Sabe, um dos grandes “problemas” com os
interiores é a quantidade de mato em volta. Especialmente no meu caso, e isso
por uma razão muito simples: o matagal fechado é um lugar incerto.
Você senta no fundo do quintal e olha para
aquele mar denso e verde. Durante a madrugada, quando dá uma volta na cozinha
para beber um copo d’água e inevitavelmente olha para o mato, começa a imaginar
um bando de situações esquisitas, das mais reais às mais absurdas possíveis. Só
que... presta atenção... a questão interessante é que esse problema do mato é
como a alegoria do abismo, sabe? Você olha e ele olha de volta.
Então você senta na mesa de refeições. Dali, dá
para enxergar o quintal e o mato todo que toma os fundos do terreno.
Especialmente se você mora no Pará. Certo. Você permanece sentado por minutos a
fio e, por causa de sua profissão e de sua arte (a arte de criar um bando de
histórias esquisitas, profundas, dramáticas, sangrentas ou sarcásticas), os
pensamentos o assaltam: você imagina criaturas da mata te observando,
sacis-pererês, curupiras, matintas-pereras, o Cramunhão em carne e osso, a
primeira namorada (ou namorado) ou sua analista. É seu trabalho (o meu, no
caso) imaginar estórias e besteiras. E então imagino. Sentado, aqui, na cozinha
de minha casa de veraneio no meio do interior. Uma centena de criaturas
bizarras caminhando no escuro, observando, espreitando, aguardando o momento de
ataque. Ou, mais particularmente, uma tropa de zumbis caminhando, caminhando,
caminhando até você (até mim, claro).
Ah, um detalhe: este conto é sobre zumbis (é conto mesmo? Nem sei).
Entretanto, quanto ao espaço, interiores são
regiões igualmente seguras, pois são distantes dos centros urbanos. Se você
soube escolher qual interior se refugiar, então se deu bem. Se você não possui
uma casa cercada por muros, mas por cercas ou por gramados abertos como as
antas dos yankees, então você não se deu muito bem. Mas já sabemos disso.
Já sabemos, certo?
Todo esse lenga-lenga narrativo para finalmente
dizer que a primeira vez que planejei escrever este texto, foi no distante ano
de 2015. A história era a seguinte:
Um estudante caminha com alguns colegas pelos
corredores da Universidade Federal do Pará. Talvez ele seja de Humanas, não
muito esportivo, porém leve e rápido como um Impala. Os colegas dividem-se
entre meninas e meninos. É de noite e eles precisam atravessar a ponte em
direção ao Campus Profissional, pois estão saindo da aula e seguem para o
terminal de ônibus. No meio da ponte, sob a iluminação naturalmente inexistente
(à época), dois rapazes cambaleantes vêm em sua direção. Vestem camisetas pólo
(um deles, uma camiseta listrada de branco e azul celeste), braços malhados,
estufados, passíveis de explodirem diante de uma espetadinha de palito de
dente. Talvez possuam tatuagens tribais. Ou faixas, listras impressas na pele.
Ou tigres. O JESUS É MEU PASTOR.
Naquele ano, todos estes elementos descritivos precisavam ser utilizados de maneira
irônica, cômica e debochada (não que tenham perdido o teor e o sentido cômico,
em tese ou essência). Então os dois rapazes se aproximam: os sapatênis
arrastando-se debilmente pela estrutura de ferro. Os relógios brilhantes e
enormes brilhando no escuro. Os óculos de grau fininhos nos rostos de expressões
muito fortes ou muito delicadas. Ah, sobrancelhas milimetricamente tiradas.
Finalmente, os dois rapazes são iluminados por
um indistinto ponto de iluminação e o grupo de estudantes é atacado. Os
brutamontes são lentos, com olhos azulados e branquelos, embaçados, gosmentos.
Rasgos nas bochechas, dentes extremamente amarelados e gengivas escuras,
podres, fedorentas como as dos horrendos piratas dos épicos infantis. Eles
esticam os braços, agarram alguns jovens, talvez até segurem e abocanhem a
perna da menina da qual nosso herói possui interesse amoroso. Mas ela morre
(não que também faça diferença agora). Os poucos sobreviventes do ataque
correm, incluindo ele. Os dois agressores monstruosos erguem os olhos,
momentaneamente atraídos pela fuga. Emitem um balbuciar esquisito – um som que
repetem com frequência desde que surgiram na escuridão da noite.
Nosso herói corre, assustado, desorientado.
Quando olha em volta, percebe que há mais daquelas criaturas,
outrora-pessoas-normais... talvez. Com
braços esticados, agressivos, rangendo os dentes, peles pustulentas e arrastar
lento e retardado de pés, eles murmuram e balbuciam com a língua sem muita
coordenação, as gargantas arranhando e o sangue manchando suas bocas.
Aterrorizado, sem crer na situação, nosso herói
compreende o que dizem. Ele identifica o conjunto de sons que emitem e aquilo
que significa.
Três sons e três letras.
Aproximando-se, cercando as vítimas, os monstros
retardados repetem:
– Top... Top...
E os que se aproximam, atraídos pelo cheiro da carne
e dos cérebros, também dizem:
– Top...
– Top...
E os mais avançados, com menos músculos e até
com camisetas diferentes, porém muito provavelmente mordidos e contaminados
pelos primeiros, ousam gesticular sons mais complexos:
– Topzz... topzeirr...
– Topzeirrr... rrrr...
to...
– Topzeirrrr... aaaa...
Quando o restante de seus colegas é atacado, o
herói enxerga uma brecha entre os
monstros e corre através da escuridão e da noite, livrando-se do ataque e
mergulhando num futuro incerto.
Bom, eu nunca escrevi esse conto. Esqueci por
três longos anos.
Pelo menos até o momento. Agora, absorto em
minha cozinha de casa cercada por altos e fortes muros, rodeado por mato no
interior, escrevo isto na máquina de escrever. O tec-tec-tec ecoando na madrugada
e no quintal escuro. Tenho uma xícara de chocolate quente nas mãos (estamos
economizando café desde que nossos estoques diminuíram, há cerca de sete
meses).
As criaturas espalharam-se pelo mundo. Às vezes,
durante os pesadelos, vejo-me balbuciando os sons... as palavras... que agora
multiplicaram-se, estão variando, evoluindo, talvez em função de alguma lei
evolutiva jamais imaginada por Darwin. Eles dizem coisas novas.
Balbuciam.
Sussurram.
Debilmente, confusos, perdidos, distinguíveis.
Coisas inimagináveis, porém dizíveis.
Pronunciam:
– Top...
top... top, top…
E também suas outras formas com mais frequência:
– Topster... toppzz...
topzzzão...
– zeeeira... top...
Outro dia, em minhas caminhadas sorrateiras,
encontrei uma espécie nova. Aparentemente mais agressiva, mais ligeira, afetada
talvez por uma variação regional ou temporal do mesmo vírus. Quase atacado,
correndo como o herói daquele conto, consegui escapar.
Atrás de mim, elas repetiam:
– Arrrrr... arrrr... arrob... b...
– Arrob...
– A...
– ...rroba... aaaa...
Consegui voltar ao meu território de
salvaguarda, mas, sinceramente, não sei por quantos anos estes muros aguentarão
a evolução do vírus maldito.
Talvez, se eu houvesse escrito o conto na época
e levasse minhas palavras às autoridades, quem sabe nossas chances fossem
melhores?
Quem sabe?