19 de setembro de 2018

Jardinar







O que tu fazes
e como tu fazes
não é a minha praga
correndo na cozinha
ou dentro do armário
roendo minhas cousas
ou defecando
em minha pia.

A praga que rói as minhas
fibras,
a peste que corrói a minha
paciência
é quem tu és e quem finges ser,
caro Florista,
ó, jardineiro das cartas.

A praga que assola meu
pulmão,
a praga que apunhala meu
Ardor
(com o mesmo “A”
do Ás que
tão fortemente vangloria-te
em seres o melhor)
é o pulso negro,
o nariz levantado,
as madeixas longas,
a barbicha tonta,
a insânia da tua imagem
tão porcamente bela
borrada nos espelhos
desta cidade
com mil olhos cegos.

Se jardinar estas flores
e florir estes poemas
é mero jogo de Astúcia
vozeado em curvilínea
língua de prata,

se jardinar estas flores
e florir estas poesias
é mero jogo de cegueira
injetado em corações
admirados,

e se jardinar estas flores
e florir estes contos
é mero jogo de vaidade
orquestrado em tabuleiro
manipulador e violento,

então toma aqui minha luva,
toma aqui meu alicate,
toma aqui meus manuais
toma aqui minha sensibilidade.
Então toma aqui os mestres,
toma aqui o sistema
e também as regras
sobre como quebrá-las.

Entrego-te minhas ferramentas,
minhas letras e meu legado.
Entrego-te o que me sussurraram
Eliot e Gabo.

Ó, Jardineiro,
entrego-te todo o preço necessário
para alcançares tua montanha.
Entrego-te tudo
e abandono este jardim
                       (vou-me ali reaprender a criar)
                       (vou-me ali
                                                   reaprender
                                                   de outro jeito).

Se jardinar é
o que chamas de
Arte” com “A” maiúsculo,
meio torto,
distorcido e anuviado
como o Ás com “A”
da Altivez e da Arrogância
que trazes na manga,
então não quero jardinar.

O que quero,
Ó, jardineiro das cartas,
é criar sem esquecer
o que eu sou
e quem eu sou
ante a criação.

O que quero,
Ó, jardineiro das cartas,
É criar para tentar,
ao menos,
brotar menos homem
e florescer mais humano.



(Felipe Santiago, 01.05.2018)

11 de setembro de 2018

Jaula





Nossos corpos são jaulas
Condenados às anomalias do século
Fadados à corda
Aos anseios
Às bolhas sem ar
Ao silêncio do grito
Às patologias do sangue
Aos olhos sombrios
Às retinas inflamadas
Aos amores inflados
Secretos,
Cuspidos,
Inchados
De vazios não sanados.

Nossos corpos são jaulas
De nossa liberdade lendária
Das falsetas dos sonhos
Dos pais partidos
Das mães devotas
Dos boatos perdidos
Sobre terras distantes
Sobre a paz errante
Sobre curas vindouras
Carregadas com a promessa
De salvadores alados
Da lábia divina
Da antiga mentira
De retornos desonrados.

Nossos corpos são jaulas
De pulmões presos
De sangues impuros
Da mácula
Dos filhos malditos
Da cegueira
Dos pés inchados
Doloridos
Cansados
Que já não podem fugir
Que já não podem correr
Que já não podem voar
Que já não podem pisar
Nas Terras d’outro corpo.

Nossos corpos são jaulas
São celas seladas
São correntes atadas
Em nossos pulsos marcados
Por nosso passado cortado
Com pálpebras que nunca teremos
Dos heróis que nunca seremos.

Nossos corpos são jaulas
Espaço cercado
Claustrofobia profana
Em espaço cerrado
Do qual
Livres
Jamais escaparemos.


(Felipe Santiago)

7 de setembro de 2018

Marcha amarela





Os dias são um acúmulo de tanto faz.
Um tanto faz
fazendo barulho,
urrando nestes quartos apertados.

Lá fora,
uma legião tingida,
fingida de amarelo.

Desalmada,
desfila nas ruas
com seus cantos de marcha
sobre nossa geração desarmada.

Cavalgam perigosas baleias azuis,
mas não as expulsam.
Caçam-nas como capitão Ahab
em nome do orgulho,
da imagem e da glória
– pois só assim do povo obterão clamor.

Não sobem nos prédios,
não rompem os quartos,
não mergulham nos escombros
por resgate.

Cantam mais alto que os gritos mudos,
pois a tarefa é o regozijo:
é mais embelezadora que receber os apelos
com a atenção de nossos braços.

Aqui fora, nas ruas,
vejo todos vocês,
soldados amarelos:
marchando,
marchando,
marchando.

Empenhados
com tão belos discursos
recitados
nos palanques.

E nestes prédios,
nestes quartos,
nestas hastes transversais no umbral das portas,
nos cintos apertados
e nas cartelas esvaziadas,
não vejo nenhuma ajuda.
Não vejo nenhum soldado.

Não vejo os meus comparsas,
não vejo os meus colegas,
não vejo as mãos macias que me juraram amor.
Não vejo os gurus bêbados regando misericórdia.

Não vejo tropa alguma no escuro das noites letradas.
Não encontro a ajuda antes escrita nas dedicatórias de Cecília,
de Shakespeare,
de Drummond ou de Camões.

Eu
não
vejo
esse
DEUS
nem
seus
sacerdotes
da igreja
da empatia.

Não há muitas tentativas por aqui,
a não ser esse
canto
desfilado
superficial
destilado
e inútil:

Marchando,

marchando,

marchando...



(Felipe Santiago)