Neste carnaval, Don JuAirez peregrinará pelas ruas de Belém
vestido de pierrot. Entretanto, que fique claro: o fato de vestir fantasia
épica e máscara de faceta triste com lágrima brilhante caindo dos olhos, faz
com que nem você nem eu saibamos a verdadeira identidade de Don JuAirez – este nome,
é claro, é totalmente fictício e
alegórico, portanto quaisquer semelhanças com a vida real não passarão de
meras, meríssimas coincidências. E ao contrário do que esperam os leitores, outro
ponto precisa ser de antemão esclarecido: esta é uma história de amor sobre uma
fadinha e um pierrot.
Feitas as considerações, que o carnaval continue.
Sob a máscara de rebuscado investimento e detalhes, tudo o
que você notará a respeito da verdadeira identidade do pierrot estará atrelado
aos olhos, pois as duas órbitas oculares de Don JuAirez são lindas, belas, de
cores claras e quase transparentes que contrastam e combinam de maneira
maravilhosa com a pele de pouca melanina e com os cabelos pretos na cabeça e no
que parecem ser bigodinhos e cavanhaque, se, é claro, você se aproximar para
reparar em tais detalhes.
Em meio às ruas da cidade das mangueiras, este bloquinho de
rua traz ao seu redor, em quase um quarteirão inteiro, grades, faixas e alambrados,
mascarados e mascaradas, Meninas Superpoderosas, Famílias do Jorel, Mulheres
Maravilhas, Homens-Aranhas, Batmans e presidentes fantasiados de pintores de
muro e capinadores de calçada... melhor
dizendo... fantasiados de militares. Aliás, essas eram as fantasias
masculinas de maior número. Aqueles que não estavam fantasiados tinham em seus
corpos os abadás que custaram elevadas quantias. Os fantasiados, é claro, para
serem identificados, tinham nos braços um par de pulseirinhas nas cores rosa-neon,
azul-neon e limão-neon. Duas viaturas da Semob e três da polícia militar estavam
à disposição para desviar e orientar o trânsito, para proteger de qualquer
problema os bons brincantes e cidadãos de bem de bairro tão nobre da cidade. Havia
também o open bar e pacotinhos de cocaína dentro de bolsos ou negociados às
portas dos banheiros químicos, pois diversão, bebida alcoólica e
potencializadores nasais tinham por excelência relação biológica mutualista.
Nosso grande herói, Don JuAirez, estava em seu auge da
satisfação e alegria. Pois como um ótimo rapaz que era, bondoso, sincero e de
caráter impecável, tinha o coração preenchido e blindado para todas as
tentações que o carnaval e suas sainhas ofereciam. Não porque sua amada estaria
prestes a conhecê-lo nem porque estava distante permitindo-o que se divertisse
longe de vossa presença. Não, não. A amada, a grande musa, a Prometida dos versos
de Br’oz, a Isolda de Tristão e a fadinha do pierrot estava ali, ao lado dele,
embora não vestida de colombina. É claro: ela o convidara ao bloquinho, ela
financiara sua fantasia, ela pagara as pulseiras de open-bar, ela pagaria
também o Uber e talvez a Pousada-Sagittarius-para-mais-tarde. Entretanto, como
dito anteriormente, Don JuAirez era um
rapaz de caráter impecável, quase inteiramente cavalheireso, pois neste século
de expressão feminina, o cavalheirismo em seus moldes arcaicos andava meio fora
de moda – agora as moças dividiam contas e trabalhavam pesado no mercado de
trabalho, sobrepujavam seus concorrentes masculinos e, como não deixaria de
ser, sustentavam-nos. Nesses aspectos, Don JuAirez dizia-se de todo Feministo, porém não publicamente, claro.
Ele adorava a nova dinâmica dos relacionamentos atuais e das desconstruções
sociais feitas pelas mulheres, adorava ter de dividir a conta e adorava ainda
mais quando uma de suas namoradas oferecia-se para pagá-las.
Sobre as namoradas de nosso herói carnavalesco e sobre a
questão do cavalheirismo distorcido, salientemos duas considerações: primeiro,
a divisão de contas era seletiva, portanto nem todas as companheiras de Don
JuAirez mereciam as contas inteiramente pagas ou divididas por ele; segundo, a
moça ao lado do pierrot não era a primeira namorada durante aqueles últimos
meses, mas naquele dia, nos próximos e até nas redes sociais (em status que ela
nem sequer compactuou em participar) era ela a namorada oficial.
Oficializar relacionamentos sérios em época de carnaval era
algo de seriedade extrema, pois a sabedoria popular é certeira ao observar que
mais namoros são desfeitos para o carnaval do que aqueles que são oficializados
no carnaval. Tal fato era prova
incontestável das boas intenções de Don JuAirez para com a sua companheira não – colombina – que trazia consigo apenas uma fantasia simples e não muito elaborada
de fadinha, pois combinava com seu cabelo castanho escuro trabalhado em bob’s durante
todo o dia antes do bloquinho.
A fada, embora não fosse a primeira namorada, e sim a primeira oficial atualmente, era moça de um caráter igualmente bondoso, embora um
pouquinho ingênua, apesar da idade. Ambos traziam consigo trinta anos nas
costas, ele um pouco mais. A fadinha, bem sucedida com carreira na área de Direito
e diversas viagens e planos de vida para o exterior, não possuía um curriculum
muito longo de relacionamentos afetivos, mas isso pouco importava para Don
JuAirez, o que importava mesmo era o pedigree da fadinha – o nariz retocado
cirurgicamente, a pele tão clara e “limpa” como a dele, os olhos belos e
penetrantes, a carreira bem promissora, os números bancários gorduchos e toda a
oportunidade que oferecia e certamente ofereceria a ele, caso estivesse ao seu
lado fazendo juras de um amor tão romântico, verdadeiro e repleto de lágrimas
de arrependimento pelos erros (ele preferia chamá-los de “equívocos”, pois
ajudava no eufemismo) outrora cometidos.
Com “equívocos”, Don
JuAirez, no íntimo (e apenas para os poucos cúmplices que ainda menos sabiam
sobre a história do que julgavam conhecer), referia-se à outra moça, à primeira
namorada, não a primeira oficial atualmente, mas à primeira que pouco tempo
atrás ele fazia acreditar ser a primeira e a única: mocinha linda, tão bela,
formosa, que 9 entre 10 homens afirmariam ser um mulherão de qualidade nata,
belo traseiro, belo corpo, belo isso, belo aquilo, e belas todas aquelas coisas
que se você não fosse homem saberia que são um tanto quanto superestimadas até
demais. A primeira, talvez a verdadeira colombina desta história, era dez, onze
ou até doze anos mais nova que Don JuAirez quando se conheceram. Era um pouco
menos nova quando começaram aquilo que ela julgava ser um relacionamento, mas
que no fundo não o era, sob todas as explicações de nosso herói ao dizer que
não sabia o que fazia nem sabia o que viviam, pois era um pobre coitado com depressão,
mal-sucedido na vida, sem emprego, sem perspectivas, sob as saias das mães e
das tias e que tinha medo, tanto medo de perdê-la para um rapaz bem-sucedido,
com emprego, curriculum farto e estabilidade de vida – algo que é de suma
importância para mulheres, porém nem tanto quando estão
quase-perdidamente-apaixonadas por rapazes como o nosso tão estimado e querido protagonista.
Nesse épico romântico de inúmeros vais-e-vens, em meio às
inseguranças de nosso alegórico herói francês, e como nos mais normais casais
deste e de outros séculos, enquanto estavam juntos, Don JuAirez beijou outras moças
e a talvez colombina beijou outros rapazes, então voltaram, brigaram,
discutiram, choraram, ah, como choraram, mas no fim refizeram seus laços em
juras de amor suadas e com promessas vívidas de eternidade, cumplicidade,
fidelidade e contas pagas apenas por ela, é claro, pois em meio a isso, quando Don
JuAirez efetivamente conheceu a fadinha e com ela passou a sair por aí pelas noites
de Belém, notou que precisava economizar dinheiro para dividir a conta com sua
atual companheira de carnaval, pois não poderia jamais transparecer à moça
bem-sucedida (a fadinha) qualquer vestígio de sua natureza mal-sucedida.
Por incontáveis vezes levou a talvez colombina à sua casa e
apresentou-a ao pai, à mãe, aos demais familiares e aos amigos de família. Fez
a pobre moça julgar que agora sim, agora sou oficialmente a oficial, já conheço
a sogra, o sogro e pertenço em partes à rotina deste lar tradicional
brasileiro. Por outro lado, o que a talvez colombina não sabia era que visitava
aquela casa não sob a alcunha pública de parceira afetiva e amorosa, não como
namorada, mas como apenas mais uma outra.
Pois o que se sabia de verdade entre aquela família e entre os cômodos
daquela casa tão amorosa e temente à uma pátria ímpar, justa e de bons valores,
era que a senhora oficial de nosso Don JuAirez era, sim, aquela que então agora se fantasia de fadinha no carnaval. A talvez colombina, oh, tadinha, embora tão
esperta fosse para suas próprias escapadas, não era o suficientemente esperta
para notar as desculpas dadas por seu companheiro de caráter irrefutável;
desconfiava, sim, de uma coisa ou outra, ficava com aquela conhecida pulga
atrás da orelha, mas no fim das contas, em meio às lágrimas sinceras de nosso
herói, de suas carícias infalíveis, de seus olhos clarinhos, clarinhos, oh, tão
clarinhos, e de seu instrumento de trabalho tão imenso e vigoroso de movimentos
rápidos, deleitosos e firmes, nossa talvez colombina acabava por se deixar
levar. Não esquecia, é claro, não perdia a desconfiança, deixava-a apenas para
uma próxima hora.
Mas mentiras possuem pernas curtas, como bem há de dizer a
sabedoria popular. E as mentiras de Don JuAirez então tropeçaram e vieram ao
chão. Tão elaboradas e manipuladas elas foram que não se isentaram de aplacar
nem mesmo a fadinha – era ela tão vítima das mentiras quanto a talvez colombina.
Dizia ele que não possuía nada mais com aquela jovem moça tão novinha, que todo
seu compromisso agora girava em torno da mulher resolvida e bem sucedida que,
inclusive, já confabulava com ele planos para abrir um negócio ao seu lado, cujo
qual tinha como objetivo ser um investimento para a carreira profissional de
nosso herói. Que, inclusive, estaria fadado a acompanhá-la em suas futuras viagens
ao exterior, das quais já teciam planos sem que ninguém mais soubesse. A
verdade então veio à tona, e nossa heroína, a talvez colombina, munida e
sacramentada daquilo que hoje chama-se sororidade entre as iguais, avisou sua
colega igualmente enganada e ambas compartilharam as histórias desbravadas por Don
JuAirez entre as ruas desta cidade, entre suas pernas, entre suas crenças,
entre suas promessas, entre suas falácias e entre seus olhinhos de olhos claros
– ah, não deixemos de admirar aqueles olhos, apesar de tudo.
Agora o plot twist: tornaram-se amigas, as melhores amigas.
Compartilharam copos de cerveja nas festas de Belém, fotos em redes sociais e
até narrativas tão suadas a respeito dos movimentos lascivos e do instrumento
bem dotado de seu antigo amado, o pierrot.
Os fatos até este momento ocorreram muito antes do
carnaval, muito antes do início de nossa narrativa, e como muito bem dito
anteriormente, para relembrar nossos leitores, esta é uma história de amor. Não
sobre como Don JuAirez tropeça com a face no chão e a dilacera para a alegria
do público. Não é sobre como as mentiras dele vêm à tona, não é sobre como ele
deixa de ser um herói para amigos e familiares (sobretudo para as mães e tias,
as quais ainda o mantém embaixo da saia). Não é sobre como nosso herói encontra
nesta história um final triste e melancólico, com seu orgulho masculino ferido
e sua reputação arruinada... Não, não.
Esta é uma história de amor sobre uma fadinha e um pierrot.
É uma história de amor onde a pequena criatura de folclore fantástico, de
pedigree inegável e de bondade inenarrável põe o amor à toda prova, trai sua
amizade com a talvez colombina, renega o direito da tão indestrutível
sororidade entre as iguais e volta aos braços de seu amado, mesmo sem sua nova
amiga saber; muito antes de que sua nova amiga sequer desconfiasse.
Esta é uma história de amor. Sobre como a fadinha retorna
aos braços do pierrot e promete a ele um futuro incrível, com abadás pagos,
contas não divididas e futuros com pequenas empresas tão promissoras para o
futuro profissional de nosso herói.
Esta é uma história de amor. Sobre como a fadinha caminha
ao lado do pierrot em pleno carnaval, aos beijos, aos abraços, aos pulos e às
juras de fidelidade eterna.
Esta é uma história de amor. Sobre uma fadinha de pedigree
incontestável e sobre um pierrot de caráter inegável de olhinhos claros, tão
claros e lindos.
Ah, aqueles olhinhos...