30 de julho de 2019

Cilicium






Para T. e J.
21.06.2018

Acumulei culpas e penso agora em antigos amigos. São leprosos em minha cabeça, mas não possuo temor de caminhar entre eles, não possuo o terror dos dedos inchados, das juntas consumidas ou das faces apodrecidas.
Acumulei culpas e desses mortos pesam-me até mesmo os que não me foram amigos, porém que, em algum grau, foram-me ternos, carinhosos ou dissimulados colegas – seja de aprendizado, de lábios ou de pena. Ah, os de pena? São a eles que escrevo agora: aos que delatei, pois o mundo, tão violento, disse-me para delatar, no mínimo apedrejar.
Peço perdão por aqui, e somente por aqui. Pois não quero, de fato, ter de pedir perdão ou correr o risco de ser perdoado. É por isso que a cada erro cometido e a cada tiro efetuado viro as costas, envergonhado, imaturo e inconstante demais para pedir desculpas, para mostrar o quanto errei ou o quanto devo me reparar – cada pedido de perdão proferido é um tijolo a menos em uma casa prestes, lentamente, a desabar. E igualmente parto da posição filosófica de que desculpas para erros fatais são apenas palavras. Por isso culpo-me e afogo-me na escolha do martírio, pois sei que apenas a sádica e nada saudável escolha de punição é o único caminho a seguir.
Penitência através de culpa longa e insana é o castigo para os pecadores.
Já das amizades ainda não infectadas, aquelas que permanecem ao meu lado, imunes da doença, escuto com frequência o conselho para cessar a punição, para cessar a ânsia por martírio eterno, pois não sou desmedido Atlas  responsável pelo mundo - é necessário admitir erros e prosseguir os corrigindo, não açoitando-me as costas ante a Cruz.
Mas aos antigos amigos, que nunca me foram amigos de verdade, que nunca possuíram empatia pelas almas que beijaram, que extorquiram, que chutaram, que empurraram, que humilharam, que enlouqueceram e que profanaram, peço perdão apenas por atirar a pedra sem previamente avisar.
E nada mais.
Se há aqui qualquer arrependimento, é o de não ter agradecido pela recepção, pela hospitalidade e pelas breves parcerias que me ajudaram, em alguma instância, a fortalecer os voos tão previamente marcados. Por esses motivos, e por eles apenas, que fique exposto o meu senso de culpa (pois atirei a mesma pedra que um dia me atiraram, embora por crimes diferentes em intenção, em intensidade, em meticulosidade, em repetição, em vilania e em loucura).
Mas que fique por aí.
Que tudo fique por aí.
E que baste.
Benevolência é, em dado nível, espécie de maldição atroz, incalculável heresia. Possuir empatia mesmo pelos culpados é erro irreparável neste mundo de homens e de mulheres. Por isso lavo as mãos e contribuo com o que estiver ao meu alcance, não alimento omissão (assim o tenho feito há tempo demais) e não alimento mais complacência (assim o tenho feito desde ontem, mui ontem). Não mais complacência: foi o que extraí de minha penitência. Sem mais sorrisos educados, sem mais vínculos artísticos, espirituais ou meramente polidos daqui em diante.
Das culpas que carregarei a seguir, da escamosa penitência da qual alimento com ratos no aquário guardado em cabeceira, esfolo-me apenas pelas atuais amizades que aqui permanecem e das quais falhei em proteger e justiçar, ou pelos antigos e dissimulados companheiros que tão passiva e agressivamente mirei como o mundo me impeliu a apedrejar.
Portanto, e por tudo, peço perdão, mas não diretamente, pois não quero, realmente, correr o risco de ser perdoado; por isso ao mundo espalho estas palavras, porque estampá-las ao ar significa uma clara espécie de nova penitência; significa, também, uma clara forma de admitir que não cabe a mim apedrejar nem mesmo ao mais imundo dos homens nem à mais venenosa das mulheres. O que cabe a mim, e somente a mim, é dançar com meus próprios demônios e lidar com cada uma das pedras que certamente haverei ainda de acolher, apalpar e segurar, porém escolher não lançar - que isso faça o mundo!
Pois estou severamente cansado de meus autoinfligidos açoites – deste cilício em volta do pescoço.
E porque estou, decerto, estupidamente cansado de ser réu-e-juiz em tempos de guerra.



29 de julho de 2019

Le fleurs de la peau




As flores da pele
Brotam em terras
Longínquas de toque:
O tato fraqueja,
O cheiro não chega
Em olhos cansados.

As flores da pele
Florescem a dois
Palmos distantes:
Ontem vermelhos,
Em instantes tão tenros,
Já hoje de preto.

As flores da pele
Vestem névoa tod'alva
Entornada por cataratas
Correntes, tão mansas:
Lisuras de queda
Onde em sonhos descansa.

As flores da pele
Sob secreto segredo
De Baudelaire não
Sabido, de pobres
Lábios desconhecidos:
Distantes, distantes.




(Felipe Santiago)