Hoje é
o dia do pecado: faz-se brotar todo ano a memória dos incômodos infortúnios,
dos pífios equívocos. Hoje é o dia do nascimento: daquele outrora pequeno e
agora falante broto que carrega consigo metade do teu sangue, metade da tua
origem. Hoje é o dia, um de tantos deles, da culpa que não é tua, mas que
carregas por responsabilidade da tua estirpe: és, tal qual o pecador, animal
racional, bípede e mamífero a ocupar o primeiro lugar na escala zoológica; és
filho, és descendente cultural, social, histórico e canalha; és irmão e
não-irmão. Hoje é o dia do lembrete: cresce um coágulo dentro dos teus dois espelhos,
encharcando com microscópicas inflamações uma porção de sangue no centro da
íris, no meio da pupila; coágulo condensado nestes olhos que mais viram
tristeza do que sua antonímia, desde quando nem tristeza sabiam o que era.
Ou talvez
o lembrete seja a incerteza de um Criador lá em cima que te enche de provações das
quais nunca foste apto a vencer: as idas e vindas em ambulâncias, a vida farta
de amor recebido, de condições e de confortos, porém tão escassa de vigor, de saúde,
de amor próprio, de alegria e de algum, qualquer sentido.
– Então não foste lá no dia do pecado?
– Não fui aonde?
– Pisaste no consultório?
– Aproveitarei o tempo que me resta.
– Que tempo que resta?
– O pouco que tenho.
– O tempo que te restas no lado direito de teus espelhos?
– Não. De ambos os lados.
– E amanhã?
– O que há amanhã?
– Como será o teu...
...amanhã
haverá uma bala guardada no armário, dada de presente por amigos militares
quando, de tão debilitado, tu não caminhavas direito aos quatorze anos e
ingerias duas doses de Oleptal,
porque descobriste, sem querer, que uma apenas não aliviava e que somente duas te
apagavam, sanavam-te as dores físicas das agulhas que te enfiavam de dentro para
fora, das brasas te queimando a pele, fritando-te
os nervos.
– Infelizmente –
diz alguém diplomado, de
jaleco, de voz amiga e espelhos sadios, zelosos.
–, teus nervos fritaram. Os das pernas, dos olhos e talvez de outros lugares,
como bem já deves ter percebido...
– Bem percebi. Há anos.
– Há anos?
– Há anos.
– E por que não tomaste providências?
Porque
isso o livrou do pecado de repassar tua prole, teu sangue, tua tristeza
inerente na alma e tua descrença carregada desde pequeno no peito, quando
questionavas sobre o Criador, sobre o sadismo do Criador, sobre o desdém do
Criador, sobre a indiferença do Criador, sobre o egocentrismo de que entendamos
nós suas plantas arquitetônicas futurísticas e tão pífias.
O Criador te deves desculpas. Porém
não hoje, pois hoje é o dia do pecado, é o dia do lembrete de que, quando morreres
(e isso não demorará muito por conta de todas as estradas queimadas dentro de ti,
dos espelhos encharcados de coágulos agora no direito e tão brevemente – ah, e o Criador se encarregará disso – no esquerdo). Hoje, no dia do pecado, O Criador não o perdoará.
E de
certa forma tu te compadeces da decisão, tu concordas, tu apoias. Há pecados no
corpo que não descenderam da carne, mas da raiva, dos desrespeitos, da repulsa,
da hipocrisia que outros usaram em ti e que em ti plantaram. Cobraram-te
paciência, cobram-te benevolência em um mundo não benevolente em cada detalhe, em
cada gesto e em cada relação de parentesco, de irmandade não consanguínea, de profissionalismo,
de religiosidade e, ah, sim, de amores também. E dos afetos, dos antigos afetos
que tu mesmo miraste, apontaste e executaste, teus pecados devem e deverão ser
cobrados um a um: da praga que disseste, dos maus agouros sobre doenças e
mortes, sobre as ofensas, sobre a hipocrisia (da qual tanto apontaste naqueles
tempos e pela qual tanto és apontado nestes daqui).
Tentas
com veemência corrigir teus homicídios simbólicos, teus feminicídios
metafóricos. Tentas mudar para renascer outro, outro melhor, outro minimamente
pior – e em certos aspectos, até consegues –, mas enquanto houver memória, corpo
vivente e consciência errante, o passado não será passado. E um dos teus olhos,
agora gradativamente escuro, enxergará apenas o passado tão presente, e o
outro, que tão amedrontado caminha na corda bamba, enxergará unicamente o
presente sem futuro. Porque tu foste um porco malvado, propositalmente
asqueroso, disseste coisas que não existiam e que passaram a existir quando
verbalizaste com desmedida raiva, insano ódio e imperdoável repulsa.
Verme
escroto.
No dia
do pecado tu hás de pagar, hás de saber que o errado não é atirar a pedra
naqueles que visivelmente merecem, senão o contrário: errado é não apedrejá-los.
Quando não fizeres aos sujeitos torpes com quem “artisticamente” topaste (leia-se o termo com infinitas aspas e interminável
ironia), por te sentir incapaz de julgar como um juiz desprovido de erros
próprios, então igualmente te julgarão, embora não saibam tuas escolhas, embora
não saibam o porquê estiveste ali ou graças às permissões de quem paraste ali.
Mas
foi um erro. Outro equívoco inconsequente por baixa quantidade de miolos
eficientes. Quiseste agir feito o Filho do Homem, mas o Filho do Homem é apenas
alegoria, um falso ideal inexistente e não condizente com a vida terrena, a
vida real. Pois na Terra a lei a imperar é a do fogo, da fogagem, da
fogosidade, da foice e da fogueira. Pois na Terra todos estão queimando e
pecador é aquele que não atear fogo, o omisso, o covarde. Então tentas corrigir, mas o fazes errado por desejar
(com fracasso) soar despretensioso, sonso e lerdo, e assim soltando a
informação crucial que desmascara a belíssima manipulação e autopiedade de
“artistas” (leia-se o termo com infinitas
aspas e interminável ironia) tão cortejadores e mascarados. Teu tiro saiu
pela culatra. A partir daí julgam-te por não apedrejar ao invés de meramente
denunciar.
Todavia,
tu entendes os julgamentos. Entendes porque Vida
te explica (“Vida” é tão somente um especial anagrama para representar mais
um alguém na tua escrita). Pois quando Vida fala, tu escutas. Pois quando uma
Libra fala, tu escutas; pois quando a outra Libra fala, tu também escutas. Tu
escutas a todas elas, mesmo que discorde em um dia, analise e dê o braço a
torcer em outro, vestindo o ato de concordar.
E
concordas.
E
tentas melhorar.
E agrides
a ti mesmo nestas linhas e em tantas outras passadas.
E
fazes chacota com o tipo que és ou com o tipo monstruosamente descontrolado que
já foste.
E fazes
um escarcéu.
E
expões a ti mesmo. Pois não somente hoje, mas em todos os outros dias há de se comemorar
os pecados. Que o punidor perfeito não seja o Criador ou o povo na praça que
tão pouco sabe de ti, a não ser tu:
És
advogado de acusação,
és
juiz,
és
carcereiro
e
carrasco de ti mesmo.
És o
bobo da corte que aponta para todos estes porcos em forma de homens que clamam
em praça pública por biscoitos, biscoitos em demasiado, quase esquecendo que só
o fazem para compensar os mesmos equívocos
que cometeram no passado contra mulheres de tantas letras: das Agnes, das
Brunas, das Carlas, das Divas, das Elizas, das Fátimas, das Gabrielas, das
Helens, das Ivanas, das Jamiles, das Lorenas, das Marias, das tantas e milhares
e milhões e bilhões de Marias ao longo de toda a nossa história que ouviram as
mesmas coisas que tu, tu mesmo disseste, das quais também não estarás livre. Porque
o passado é uma formação geológica imortal, mais duradoura que as estruturas no
Cairo ou os alicerces em Delfos.
Não
importa o cilício diário que aplicares contra ti mesmo. Não. Haverá. Paz. E que bom (este é o único ponto em que concordas com
o Criador: a punição eterna enquanto forem eternos os teus poucos dias restando).
Com os teus olhos se apagarão a tranquilidade e a consciência do lago
cristalino que há anos secou.
Não
importa o quanto haverás de melhorar;
não
importa o quanto melhoraste;
não
importa que a própria Vida (este belo anagrama) passe as mãos por teu rosto e
diga que o compreende e que o perdoa, apesar de não poupá-lo da lembrança de teus
próprios equívocos – e com razão;
não
importa que Vida te abrace e faça o turbilhão evaporar de tua cabeça com lábios
ternos e coração tão gigante, embora ela mesma duvide disso;
não
importa que todas elas (exceto uma, aquela que mais temeste e a que mais se
esvaiu sem disso saber) tenham conhecido o que fizeste antes de tu amá-las ou
te tocá-las;
não
importam tuas piadas literárias e metafóricas;
não
importam tuas automutilações escrachadas, berradas,
berradas
como esta;
não
importa se fazem a História maleável pelas bocas das vítimas ou dos vencedores,
se o passado é sólido, bruto, implacável e não lapidado.
Por
tudo isso, aplausos soam ao Criador pelo dia do pecado não exterminado, pelo
pecado santificado e insidiosamente penitente. Por isso precisas concordar com teu
julgamento celeste que certifica tua condenação interna, a terrestre.
Porque
o objetivo, nota-se, é teu desejo de mostrar-se ao mundo, de despir-se ao
público: revelar “a besta em mim”,
como cantou Johnny Cash ao entoar que “é
enjaulada por barras frágeis e fracas”. Pois sabes, de algum modo, apesar
das melhorias, da diária fuga de senhoras abusivas e nocivas, do temor
paranoico de situações conflitantes, das confusões e das brigas, e que apesar
de um melhoramento não completo, de uma desconstrução impossivelmente palpável,
que há algo diabólico aí dentro. Ainda és passível de loucura, de falta de
preparo ante traições e de consequentes descontroles.
Por
isso corres de todos eles. Por isso tens corrido desesperadamente e suprimido
com sumários atos misericordiosos os indícios da besta, da fera enjaulada, do
demônio que cochila no mesmo inconscientes dos mitos que amas – como o amor
incondicional e o paraíso celestial – ou dos sonhos que tão massiva e tolamente
não deixas de te agarrar. Por isso, como entoou Cash, tentas esquecer “o monstro inquieto de dia e de noite, que
cria confusão e se enfurece com as estrelas” tão facilmente. Por isso o
monstro aí dentro com a mesma fagulha de raiva clama pela existência de um
Criador, dessa vez não para puni-la, mas para ajudá-la.
“God help the beast in me”.
Entretanto,
enquanto houver dias de pecado, existirão o sagrado cilício, o sangue invisível
na língua e o visível nas retinas escurecendo esperanças e ralos objetivos de
se viver mais um dia de amanhã. Enquanto houver dias de pecado, haverá punições
como estas: faces hediondas que
estampam o mundo e como muito bem vens detectando, seja através das minúcias e
dos relatos, seja através da denúncia dos falsos sujeitos criadores-poéticos que
tão bela ou heroicamente gritam por aí em praças públicas angariando aplausos –
não há, para eles, júbilo maior.
Esta é
a tua “face hedionda” como dito por Nelson Rodrigues e como bem será citado a
seguir. Pois estás, desde que engoliste Gababentinas e Duloxetinas com whisky,
punindo-te com o (infelizmente, nada misericordioso) ato diário de passar a mão
no rosto e reconhecer tua hediondez.
“Somos
aquela pureza e somos aquela miséria”.
“Só não
estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva”.
Mas o
sentimento não está te salvando. Ele está te matando, corroendo-te. Na boca é
mais que bílis, é cianureto.
“Pois o homem
não nasceu para ser grande, o mínimo de pureza o desumaniza”.
Afinal,
ora essa:
“O ser humano é cego para os
próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o
idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes,
mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa
erguida:
‘Senhoras e senhores, eu sou um
canalha’ [...]”.
Porém aqui (não canalha, mas idiotamente), tu confessas e
proclamas, para encerrar mais uma de tuas severas autopunições. Acusando-te,
revelando-te, expondo a besta de Cash para o público nesta tua taverna de
horrores:
– Senhoras e senhores, eu sou um pecador.
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