20 de agosto de 2018

Tiro





Quando falas de mim
tua língua me faz crer
tão certamente assim
que sou um monstro.

Agora, frenético,
persigo seres impuros.
Vidrado e louco caço
estes animais noturnos.

Em minhas mãos,
um rifle apontado.
Em meus punhos vãos
o destino engatilhado:

Diante da fera,
dobro o dedo:
BANG!
E um tiro no espelho.


(Felipe Santiago)

8 de agosto de 2018

Apocalypse TOP






Sabe, um dos grandes “problemas” com os interiores é a quantidade de mato em volta. Especialmente no meu caso, e isso por uma razão muito simples: o matagal fechado é um lugar incerto.
Você senta no fundo do quintal e olha para aquele mar denso e verde. Durante a madrugada, quando dá uma volta na cozinha para beber um copo d’água e inevitavelmente olha para o mato, começa a imaginar um bando de situações esquisitas, das mais reais às mais absurdas possíveis. Só que... presta atenção... a questão interessante é que esse problema do mato é como a alegoria do abismo, sabe? Você olha e ele olha de volta.
Então você senta na mesa de refeições. Dali, dá para enxergar o quintal e o mato todo que toma os fundos do terreno. Especialmente se você mora no Pará. Certo. Você permanece sentado por minutos a fio e, por causa de sua profissão e de sua arte (a arte de criar um bando de histórias esquisitas, profundas, dramáticas, sangrentas ou sarcásticas), os pensamentos o assaltam: você imagina criaturas da mata te observando, sacis-pererês, curupiras, matintas-pereras, o Cramunhão em carne e osso, a primeira namorada (ou namorado) ou sua analista. É seu trabalho (o meu, no caso) imaginar estórias e besteiras. E então imagino. Sentado, aqui, na cozinha de minha casa de veraneio no meio do interior. Uma centena de criaturas bizarras caminhando no escuro, observando, espreitando, aguardando o momento de ataque. Ou, mais particularmente, uma tropa de zumbis caminhando, caminhando, caminhando até você (até mim, claro).
Ah, um detalhe: este conto é sobre zumbis (é conto mesmo? Nem sei).
Entretanto, quanto ao espaço, interiores são regiões igualmente seguras, pois são distantes dos centros urbanos. Se você soube escolher qual interior se refugiar, então se deu bem. Se você não possui uma casa cercada por muros, mas por cercas ou por gramados abertos como as antas dos yankees, então você não se deu muito bem. Mas já sabemos disso.
Já sabemos, certo?
Todo esse lenga-lenga narrativo para finalmente dizer que a primeira vez que planejei escrever este texto, foi no distante ano de 2015. A história era a seguinte:
Um estudante caminha com alguns colegas pelos corredores da Universidade Federal do Pará. Talvez ele seja de Humanas, não muito esportivo, porém leve e rápido como um Impala. Os colegas dividem-se entre meninas e meninos. É de noite e eles precisam atravessar a ponte em direção ao Campus Profissional, pois estão saindo da aula e seguem para o terminal de ônibus. No meio da ponte, sob a iluminação naturalmente inexistente (à época), dois rapazes cambaleantes vêm em sua direção. Vestem camisetas pólo (um deles, uma camiseta listrada de branco e azul celeste), braços malhados, estufados, passíveis de explodirem diante de uma espetadinha de palito de dente. Talvez possuam tatuagens tribais. Ou faixas, listras impressas na pele. Ou tigres. O JESUS É MEU PASTOR.
Naquele ano, todos estes elementos descritivos precisavam ser utilizados de maneira irônica, cômica e debochada (não que tenham perdido o teor e o sentido cômico, em tese ou essência). Então os dois rapazes se aproximam: os sapatênis arrastando-se debilmente pela estrutura de ferro. Os relógios brilhantes e enormes brilhando no escuro. Os óculos de grau fininhos nos rostos de expressões muito fortes ou muito delicadas. Ah, sobrancelhas milimetricamente tiradas.
Finalmente, os dois rapazes são iluminados por um indistinto ponto de iluminação e o grupo de estudantes é atacado. Os brutamontes são lentos, com olhos azulados e branquelos, embaçados, gosmentos. Rasgos nas bochechas, dentes extremamente amarelados e gengivas escuras, podres, fedorentas como as dos horrendos piratas dos épicos infantis. Eles esticam os braços, agarram alguns jovens, talvez até segurem e abocanhem a perna da menina da qual nosso herói possui interesse amoroso. Mas ela morre (não que também faça diferença agora). Os poucos sobreviventes do ataque correm, incluindo ele. Os dois agressores monstruosos erguem os olhos, momentaneamente atraídos pela fuga. Emitem um balbuciar esquisito – um som que repetem com frequência desde que surgiram na escuridão da noite.
Nosso herói corre, assustado, desorientado. Quando olha em volta, percebe que há mais daquelas criaturas, outrora-pessoas-normais... talvez. Com braços esticados, agressivos, rangendo os dentes, peles pustulentas e arrastar lento e retardado de pés, eles murmuram e balbuciam com a língua sem muita coordenação, as gargantas arranhando e o sangue manchando suas bocas.  
Aterrorizado, sem crer na situação, nosso herói compreende o que dizem. Ele identifica o conjunto de sons que emitem e aquilo que significa.
Três sons e três letras.
Aproximando-se, cercando as vítimas, os monstros retardados repetem:
– Top... Top...
E os que se aproximam, atraídos pelo cheiro da carne e dos cérebros, também dizem:
– Top...
– Top...
E os mais avançados, com menos músculos e até com camisetas diferentes, porém muito provavelmente mordidos e contaminados pelos primeiros, ousam gesticular sons mais complexos:
– Topzz... topzeirr...
– Topzeirrr... rrrr... to...
– Topzeirrrr... aaaa...
Quando o restante de seus colegas é atacado, o herói  enxerga uma brecha entre os monstros e corre através da escuridão e da noite, livrando-se do ataque e mergulhando num futuro incerto.
Bom, eu nunca escrevi esse conto. Esqueci por três longos anos.
Pelo menos até o momento. Agora, absorto em minha cozinha de casa cercada por altos e fortes muros, rodeado por mato no interior, escrevo isto na máquina de escrever. O tec-tec-tec ecoando na madrugada e no quintal escuro. Tenho uma xícara de chocolate quente nas mãos (estamos economizando café desde que nossos estoques diminuíram, há cerca de sete meses).
As criaturas espalharam-se pelo mundo. Às vezes, durante os pesadelos, vejo-me balbuciando os sons... as palavras... que agora multiplicaram-se, estão variando, evoluindo, talvez em função de alguma lei evolutiva jamais imaginada por Darwin. Eles dizem coisas novas.
Balbuciam.
Sussurram.
Debilmente, confusos, perdidos, distinguíveis.
Coisas inimagináveis, porém dizíveis.
Pronunciam:
Top... top... top, top…
E também suas outras formas com mais frequência:
– Topster... toppzz... topzzzão...
– zeeeira... top...
Outro dia, em minhas caminhadas sorrateiras, encontrei uma espécie nova. Aparentemente mais agressiva, mais ligeira, afetada talvez por uma variação regional ou temporal do mesmo vírus. Quase atacado, correndo como o herói daquele conto, consegui escapar.
Atrás de mim, elas repetiam:
– Arrrrr... arrrr... arrob... b...
– Arrob...
– A...
– ...rroba... aaaa...
Consegui voltar ao meu território de salvaguarda, mas, sinceramente, não sei por quantos anos estes muros aguentarão a evolução do vírus maldito.
Talvez, se eu houvesse escrito o conto na época e levasse minhas palavras às autoridades, quem sabe nossas chances fossem melhores?
Quem sabe?


Agosto de 2018