Para T. e J.
21.06.2018
21.06.2018
Acumulei culpas e penso agora em
antigos amigos. São leprosos em minha cabeça, mas não possuo temor de caminhar
entre eles, não possuo o terror dos dedos inchados, das juntas consumidas ou
das faces apodrecidas.
Acumulei culpas e desses mortos pesam-me
até mesmo os que não me foram amigos, porém que, em algum grau, foram-me
ternos, carinhosos ou dissimulados colegas – seja de aprendizado, de lábios ou
de pena. Ah, os de pena? São a eles que escrevo agora: aos que delatei, pois o
mundo, tão violento, disse-me para delatar, no mínimo apedrejar.
Peço perdão por aqui, e somente por
aqui. Pois não quero, de fato, ter de pedir perdão ou correr o risco de ser
perdoado. É por isso que a cada erro cometido e a cada tiro efetuado viro as
costas, envergonhado, imaturo e inconstante demais para pedir desculpas, para
mostrar o quanto errei ou o quanto devo me reparar – cada pedido de perdão proferido é um tijolo a menos em uma casa
prestes, lentamente, a desabar. E igualmente parto da posição filosófica de
que desculpas para erros fatais são apenas
palavras. Por isso culpo-me e afogo-me na escolha do martírio, pois sei que
apenas a sádica e nada saudável escolha de punição é o único caminho a seguir.
Penitência através de culpa longa e
insana é o castigo para os pecadores.
Já das amizades ainda não infectadas,
aquelas que permanecem ao meu lado, imunes da doença, escuto com frequência o
conselho para cessar a punição, para cessar a ânsia por martírio eterno, pois não
sou desmedido Atlas responsável pelo
mundo - é necessário admitir erros e prosseguir os corrigindo, não açoitando-me
as costas ante a Cruz.
Mas aos antigos amigos, que nunca me
foram amigos de verdade, que nunca possuíram empatia pelas almas que beijaram,
que extorquiram, que chutaram, que empurraram, que humilharam, que
enlouqueceram e que profanaram, peço perdão apenas por atirar a pedra sem
previamente avisar.
E nada mais.
Se há aqui qualquer arrependimento, é
o de não ter agradecido pela recepção, pela hospitalidade e pelas breves
parcerias que me ajudaram, em alguma instância, a fortalecer os voos tão
previamente marcados. Por esses motivos, e por eles apenas, que fique exposto o
meu senso de culpa (pois atirei a mesma pedra que um dia me atiraram, embora
por crimes diferentes em intenção, em intensidade, em meticulosidade, em
repetição, em vilania e em loucura).
Mas que fique por aí.
Que tudo fique por aí.
E que baste.
Benevolência é, em dado nível,
espécie de maldição atroz, incalculável heresia. Possuir empatia mesmo pelos
culpados é erro irreparável neste mundo de homens e de mulheres. Por isso lavo as
mãos e contribuo com o que estiver ao meu alcance, não alimento omissão (assim
o tenho feito há tempo demais) e não alimento mais complacência (assim o tenho
feito desde ontem, mui ontem). Não mais complacência: foi o que extraí
de minha penitência. Sem mais sorrisos educados, sem mais vínculos artísticos,
espirituais ou meramente polidos daqui em diante.
Das culpas que carregarei a seguir,
da escamosa penitência da qual alimento com ratos no aquário guardado em
cabeceira, esfolo-me apenas pelas atuais amizades que aqui permanecem e das
quais falhei em proteger e justiçar, ou pelos antigos e dissimulados companheiros
que tão passiva e agressivamente mirei como o mundo me impeliu a apedrejar.
Portanto, e por tudo, peço perdão, mas
não diretamente, pois não quero, realmente, correr o risco de ser perdoado; por
isso ao mundo espalho estas palavras, porque estampá-las ao ar significa uma
clara espécie de nova penitência; significa, também, uma clara forma de admitir
que não cabe a mim apedrejar nem mesmo ao mais imundo dos homens nem à mais
venenosa das mulheres. O que cabe a mim, e somente a mim, é dançar com meus
próprios demônios e lidar com cada uma das pedras que certamente haverei ainda
de acolher, apalpar e segurar, porém escolher não lançar - que isso faça o
mundo!
Pois estou severamente cansado de
meus autoinfligidos açoites – deste cilício em volta do pescoço.
E porque estou, decerto,
estupidamente cansado de ser réu-e-juiz em tempos de guerra.