30 de junho de 2019

Quentes como a cidade





Não passa de quinta à tarde
em nossa quente cidade
ela diz que sou como as paredes de meu quarto
não aquelas que portam os quadros
do velho Robert “bardo” Zimmerman,
mas aquelas que lajotam nossas costas no banheiro.

A cidade quente esquenta tudo:
Tubulações, canos, bafos
e também a água que sai
quente do chuveiro
parece a água quente que sai
de ti e encharca-me úteros.

A cidade quente esquenta tudo:
porcos santos e tesoureiros-pregadores
e também a água que sai
quente do chuveiro
parece a água quente que sai
de mim e encharca-te duros dedos, lívida língua e férvida face.

Ela diz na quinta à tarde que a cidade é quente como
nossos preguentos corpos no meio das três
de sol ou de sereno.
Nossos corpos são
como a cidade
no trânsito da tarde
de vendedores entre carros
no calor da animosidade
vendendo água mineral e refrigerante
batendo nas laterais dos transportes públicos
queimando no calor da cidade para repor o vazio
dos pratos e das crianças.

Nossos corpos são como a cidade
Quente
Em seus fluidos em suas misturas em seus
Gritos em suas fúrias.

Ela diz em uma quinta à tarde,
nua como a sacra vela episcopal
no fundo do santuário de Fátima,
que nossos corpos são 
tão suados e quentes
quentes como a cidade.


(Felipe Santiago)

19 de junho de 2019

Aleluia




No fundo do bar, Leonard Cohen canta Hallelujah. No salão, um de meus demônios dança com um anjo que veste túnica longa e elegante de um branco néon reluzente, como as cores dos vestígios que deixam as estrelas mortas.
Quanto ao demônio, pouco importa descrevê-lo, pois está sempre por aqui, dançando comigo e com outros ou outras – sobretudo comigo.
Hoje ele dança com um anjo e não ousarei tirá-lo dos balanços angelicais de tais ébanos braços de mármore, asas arenosas e auréola resplandecente. Permito que o demônio dance, embora tudo o que aprendi sobre o amor seja como atirar em alguém que sacou a arma primeiro.
But it’s not a crime that you are here tonight.
Leonard canta. E com um anjo meu demônio dança.
Aleluia.
Aleluia...

17 de junho de 2019

Ruína é tudo





A lama é edificante. Ela é suja. É algo natural e derradeiro à experiência humana: inevitável substância ao mergulho dos afogados.
A lama é poça de elementos vários – o interior de um saco escrotal, o caminho interno de um útero, a placenta, a vala, o chão, a cova, o túmulo.
Lápide e eternidade.
Na lama, a ruína tende a nos mostrar a verdade suprema do universo, a equidade da tríade suprema e assim tão inexorável: O Tempo, A Morte e A Queda, não necessariamente nessa ordem.
Em estados altivos de glória, na suprema segurança ou no supremo controle, haverá a inevitável traição, haverá o descuidado descontrole. A loucura, a insanidade dos homens e a blindada argumentação das mulheres. O certo, o errado, o nunca certo e o jamais errado. A bebedeira, o mergulho, o álcool e as drogas. A nicotina, os dedos amarelos da distração ou as abertas narinas da adrenalina. A gordura e o açúcar que corroem as veias, inundam-nas, entopem-nas. A disfunção dos rins, dos nervos e das retinas. Os corpos gélidos, ora tão cadavéricos, ora tão gelados de fina e irreparável vida frágil. As camas de hospital, as inúmeras e repetidas e familiares camas de hospital. Os sonos profundos.
Os blacks.
Os blacks.
Black.
Os tantos blacks em conversas corriqueiras, triviais. Os blacks quase eternos, definitivos. As camas de hospital novamente. As enfermeiras com tatuagens nos pés e torneadas batatas. As enfermeiras santas. As enfermeiras mais jovens, mais belas, mais desleixadas e mais cuidadosas. As enfermeiras que julgam-se sabedoras do tudo. As enfermeiras altivas que igualmente afundarão na lama, cedo ou tarde.  
As montanhas e os narizes e os médicos e os gurus e os santos e os diplomados e os altivos adjetivos que de tão adjetivados tornam-se substantivos, todos eles caem, desmoronam, placas tectônicas em choque constante. Os tremores. Hemoglobina glicada. Ferro deficiente. A retinopatia e um lobo vendado eternizado no braço, uma profecia. A eletroneuromiografia e os mesmos sapatos de mesmos cadarços pretos de tantos anos atrás – a mesma posição, pela terceira vez de novo; os mesmos prédios e os mesmos corredores e as vozes que não se calam, que reverberam um nome desleixado, irônico e talentoso sempre que ele surge para irritar até quando assim não deseja. A transaminase pirúvica, ou TGP, em 400, 450, 500... mais um trago e quem sabe o túmulo? O fracasso. A vergonha. “A falta de ambição” na curvatura de línguas tão ambiciosas, tão ácidas, tão vazias. Desmaios públicos e risadas coletivas – as vozes carrascas que destroem aqueles que já foram e sentenciam aqueles que nunca serão. As vozes irritantes. A opinião pública – a voz do povo que é a voz de Deus e que é a voz de um cão raquítico que nunca ladra, só morde; em suma a voz de Deus que é sempre um cão raivoso prestes a dilacerar, rasgar, morder, infectar, matar e punir.
Deturpar.
Mais cigarros.
Mais.
Mais.
Mais lamentos.
Maus amigos e bons amigos. Falsos amigos. Um boquete perdido. Um beijo nunca dito. Mentiras. Verdades. Verdades, sobretudo as verdades. A autopunição. O martelo nas mãos do réu. O martelo disposto a condenar, condenar, condenar – porém (e conscientemente) jamais prestes a perdoar (-se). Um Deus que não conhece absolvição e um anônimo histórico dependurado na cruz que não conhece ou não quer conhecer a verdadeira clemência, graças a Deus. Sem misericórdia, sem perdão, sem necessidade de desculpas, sem o desejo de nenhuma dessas coisas. A necessidade de comiseração que não está vindo através de pedidos nem através de súplicas, muito menos de conhecimento público.
Atos bondosos secretos. Atos bondosos nunca proclamados. Atos bondosos nunca estampados nos outdoors da cidade, pois os bons homens não merecem aplausos ou plateia; pois os bons homens merecem apenas mirar em seus alvos, em seus destinatários, em seus beneficiários – um agente? um receptor! –, e em seguida o silêncio, o esquecimento e o desconhecimento do público e do júri popular. Bons atos não merecem holofotes, merecem, enfim, apenas o feito por si só, sem menções honrosas, sem recompensas de Deuses menores e inexistentes.
Mais álcool.
Mais.
Mais.
Mais açúcares no sangue. Mais nervos periféricos corroídos. A besta trancafiada na jaula, a besta acariciada por mãos de Sagitário. A besta amada como ela é e por aquilo que ela é, não por aquilo de que ela é capaz. A besta apaziguada, mas jamais negligenciada, jamais esquecida.
A besta sem perdão.
A besta, besta.
A besta.
O monstro. O rosnado. As presas, as garras que cavam lama para encontrarem, no fundo do poço, algum ouro anteriormente citado – em outras conjunturas, em outras tecituras, em outros revérberos de outras palavras, prosas ou poemas. O ouro que é ouro, da alquimia à química, do coração à doença, da doença ao quase-triunfo, do quase-triunfo ao éter, do éter à terra, da terra à lama, da lama ao verdadeiro triunfo, do verdadeiro triunfo ao verdadeiro entendimento da vida – o conhecimento do vazio, o entendimento que, naquelas mesmas camas de hospital, após tocar O Nada, é sabido que não há nada depois da vida, do sucesso, do egoísmo ou das vitórias destas inúteis e desprezíveis guerras; nada além de nada; nada além da simples-vida, nada além da apenas-vida, nada além do simples-agora, nada além do mero e todo este “nada”, nada além do Tempo, da Morte e da Queda. Nada além da mera compreensão de que o triunfo, a vitória sobre os outros, o desprezo sobre mortos amantes e esquecíveis amores, nada disso vale senão compreendido com resiliência, sabedoria e humildade.
A lama e a ruína não valem de nada caso não sejam abraçados, nadados, mergulhados, inspirados, absorvidos, doídos, aprendidos, consumidos ou transmutados em ouro, em benditas verdades, em passageiros amores de poucos meses em detrimento da falsa promessa dos amores eternos que duraram anos em seus fervorosos alardes e fervorosos holofotes – a lama e a ruína não valerão de nada caso limitem-se em suma a essas salobras insânias.
Há de se retirar algo de todas estas coisas fadadas a ruírem: uma noite de amor, um encontro casual cosmologicamente predeterminado pelo relógio, pelas estrelas tão silenciosas, pelos astros tão inativos. Há de se viver a partir do fracasso, há de se reconhecer os verdadeiros ímpetos e agradecer, a quem quer que seja, pelo sutil fato de não ser como aqueles sujeitos odiosos, sem talento, gananciosos, abusivos, inteiramente sem compaixão ou inteiramente sem ódio, sem maldade ou sem animalidade. Há de se agradecer, sobretudo, pela dádiva humana de ser humano: falho ou falha, corruptível, hipócrita e por vezes descontrolado ou descontrolada. Há de se agradecer pela insanidade, pela loucura que corre por essas veias e pelas tecituras que sobem esôfago, garganta, língua e papel – necessariamente nesta exata ordem. Há de se agradecer pelos erros, pelos inúmeros erros e pela sentença em infernos muito particulares – sejam eles exames médicos ou tenham eles belos cabelos e olhos castanhos. Há de se agradecer pela dádiva do tropeço, pela oportunidade de cair, falhar, falhar, falhar e sorrir, pois adiante surgirá um sentido, a estranha e desconexa estrada de tijolos cinzentos que levará ao conforto de um abraço ou à realização de outrora e pessoais utopias – agora, finalmente, prazerosas realidades.
Há de se sorrir. Há de se tecer comicidades e escárnios enquanto estas fúlgidas faces estiverem estilhaçadas no azulejo da piscina – a piscina vazia, aquela do salto. Há de se fazer alguma coisa, qualquer coisa, com todas estas tragédias – encontrar um sentido, um ponto provisório-final. Há de se criar pérolas a partir de conchas tristes e calejadas.
Pois não basta apenas o triunfo – se meramente iluminado e gritado aos olhos e ouvidos do mundo por cobiça, por luxúria, por orgulho, por deleite e por egocentrismo, então de nada valerá.
A lama, substância tão vital da qual tantos fogem, nada é, para os tolos (os verdadeiramente bobos e tolos) apenas mero alvo para atirar os inimigos, para denegri-los.
A verdadeira derrota – a tão sagrada lama, se devida e corretamente encarada –, a mais importante delas, será supremo instrumento de apreensão de cinzas, sentido, vigor, crescimento e renascimento.
A ruína será então a melhor coisa que acontecerá aos perdedores, aos artistas, aos mineradores que encontram ouro, porém não o estampam ao mundo, não o comercializam, não o penduram aos holofotes, porém sim o guardam, apreciam-no, acolhem-no e o transmutam.
A ruína, para alguns, não é o ponto final.
A ruína, para alguns, é tudo.
  


13 de junho de 2019

O mesmo cheiro do cigarro




Ela detestava os vestígios invisíveis e impalpáveis que o cigarro deixava – o aroma, o fedor. De tudo, o cheiro era o que mais a incomodava em meio a todo o resto – ficaria, facilmente, ao lado de um fumante sem que assim se incomodasse, desde que houvesse a certeza de que o fedor da nicotina não a parasitasse para o resto do dia. Desde que não fosse entre seus dedos médio e indicador da esguia mão direita, desde que não ficasse nas roupas, nas dobras das mangas ou em todo o tecido dos peitos, dos ombros ou das costas; desde que não ficasse em seus cabelos, desde que não permanecesse no suor do pescoço, das axilas ou até na bolsa. Desde que não partisse dela, para ela ou por causa dela, estaria ótimo.
Das vezes que recorria ao cigarro, as ocasiões eram justificáveis, pois se a perguntassem se fumava, ela responderia que não, que não era um vício, nem um hábito, fazia-o apenas quando estava triste – verdadeiramente triste.
Talvez o rosto não fosse lá dos melhores: para uma média municipal, não era de todo uma mulher feia nem tampouco extremamente linda. Aprendera, desde cedo, que como animais instintivos, os seres humanos – tanto machos quanto fêmeas, sobretudo as fêmeas – eram atraídos pelos aromas, não apenas aqueles liberados pelas glândulas sudoríparas ou pela sorte de todos os outros hormônios, mas pelos aromas artificiais, fossem Avon, Natura ou Boticário. Haveria aproximação e interesse maiores por parte de seus parceiros, homens ou mulheres, quando o aroma artificial assim fosse agradável, pois pessoas-não-lá-muito-bonitas precisavam compensar a pouca beleza através dos cheiros. Havia, é claro, uma porção de outros fatores, mas o olfato era de importância majoritária para ela.
A importância disso não estava, primeiramente, em atrair parceiros ou parceiras, mas em compensar o que lhe faltava (ou o que julgasse que faltava) para sentir-se satisfeita, ou pelo menos, feliz consigo mesma através de um fragmento de noção, através de uma fresta de satisfação ou o que quer que fosse de amor próprio para com o própria rubor de epiderme macia e rabiscada nos pulsos, na batata direita da perna, em partes dos ombros e no pescoço – uma milenar frase tântrica, uma runa de proteção, robôs depressivos de sagas britânicas, protagonistas ultraviolentos de obras ultraviolentas e um vestígio dos amores da adolescência, respectivamente, todos em cores negras tatuados na pele alva.   
Por isso, das raras e ralas cousas que a agradavam em si própria, o cheiro era uma delas, senão a principal: o perfume artificial que impregnado na pele depois de um dia inteiro de trabalho, rotina e suor, misturava-se ao seu aroma natural, ao seu aroma anímico de mulher agora adulta, agora solitária, agora com qualquer coisa que para ela fosse prioridade para não permitir-se mergulhar nas amarguras da vida ou nas incongruências do destino que todos os velhos avós e não-tão-sábios-assim-pais-e-mães um dia ousaram-na profetizar. O aroma era a prioridade, um mimo; fator relevante de cuidado e de atenção, fator importantíssimo e derradeiramente indissociável daquilo e daquela que era: feder a suor humano (exceto quando partilhava o empenho dos lençóis com um ou uma amante), feder a desleixo da vaidade aromal... feder, de modo geral, era para ela sacrilégio com cada divindade que residia dentro de si; era heresia, era descumprimento de um capricho mais que mero e superficial, obrigatório.
Entretanto, agora (e nestes últimos dias inteiros) fumava um cigarro – permitia que o fedor da nicotina sondasse todo o seu corpo a cada baforada de danosa fumaça, a cada tragada que permitia um cessar fogo nos pensamentos tão atômicos, angustiantes e explosivos, pois conseguia pensar ou, mais que isso: conseguia não pensar, conseguia uma pausa, um distanciamento do mundo que a perseguia e que tantos insistiam afirmar ser característica permanente e factual de sua configuração astrológica, da qual nadava em outras águas em busca de abstração, distração, refúgio, porém que os mais sábios sabiam (oh, sim),mui  bem sabiam, não passar da mais pura covardia de esconder-se dos problemas e dos demônios que trancafiava na própria mente, na própria memória e no peito que acelerava vez ou outra – fosse pelo que quer que fosse.
Há duas semanas, foram poucos – um único Lucky azul por dia para permitir que respirasse. Há dois dias, no entanto, fora uma carteira inteira de Marlboro pois este, sim, era mais forte e a levava para o silêncio no meio do turbilhão do intervalo do trabalho ou entre as aulas – a fumaça era mais pesada, e embora detestasse o cheiro que nela se afixava, o aroma podre de nicotina que ela tanto se incomodava agora tornava-se quase parte dela, o cheiro fixo destes dias fixos de... de... de o quê mesmo?
Ela sabia?
Ela não sabia?
Ou apenas não queria dar-se ao trabalho de pronunciar?
Quem sabe até pudesse se acostumar com o cheiro – as senhoras da turma, à noite, que dividiam conversas passageiras e rápidos trabalhos de classe, vinham (quase) se acostumando com seu hábito do cigarro; a princípio, julgaram pecado mortal e surpreenderam-se, pois não sabiam que ela fumava. E quando perguntavam “Desde quando tu fumas?”, insinuando tons de vozes de senhoras que julgavam-se superiores pelo simples fato de nunca terem tocado num cigarro ou por frequentarem semanalmente a casa do Senhor, falando como se não fosse a mulher à beira dos trinta, mas uma garotinha que precisava ser ralhada por desconhecidas, ela simplesmente respondia:
– Só quando estou triste.
E encerrava-se aí o assunto.
O que não sabiam, na verdade, é que tristezas como aquela eram extremamente raras de ocorrer: a primeira fora há quase quatorze anos, mas não havia cigarros nem interesse em cigarros naquela época, apenas a boa e velha literatura e canções tristes (“literatura também é saúde”, dissera-lhe a jovem e sábia professora ao apresentá-la Uma faca só lâmina, de João Cabral de Melo Neto). À época, a literatura, tanto lida quanto escrita, juntamente com as músicas de graves melódicos e blues intensos, foram solução, foram válvula de escape e de saída, foram salvação e remédio, tratamento. Mas da vez seguinte, oito anos atrás, nos intensos mergulhos no álcool e nas primeiras e intensas carteiras de cigarro, a coisa mudou de urgência, talvez porque as dores também mudaram de intensidade – quanto maior o golpe, maior deveria ser o salto na piscina vazia, maior a necessidade do baque. E pouco tempo depois, graças ao álcool e aos mesmos cigarros que hoje fumava de novo, conheceu a salvação e sua conseguinte ruína – a mais bela de todas elas.
Ressignificou, aí, o cheiro da nicotina: a primeira vez em que o fedor deixou de ser fedor, a vez em que ele passou a ser lembrança afável, voz veluda, sonho suado de palpitar amargo – porém inteiramente valoroso, inteiramente digno do que quer que viesse a seguir: risos ou choros, lágrimas ou gozos –, foi a vez que sentiu-se mais viva em todos os seus anos e a vez em que não viu no cheiro da nicotina um aroma desprezível, mas um lugar de retorno – pois vinha com ele um corpo com dedos de unhas não tão cuidadas assim, nunca pintadas, nunca cerradas, talvez até ruídas, mas que eram mais leves que as suas e intensamente a acariciavam, que frequentemente a tocavam o meio das pernas e faziam dele jorrar cachoeiras de espasmos; um corpo com cabelos não tão longos quanto os seus, talvez mais claros dependendo da direção em que neles o sol incidisse e com tantas outras tatuagens pelos braços, pernas e costas;  um corpo que vinha ao encontro dela sempre aos sábados e às terças, sempre nas folgas, e que varava madrugadas ao seu lado discutindo filmes de conclusões esquisitas e séries distópicas com base em um mundo não tão distópico assim; um corpo para o qual pediu, na primeira vez, “faz amor comigo?”, ao invés de simplesmente pular sobre ele em uma foda fenomenal; um corpo que, diante desse pedido, derradeiramente sorriu e a aceitou, igualmente entregando-se não à foda corriqueira, mas ao amor epifânico; um corpo que, assim como todos os outros anteriores ou todos os outros vindouros, partiu ou foi deixado, abandonou ou foi negligenciado, em suma amado, talvez traído.
Um corpo que tantas vezes tinha o mesmo cheiro do cigarro – não o que ela detestava e que impregnava à sua pele enquanto tragava e expulsava de garganta, traqueias, pulmões ou veias.
Um corpo que tantas vezes tinha o mesmo cheiro do cigarro – aquele ao qual estaria disposta a voltar, fosse em uma fugidia aspiração onírica, fosse em um só trago nos dias tristes, em casa, nos intervalos da aula ou depois do trabalho.



8 de junho de 2019

As coisas pequenas são mais fáceis de entrar







Sofia era jovem quando veio até mim. Era pisciana, alguns vários anos mais nova que eu e tinha uma bunda do tamanho do mundo.
O modo como aquele tipo de pessoa vem aconchegar-se ao seu lado é sempre tão misterioso: porque você, sendo um estabelecimento chinfrim de beira de estrada, sem muito a oferecer, com pouquíssimas vagas no estacionamento, nunca compreenderá o que leva certas visitas e certas manobras de calhambeques daquele tipo a estacionarem em você e decidirem ficar.
Ela ficou. Contradizendo décadas de experiências frustradas com tipos daquele tipo (mas acima de tudo enriquecedoras e construtoras de caráter). Quero dizer, o colegial fora para mim um inferno, uma selva de macacos selvagens portadores das mais agressivas e corrosivas doenças neurológicas. Eram Bonobos, aqueles primatas da África Central que resolvem tudo à base da fricção: esfregam-se uns nos outros, sempre excitados e dispostos a cometerem relações sexuais com quem quer que fosse – irmãos e irmãs, filhos e filhas, cônjuges, primos e primas, pastores da universal ou terraplanistas. Qualquer que fosse o parceiro, desde o mais avançado ao mais mongol, os Bonobos estavam sempre preparados para uma friccionada.
Acontece que o colegial era um mar deles: rapazotes de cabelos bem arrumados, uniforme impecável e relógios que mudavam de cor nos pulsos, escalados pelos times de basquete ou de futebol e sempre à procura das boas moças tão impecavelmente maquiadas que andavam em grupos e de braços entrelaçados, umas com as outras, desfilando pelos corredores e pelas ruas com cabelos esplêndidos, com gostos refinados e majoritariamente autodenominando seu próprio grupo de amigas com algum apelido deveras criativo: Meninas Atentadas, As Valquírias, As Maldosas, As Escamosas, As Irmãs, As Maudites Suffragettes etc, etc, etc. O resto era apenas um nicho composto de pessoas que você mal conseguiria lembrar o nome, todos aqueles que não faziam parte do bando dos Bonobos, as pessoas normais, os sujeitos e sujeitas comuns que, um dia, talvez, você perceberia que teriam sido uma bela companhia durante aqueles dias de penitência existencial caso os chimpanzés-friccionistas, com seus pulos, com seus gritos e com seus quadris roçadores não estivessem ocupados demais deixando-os acuados e esquecidos em algum canto da instituição.
Tais relações sexuais entre os chimpanzés-pigmeus eram frequentes, diárias, semanais e sempre tão rigorosamente avaliativas: um parceiro ou uma parceira sempre recebia uma nota ao final do coito, cuja qual tornar-se-ia pública já na manhã seguinte. Caso você fosse macho, havia um critério muito específico e especial ao qual estaria fadado a ser avaliado, aquele do qual todos os garanhões da macacada acotovelavam-se para receber as devidas notas: o tamanho do manjolo, o certificado de prolongamento, o RG – Registro Grandão –, o tamanho do documento etc, etc. O critério era um show à parte e as informações sempre vinham a público, fizesse ou não você parte do nicho.
Então se você fosse um animal que não possuísse um RG tão bom, digno das melhores notas e avaliações das fêmeas-bonobo, sua reputação estaria fadada a piadas por três razões muito óbvias:
1. Bonobos-machos que tinham manjolos pequenos e que submetiam-se à avaliação estavam loucos demais para friccionarem-se apesar dos comentários, ou não tinham consciência da destruição à qual renegariam suas reputações;
2. Todos os indivíduos machos que não se submetiam à avaliação, porque não eram Bonobos, porque eram Bonobos do tipo não-louco-por-fricção, com certeza possuíam um RG pequeno, e a não predisposição voluntária à avaliação tornava claro a todos os outros (machos e fêmeas Bonobos) que você não possuía um manjolo lá dos maiores e, portanto, era inseguro quanto ao ato do coito e nascera para ser uma piada – sim, a culpa era sua;
3. Por fim e mais importante: fosse Bonobo ou não, fosse desse ou de outro nicho zoológico, você precisaria aceitar que sempre seria avaliado e alvo de piadas graças ao seu baixo e mixuruco RG, pois a vida é assim, macacada!
Ter consciência dessa condição corporal e social, de um RG tão irrisório, definia de certa forma um impecável caráter para as vindouras relações em sociedade, fosse a vida de chimpanzés-pigmeus, fosse a vida de outros bichos.
E por isso era sempre estranho quando um tipo como o de Sofia estacionava em minha porta e decidia ficar – você tentava se convencer de que talvez fosse pela jovem idade, de que, tão imatura e empolgada pelas aventuras da vida, houvesse ela enxergado em você um parceiro em potencial digno de compreensão e de companheirismo. Talvez fossem suas piadas. Talvez fosse sua consciência de possuir um RG tão abaixo da média e ainda assim garantir ao prazer dela certos confortos e certos truques que a maioria não domava tão bem – você aprendia a se virar com as outras partes do corpo e tocar os lugares certos. Ou talvez fosse algo mais que você não soubesse. Mas uma coisa era certa: se uma fêmea-bonobo daquele porte, com longos cabelos longos e com um corpo de ninfa clássica já aos vinte, em detrimento e em companhia de você e de seu corpo tão ralo já na praia dos trinta, estivesse ao seu lado por seus dotes humorísticos ou de personalidade, e não pela impecável beleza da qual não dispunha ou pelo manjolo que não era clássico, galante e gigante e veiúdo como dos outros machos, então algo haveria de ser verdade – no mínimo. Talvez as fêmeas-bonobo realmente possuíssem coração. Talvez nem todas fossem iguais como os bandos da sociedade levaram-me a crer.  
Sofia, vinte anos e do signo de Peixes, com uma bunda do tamanho do mundo que confortava toda minha cara desfigurada quando nela decidia sentar (ou quando assim eu pedia), estava ali em meu estacionamento, dizendo palavras sinceras e jurando lealdade, jurando fidelidade e amor e todas as outras coisas que você não espera receber de tipos como aquele. Então não haveria de ser outra coisa a não ser a mais pura verdade.
Alguns meses depois de muita estadia e de companheirismo e de truques e de calores e de gritos, Sofia veio a mim com a tão ousada proposta que esclareceu, em certo aspecto, algumas de suas razões de estar por ali ao meu lado:
– Quero que você coloque na minha bunda.
– Colocar o quê?
– O seu RG. Quero que coloque o seu RG na minha bunda. Eu te amo e nunca dei ela pra ninguém. Quero dar pra você, quero que você coloque tudinho porque eu te amo.
Foi desta maneira que resignificamos atos meramente bonobais sob a nova e universal ótica do amor: com carinho, com zelo, com paixão e compreensão. O único entrave, no entanto, era o tamanho colossal da bunda de Sofia. Era maior do que todas as outras pelas quais eu já havia passado – pequenas, inexistentes, medianas e até algumas grandes, mas nenhuma delas tão gigantesca como aquela. Às vezes, a obra de arte chegava a me amedrontar e constantemente era fruto de dores de cabeça, pois nem mesmos os outros homens de minha família eram imunes a ela: olhavam-na com indiscrição e encaravam-me como incapaz do serviço, sempre com piadinhas aqui e risadinhas ali, palmadinhas no ombro e frases como: “que cara sortudo”, “que orgulho”, “isso aí, hein, filhão?”. Em suma, os genes bonobais estavam impregnados na maioria dos sujeitos de nossa sociedade, um certo hibridismo genético que compelia sobretudo os indivíduos do sexo masculino das mais diferentes espécies, raças, crenças ou ideologias – todos afogados no mais roçador instinto dos saltos, descontroles, línguas tendenciosas e dados a comentários nunca medidos, nunca planejados, nunca discretos e sempre tão animadinhos.
Sofia nunca escutava aqueles comentários, estava sempre tão distante e imune à compreensão daqueles olhares ou tons de vozes, fato que nos aliviava das situações. Vez ou outra, quando percebia certo incômodo vindo de mim (do qual eu nunca reclamava ou nunca de fato revelava), ela me acariciava os ombros e dizia para irmos embora, pois estava comigo e seja lá o que houvesse acontecido, tudo passaria. Então nós partíamos e ela nunca, nunquinha percebia os olhares animalescos e carnais em cima de suas pitorescas nádegas celestiais.
Nossos problemas com a gestão do ato vieram logo após o convite: o traseiro de minha amada Sofia era muito grande, mas mais que isso, o problema não era de fato esse, mas a combinação de uma gigantesca bunda com tão minúsculo RG. Usávamos todos os tipos de lubrificantes possíveis, dos mais vastos aromas e sabores, das mentoladas, das frutas cítricas às vermelhas até à boa e velha saliva, mas a entrada no recinto era sempre prejudicada por um fator de suma simples: a curta extensão de meu documento.
Sofia ficava com as mãozinhas e o rostinho afundados nos travesseiros, o a face meio vacilante e temerosa devido a dor, mas esperando amorosamente o momento de entrada. A imensa bunda arrebitada para cima, aberta e chamando-me; a pele lisa, magnífica e reluzente graças aos produtores-beneficiadores-de-recepção-anal para facilitarem minha entrada, mas era tão difícil! O problema era que a cabeça de meu instrumento ficava perto demais da base dele, sobrando-me minúsculos centímetros de espaço para colocar as mãos e apoiá-lo, o que facilitaria o sucesso na pontaria e na precisão do alvo. O problema foi recorrente nas primeiras vezes, e foi inevitável não imaginar a pouca ou inexistente dificuldade que os Bonobos monstruosos espalhados por nossa sociedade deviam possuir, pois a cabeça de seus instrumentos era separada por centímetros de distância da base, onde seguravam com segurança, rijos e prontos para o ataque, acertando com precisão o tão almejado alvo.
O meu, no entanto, pelo pouco comprimento, tornava toda a tarefa complicada: quando a ponta da arma estava prestes a entrar, eu aplicava medida e carinhosa força de encaixe, mas tudo era frustrado porque o espaço (tão irrisório) entre cabeça e base comprimia-se, tornando-se um só espaço achatado, apesar de rijo, e consequentemente dificultando o ato.
– É difícil isso aqui, Sofia.
– Tenta mais um pouquinho – e ela geralmente dizia isso gastando mais um bocado de loção deslizante. – Vai, tenta mais um pouquinho, meu amor.
– Ok.
E eu tentava. Mudávamos a posição, esticávamos joelhos, respirávamos e nos acariciávamos de novo para que a vontade não amornasse. E então ela empinava sua colossal bunda para cima e dizia:
– Enfia tudinho na minha bunda, meu amor.
– Tudinho?
– Tudiiiinho.
O diminutivo era a pior escolha lexical para tal ocasião, especificamente para minha anatômica situação. Mas ela não fazia por mal e eu relevava sua compreensão e vontade máximas de insistir no desejo.
Mais algumas tentativas frustradas (aquela já devia ser a terceira ou quarta noite de tentativa), mais lubrificantes de cereja, de limão e de chocolate depois, muita saliva e muita força de vontade também, a cabeça de meu instrumento finalmente penetrou-a com carinho e com amor. A princípio vagarosamente, regulando sempre a intensidade da entrada de acordo com os gemidos que ela soltava – se eram mais próximos à dor, eu maneirava; se eram mais próximos ao prazer, intercalados por murmúrios de “vai, vai, vai, amorzinho”, então eu continuava.
Com o meu pequeno RG (todinho) dentro de Sofia, a sequência de movimentos foi mais fácil. E mesmo quando a intensidade era maior e ele acabava escapulindo para fora (o que era frequente de acontecer, pois era ele mixuruca demais, apesar de duro como o capeta, e quaisquer movimentos mais longos no retrocesso faziam-no sair da bunda dela). Colocá-lo de volta foi mais fácil, pois a santa e redundante eulogia do espaço que era seu orifício anal aparentava estar mais receptivo e aberto para minha estadia, muito diferente do primeiro contato, sempre tão ríspido e resistente.
Assim, maneirando nos movimentos de retrocesso e intensificando nos movimentos de entrada, tornando-os mais fortes proporcionalmente aos gemidos prazerosos de Sofia, continuamos pela noite inteira. Mudamos até de posição – ora com a bunda maravilhosa arrebitada para cima, ora com ela deitada de costas e com as pernas torneadas abertas como um belo frango assado na mesa de família para louvar o nascimento do menininho Jesus, ora em cima de mim, acocada e ignorando a dor (que, sinceramente, não sei se de fato sentia devido ao meu patético tamanho). De um jeito ou de outro, Sofia parecia satisfeita, e se assim ela estava, eu três vezes mais estaria também.
Ela gritava:
– Ai, ui, ui, ui, caralho. Ai, amor. Ai, ai, ai, ui. Isso, assim. Coloca tudinho...
“Tudinho”.
– Coloca tudo em mim. Assim. É. Assiiiiim. Ui, ui, ui...
Melhorou.
– Coloca tuuuudo.
“Tudo” é bom.
– Tudinho meu amor. Tudinho em mim, isso. Ai, ai, ai. Ui, ui...
“Tudinho” não.
– Tudiiinho.
“Tudinho” é mal.
– Ui, ui, ui. Tuuuudo!
“Tudo” é sempre melhor.
– Ui, ui, uiii. Tudinho, ui, ui...
Diminutivos não. Diminutivos são...
– Tudiiiiiiinho...
...maus, muito maus.
– Eu te aaaaaamo.
Quando terminamos e preenchi seu interior com toda minha forma fluida e fértil de amor, atenção e suporte, ela virou para mim com o rosto num misto de dor e prazer e beijou-me. Disse-me que só faria aquilo comigo e que só havia feito comigo e que fora incrível.
Repetia várias vezes:
– Foi incrível, meu amor. Eu te amo.
– Eu também te amo.
Assim desmistificou-se (ou desmistifiquei) a bunda de Sofia que era tão grande e linda e redonda e bela quanto o mundo. Assim voltei lá em várias e várias ocasiões, às vezes com as mesmas dificuldades iniciais (a cabeça tão próxima da base era algo que sempre traria problemas), às vezes muito mais fáceis de se lidar, pois quanto mais me conhecia, mais a bunda de minha amada tornava-se uma boa anfitriã acostumada com minha presença.
Então os meses e os anos vieram, e com eles o resfriamento inevitável de todas as relações humanas. Sofia disse-me insistentemente que não queria partir e que estava disposta a buscar soluções que nos mantivessem presos um ao outro, mas o cansaço e o desgaste (não apenas o anal) eram destino implacável, irrefreável. Despedimo-nos de maneira amigável e nos amamos pela última vez com o que quer que restasse do sentimento que tanto dedicamos um ao outro. No fim de tudo, não éramos como eram todas as fêmeas-bonobo e todos os machos-bonobo. Ela, acima de tudo, não era como a imagem que tão erroneamente eu construíra ao longo da vida. Sofia me fez acreditar através de todo o seu amor e sua fidelidade e sua sinceridade que, ao menos para ela, eu pude ser único para alguém, apesar do RG.
Alguns anos depois, em uma mesa no aniversário de Laís, filha de meu primo Carlos, com sujeitos desconhecidos e baforentos e familiares Bonobos (todos Bonobos, diga-se de passagem), um do sujeito do qual eu não sabia o nome bateu na mesa com punhos fechados e sorriso triunfante de bebum no rosto:
– Agora eu tenho que contar uma pra vocês – ele disse –, deem uma olhada nessa belezinha aqui.
E mostrou uma foto no celular para todos da mesa, esbanjando-a como o troféu da Liga de Pelada do bairro.
– Eu tô pegando esse filézinho aqui, ó – fez um sinal de “ok” com a mão direita e todos assentiram, alguns boquiabertos, outros descrentes. O celular rodou por muitas mãos antes de chegar até mim, mas não quis pegá-lo. Do jeito bonobal como o sujeito agia, eu não o pegaria nem se não conhecesse o “filézinho” da foto. Infelizmente, era Sofia. Clara e nitidamente, Sofia. Meus tios e primos sorriam, meio sacanas, meio desconcertados. 
– Acho que meu sobrinho aqui tem propriedade pra falar disso aí, né, filhão? – Tio Cláudio, um velho barrigudo e desdentado que sofria com problemas de ereção e sonhava em ter uma arma de fogo de baixo do travesseiro (para compensar algum tipo de carência, presumo) bateu em meus ombros com o mesmo tom de voz e com o mesmo olhar que, anos depois, não mudara em nada.
O filho dele, primo Carlos, acompanhou-o de imediato:
– Isso daí é uma bandida de primeira.
Tio Cláudio deu-lhe um pontapé.
Os outros riram.
Algum deles disse “foda-se”.
Outro disse “É, foda-se!”.
– Que porra que vocês estão falando? – Questionei, voltando-me sobretudo ao primo cuzão.
– Bandida pra cacete. Quando tava contigo, a gente olhava praquele rabão e ela se fingia de desentendida, isso quando não ria nas tuas costas e dava mole pra todo mundo.
– Tá ficando doido, porra? – Levantei da cadeira.
– Ela se fazia de desentendida, mas adorava um elogiozinho.
– Ela só é pisciana, filho da puta!!
– Ela gostava, isso sim.
Saltei da cadeira. Tio Cláudio pôs-se no meio de nós dois.
– Cala a boca, Carlos.
Primo Carlos sorriu e continuou:
– Não fica puto, primo. Isso já passou, não tem mais nada a ver, né? E aliás, todo mundo sabia como ela era, tu devias saber também, né? Né? Hehehe.
Avancei um passo.
Tio Cláudio me segurou pelos ombros.
– Vai com calma, filhão.
E o primeiro sujeito, o do celular, abriu os braços e bradou:
– Vão brigar por causa de mulher, porra? Que é isso? Esse rabo é grande e vale a pena, mas vocês são parentes. Família é tudo, porra!
– Família é tudo! – Primo Carlos disse.
– Graças a Deus – piscou-me tio Cláudio. – Não esquece que família é tudo.
– O importante é que tu pegaste esse avião aqui, não pegou, amigão? – Continuou o sujeito do celular que agora mexia-se como um Bonobo. “Bonobo do Celular” foi como passei a chamá-lo. – Senta aí e sossega esse ânimo, parceiro. Agora, deixa eu contar...
Tio Cláudio fez com que eu me sentasse de volta. Primo Carlos não voltou a me encarar nos olhos, porém de propósito, desdenhoso, pois o olhar de Bonobo líder do bando estava triunfante.
Família é tudo.
– Sabe qual é a boa? – Insistiu o Bonobo do Celular com sorriso estridente. – Tão vendo essa rabeta aqui? Ela disse que nunca deu pra ninguém. E sinceramente, do jeito que deu pra mim? Do jeito que fez aquilo, camaradas...? Ah, rapaz... Ah... Com certeza ela nunca deu mesmo. Uma maravilha só.
Primo Carlos riu:
– Hehehehe.
– Estraçalhei a moleca inteirinha com o tamanho do meu monstrão. Deixei a menina mofina.
– Hehehehe.
Todos vibravam de rir.
Tio Cláudio prendeu um riso, não fez a menor questão de impedir reações animadas. Assim como ele, todos os outros assentiram com a cabeça, duvidosos ou invejosos.
– Posso ver a foto? – Pedi ao Bonobo do Celular.
– Tu já passaste por aí também, parceiro?
E entregou-me.
Era a boa e velha e tão linda Sofia, com seu sorriso largo e com aspectos mais marcantes de mulher adulta. Não era mais uma jovem recém-saída da adolescência. Estava tão linda quanto anos atrás.
– E ela te deu? Ela deu esse rabo aí? – Carlos instigou-o a continuar, jogando lenha na fogueira que era a língua e voz baforentas daquele picareta exibido e desgraçado.
O celular ainda estava em minhas mãos quando o dono dele respondeu, fez um gesto de balanço com as mãos, estalando os dedos e sinalizando dever cumprindo.
– Ora se não!? Estraçalhei.
Todos riram. Até tio Cláudio riu.
Era aniversário de três anos de Laís, filha de primo Carlos, então crianças corriam e gritavam ao nosso redor e todos confraternizavam com risadas e piadas. Apenas naquela mesa, talvez pelas várias cervejas, talvez pelo instinto animalesco e gorgolejante de Bonobos quando unidos, a conversa tomava qualquer outro rumo destoante de festas de aniversário e rodas civilizadas de animais civilizados.
Ali, os Bonobos berravam e provavam o porquê eram o que eram.
O celular ainda estava em minhas mãos.
– Assim que se faz, mano – gargalhou primo Carlos. – Esse rabo aí é grande demais pra ser de um só. Todo mundo tem que tirar uma lasquinha.
– É.
– Isso!
– É, isso aí!
Concordaram os outros.
Olhei para a foto. Sofia parecia feliz com aquele sorriso, parecia estar bem. E ainda estava linda. Era o que importava. Admirei-a uma última vez antes de respirar fundo, quase aparentemente apaziguado. O Bonobo do Celular disse que havia dezenas de fotos dela, “toda perfeitinha e peladinha”, e assegurou a todos que as mostraria para o resto de nós. Então pediu-me o celular de volta, ressaltando:
– Sem ressentimentos, cara. Já passou e não tem nada a ver, né?
– Pois é, não tem nada a ver – Tio Cláudio continuou dando-me tapinhas em meu ombro.
– É – concordou primo Carlos –, tu já passaste por aí também, bora aproveitar e passa logo esse celular que é. Bora ver as fotos aí, primo. Compartilha o pão.
Continuaram os outros:
– É!
– Isso aí.
– Passa aí.
Abri um sorriso e igualmente assenti. Segurei o celular firme na mão e o devolvi ao seu dono Bonobo, mas ao invés de apenas entregá-lo, arremessei-o direto e no meio do nariz como um pequeno meteorito num grande mar de bosta entulhada. Um rio de sangue jorrou e o sujeito caiu para trás, quebrando uma das pernas da cadeira de plástico. Algumas pessoas gritaram, crianças choraram e a música parou.
Tio Cláudio tentou me segurar, mas já era tarde. Àquela altura, minhas mãos já estavam no colarinho de primo Carlos e o bico do meu sapato acertando-o entre as bolas. O manjolo do primo, notei, era gigante e volumoso – um verdadeiro Bonobo bemdotado. Se as coisas pequenas eram mais fáceis de entrar, então as grandes eram mais fáceis de acertar.
E eu acertei.
Família era tudo.