23 de fevereiro de 2019

A melhor sensação do mundo





Cinco e vinte e seis da manhã.
E aí o despertador grita no silêncio da madrugada.

Acorda.
Acorda.
Acorda.

Naquele carnaval, compartilhamos meu segredo estranho. Chamava-o de “A Melhor Sensação do Mundo”. Amanhã você me conta, foi o que ela disse logo depois de revirar-se na cama entre reclamações e protestos dizendo que não conseguia aguentar um instante a mais de curiosidade. Vai ter que aguentar, respondi em meio a risos sádicos. Eis aí um dos mistérios que eu não compreendia nas pessoas, especialmente nela: a fraqueza por curiosidade, o espírito que se move e se debate ante um segredo adiado, ante uma revelação tardia. Astrólogos diziam, com certa eloquência em seus dinamismos excêntricos de pedras e cristais, que a configuração das estrelas fazia com que as pessoas nascidas naquele período de mês – e ao qual ela pertencia – não resistiam às informações guardadas às sete chaves, que de preferência as guardássemos com uma oitava chave ao invés de anunciar quaisquer vislumbres ou pistas de sua existência já na primeira. Segredos a reverberavam de maneiras ruins e a bem da verdade a informação a consumiu pelo resto da madrugada, chegando a me acordar duas vezes para que eu desesperadamente anunciasse o que, diabos, era a melhor sensação do mundo.
Enrolei-me e enrolei-a entre lençóis, resmungos, adiamentos e desculpas, beijos, carícias e truques que eram a melhor sensação do mundo apenas para ela, algo que momentaneamente não reclamou, pelo contrário. Dela recebi ameaças fervorosas sobre dali partir em plena madrugada. E não que eu duvidasse de tais palavras, não que em momento algum durante o furacão que  varreu e mergulhou toda a Nova Orleans que me era a vida, ela tenha em algum ponto vestido qualquer sugestão de que era o tipo de pessoa que não cumpria com o que dizia – aliás, sua voz e sua força eram traços inigualáveis do pulso firme que eu nunca fora ou tivera.
Exceto naquela noite.
E se naquela noite eu fui seguro e não dobrei-me aos pedidos, ela também não cumpriu com o que disse. De todo, a noite de nossas exceções. Voltei a dormir. E ela por desistência também o fez, com a tez pálida virada à parede e com o bico prestes a perfurá-la – decerto que poucos até então presenciaram tal expressão de tolice e irritação. Decerto, fui um deles.  
Às cinco e vinte da manhã daquele distante carnaval levantei para urinar, os olhos pesados e a bexiga estourando. Tirei a água dos joelhos antes de voltar ao lado dela e afogar minhas narinas entre seus cabelos, lavados na noite anterior com aquela solução básica que nos últimos anos migrava para a lavagem natural. Aquele, ah, aquele sim era o aroma de seus verdadeiros cabelos: não a composição vinda de determinados shampoos, condicionadores ou cremes, não – era o perfume natural do couro, dos fios e da pele, aquele no qual tão certamente me perdi. Com uma porção de beijos suaves, acordei-a devagar, com leves chamados ao pé do ouvido. Naqueles tempos, talvez pela ausência do cansaço e do enjoo que todos os anos trazem aos cônjuges, ela acordou devagar e sorrindo, inteiramente esquecida da curiosidade à qual a releguei antes de dormirmos.
Então vai, acorda, eu disse. Quer que eu te mostre o meu segredo, a melhor sensação do mundo? E ela disse sim, com um sorriso de ponta que volta e meia esbanjava pra me foder o controle, vais me dizer agora? A voz tinha uma espécie de incredulidade, pois olhou pelas frestas da janela e agarrou o celular para conferir que horas eram. É sério, vais me dizer agora? Só não havia irritação ali porque a curiosidade ainda existia, ainda a fervia e a fermentava por dentro. E eu, guardando uma mecha de seus cabelos para trás das orelhas, sussurrei-lhe que, melhor: eu vou mostrar. Ela sorriu, sorriu largamente, outro golpe fodido para foder-me o controle, deu-me as mãos e a conduzi até o banheiro. Ela, sem muito entender, mas mordiscando os lábios ainda amassados pelo sono e os olhos abrindo lentamente para manterem-se despertos, seguiu-me sem hesitar e sem perguntar nada. Assim, despi as roupas que sobravam: a peça de calcinha e minha camiseta folgada dos Stones. Também o fiz com as minhas roupas. Conduzi-a para debaixo do chuveiro e beijei-a nos lábios que de tão contrastantes com os meus, pareciam até peça de Lego exclusiva de encaixe, edição limitada.
Tu estás doido? Ela perguntou. São cinco da manhã, nem fodendo eu entro nesse chuveiro. Nem fodendo? Rebati. E ela tornou a sorrir, embora também bocejasse em protesto. Com as luzes apagadas e a cor do céu migrando do azulino para o preguiçoso celeste, lá fora os vinte e quatro graus pousavam sobre a Belém de Fevereiro com um leve chuvisco e nuvens fechadas, penetrando em nossos ossos com um aviso de urgência:
Você está louco? Vá dormir. Agora”.
Esta é a melhor sensação do mundo, expliquei ao encostar as costas dela na gelada lajota da parede. Senti seus pelos dos braços e da nuca se arrepiarem, e excitei tal a reação ao colar a boca em seu pescoço. Continuei: você acorda cedo, o mais cedo possível, vai até o banheiro e fecha os olhos, de preferência com as luzes apagadas. Tá, tá bom, ela respondeu com o sorrisinho de canto nos lábios e os olhos fechados, a ponta os dedos reverberando o tremor das mãos devido ao frio. Prossegui: em seguida você abre o chuveiro e deixa a água cair. Ela gargalhou, incrédula: vais desperdiçar a água do mundo?
Que se foda o mundo, respondi.
Para minha surpresa, ela somente assentiu, sem me dar broncas por foder com o meu ambiente ou reclamar em função do hábito diário de economizar água. Para a minha surpresa, apenas deixou-se guiar. A água caiu no chão e respingou em nossos pés descalços, reavivando o arrepio que tentamos sanar a todo o custo quando nos aproximamos. Seu corpo quente em meio ao frio de Fevereiro, e o hálito de quem acaba de acordar, úmido, ligeiramente abafado como o de qualquer ser humano na face da Terra que igualmente acaba de acordar, macio e amoroso, deitando sobre a pele do meu rosto. E agora, ela perguntou, o que a gente faz?
E agora a gente fica assim, respondi. A água caía em grande maioria no lado direito de minhas costas, comprimíamos-nos no minúsculo espaço que sobrara entre a válvula de abrir-e-fechar e o boxe que aos poucos embaçava. Agora a gente espera e deixa a água cair, sussurrei. E que se foda o mundo? Ela repetiu com um tom de prazer, com os olhos fechados mas o corpo inteiro acordado, arrepiando-se e encaixando-se com e ao meu. Agora, enfatizei, você sente o frio da manhã, não se molha completamente, porque não é um banho, é um passeio. Envolvi sua cintura e girei nossos corpos, ficando então de costas para a parede e colocando-a diante de mim para que a água gelada e não-tão-mais-cortante-assim rolasse pela lateral de suas costas e de seu braço. Ela sorriu, sorriu mais longamente e suspirou, encaixando a peça de Lego de seu rosto na peça que era o meu pescoço.
Acho que entendi, ela disse, acho que já sei qual é a melhor sensação do mundo. Você faz isso todos os dias de manhã cedo? Havia um tom de espanto na voz que imediatamente corrigi com um balanço de cabeça.
Todo dia não, só quando posso... só quando vale a pena.
E hoje vale a pena? Perguntou-me, aninhando-se entre meus braços e levemente roçando o quadril pelo meu, os seios sobre minha pele, as unhas arranhando-me as costas num vai-e-vem lento, num sobe-e-desce crescente.
Vale, vale toda a pena. Especialmente hoje.
Por quê?
Porque...
Pelo feriado de carnaval?
Não.
Por quê?
Eu sorri, e toquei-lhe as pálpebras com os dedos, desenhei um por um os cílios simples sob as sobrancelhas discretas, quase ralas.
Porque tu estás aqui.
Ah, é?
É.
Ela abre os olhos. São castanhos: a cor eleita por mim como a mais bela que poderia existir num par de globos oculares arquitetados por uma mãe e por um pai que, coincidentemente, encontraram-se num longínquo carnaval, unindo células a outras, unindo um óvulo a um espermatozoide, unindo vinte e três cromossomos a vinte três cromossomos e gerando a cor eleita como a mais singularmente simples e bela – nem azuis e nem verdes e nem violetas e nem amendoados e nem cinzas e nem negros. Castanhos.
Que horas são? Ela perguntou.
Que importa?
Queres sair?
Sadicamente, comecei a sorrir.
Mas é claro que não.
É, eu também não.
Então fica.
Vou ficar. Eu tô ficando, ela disse.
A água continuou caindo, despencando na lajota do banheiro como as águas da Venezuela caíam, caem e cairão no Salto Ángel: silencioso e barulhento, magistralmente belo, monstruosamente perigoso.
Eu tô ficando, ela disse. Eu tô ficando...

Cinco e vinte e seis da manhã.

E aí o despertador grita no silêncio da madrugada.

Acorda.
Acorda.
Acorda.
E aí o despertador me retira do tão longínquo banho doutra tão longínqua madrugada. O banho que não está acontecendo; o banho de águas que um dia caíram e que não caem mais.
Acorda.
Desligo a porcaria do aparelho celular e o enfio debaixo do travesseiro. Cinco e trinta e dois agora. Cinco e trinta e dois de uma manhã fria e chuvosa de Belém. Lá fora, vinte e três graus – um frio quase glacial para os nortenhos. Cambaleando até o banheiro, retiro as poucas peças de roupa que há em meu corpo e coloco-me, sem cerimônias, sob o chuveiro, mas não o abro. Estou de olhos fechados. Não há mais castanho, não há mais cabelos com soluções básicas quase ao natural. Não há nada mais que importe neste banheiro, não agora, não neste carnaval.
Talvez haja, por aí, qualquer coisa que importe – aquela única coisa que importa.
Talvez em outro banheiro.
Sob outra cachoeira.





3 de fevereiro de 2019

Num bolso





Tenho comigo dois pedaços de algo quebrado, duas partes roídas de duas peças que não se encaixam, duas peças de um jogo de tabuleiro que foi consumido, analisado e devolvido, retirado de todas as prateleiras das lojas ao longo deste solo roubado.
Fora de estoque por decreto inviolável, as peças – as duas únicas produzidas de maneira equivocada num processo de larga escala industrial – não se encaixam, defeituosas por si só; as duas únicas que elevaram e puseram abaixo um jogo intrincado e promissor de leituras esotéricas, fontes ocultistas do leste europeu, galerias intermináveis de volumes nomeados por Helena e por Blavatsky; intrincados e tão belos politeísmos, reflexões sobre a vida além desta via Láctea e uma composição das mesmíssimas canções reunidas numa espantosa e coincidente  ordem, em ocasionais coincidências termodinâmicas, milagres. Um jogo que um dia possuiu todas as expectativas das listas dos maiores sucessos de todos os tempos, dos mais vendidos ou, no mínimo, com as mais promissoras  chances de ser esquecido, abandonado e apaziguado pelo público massivo, e portanto apreciado apenas por seus seletos e quase raros jogadores.
Um jogo que não era, em si, um jogo.
Peças que não eram, em si, peças de um quebra-cabeça, tampouco os encaixes de uma Rainha Preta ao encontro derradeiro e quiçá romântico de um Rei Branco, não pela óptica do iminente xeque-mate, mas sim pelo encontro pré-definido, independente das cores, independente das estratégias ou das tragédias.
Duas peças que não eram, em si, apenas peças, mas duas asas de cores, músculos e cicatrizes destoantes. Ou talvez dois pares inteiros delas, com o único e quase litúrgico mistério de se saber, precisamente, a quem de fato pertenciam.
Duas peças fora de um jogo esquecido, que não era um jogo em si, como bem supracitado.
Dois pedaços de algo.
Não para cobrir estratégias vis.
Não para suprimir tragédias ruins.
Duas peças num tabuleiro de encaixe.
Precisas,
como num salão
e agora num bolso.
Duas peças numa dança.