanto um rastro de dedo indicador deixado
sobre a pele.
E se você conhecesse Tomtom minimamente como eu bem
conhecia, saberia o porquê estiquei os braços pra trás e deixei o corpo
descansar, tranquila e confortável; saberia o porquê de nenhuma de nós não
pronunciar coisa alguma enquanto o Sol mergulhava atrás de nós; saberia que
pedidos agora já estavam respondidos e que minúsculas respostas foram dadas.
Logo o céu escureceu e algumas poucas estrelas começaram a
piscar no céu azul-rosado das seis e meia da tarde. Antonella levantou-se junto
comigo e caminhou ao meu lado quando todos subimos a rua.
Tudo o que me perguntou foi:
– Vai ficar tudo bem pros
seus tios?
– Vai, sim – respondi.
E Pontal dos Guarás agradeceu pelas visitas que ficavam.