20 de setembro de 2017

[Parte I] Primeiro o adeus,



Vou começar de trás pra frente:
Primeiro o adeus,
segundo, um frame
e por fim eu nem sei.
Vou escrever por três vezes e depois nada além de trechos, menções e aprendizados.
Eu não vou assistir E.T – O Extrarrestre da mesma maneira que antes, pois era o filme que passava na tv enquanto suas mãos deslizavam pelos meus cabelos. Eu tive de abaixar o volume e isso foi no início do filme, na parte da pizza, do primeiro contato.
Agora o governo já monta a base e todos aqueles corredores brancos aparecem quando suas mãos continuaram no meu cabelo, acariciando, fazendo um cafuné que eu gostaria de ter deslizado para as terras do sonhar, mas nem isso, Jordana. Nem isso.
Você está no meu sofá, nua. O peito não mais ofegante nem suado. Os cabelos muito abaixo do ombro, estou orgulhoso por eles, cresceram como árvore e estão agora lindos – quando prende em um rabo de cavalo, quando enrola em um coque, quando faz aquele headbanger esquisito na hora da piada. Estou sentado no chão, igualmente nu, de costas para ela e olhando o E.T.
Ele está quase pra voar, Jordana. E você também.
Essa é a primeira vez que permito dentro de mim, em paz, deixar alguém ir embora. Acho que eu apanhei e perdi a cabeça durante as vezes anteriores por preparação, porque agora não me revoltarei ou não passarei anos escrevendo em teu nome – só mais este e só mais dois e tudo termina. Eu juro.
- Eu tinha medo desse filme, sabia? – Você me diz, rindo como na primeira vez que nos vimos. – Mas achava O Exorcista engraçado.
- Eu também achava.
- Claro que também achava.
- Prova que devíamos ficar jun...
-  Cabeção, para.
Eu parei. Em fato, foi aí que parei de verdade.
- Eu queria te dizer que tentei. - Fixei os olhos no E.T. enquanto falava. - Até hoje eu nunca pedi pra ninguém voltar ou nunca fui atrás de alguém.
- Uau.
- Sinta-se orgulhosa de si mesma.
- Eu sempre me sinto, gato.
E apertou meu cabelo.
- Quero que saiba disso.
- Por que? Que diferença vai fazer?
- Quero que quando tiver ido embora, saiba que eu fui o melhor pra ti, Jordana.
Eu fui o melhor que nem mesmo achei julguei que seria tão cedo ou de novo.
A deixava ir embora agora, figurativamente falando, porque nada nunca foi realmente meu. Nada nunca verdadeiramente me pertenceu, refletindo agora sob o sentido bondoso da coisa, aquele não possessivo, o não dominador, aquele em que você não é do outro porque foi tomado, mas porque permitiu-se em gratidão ser.
Sei , no entanto, que estilos literários fortes, livros e filmes haviam abarrotado nossas infâncias com outros conceitos e falsas visões desta posse. Sei, no entanto, que os amores insanos e pregressos que ambos tivemos também nos aporrinharam com tais concepções equivocadas.
- Tu vais sempre me ver por aí.
- Eu sei.
- E eu também sempre vou te ver.
- Claro.
- E vamos nos falar.
- Uhum.
- E tu vais me chamar pros aniversários da Helena.
- Claro que vou.
- Viu?
E beijou o topo da minha cabeça.
- Grava uma coisa e se quiser escrever sobre ela, sempre escreva.
- O que que é?
- Não desiste. Não é porque a gente não deu certo que tu estejas me perdendo, cabeção. Eu só não me encaixo agora no que tu queres.
- E o que eu quero?
- Tentar se convencer que é um escritor pegador e desapegado, mas na verdade com um coração idiota por dentro doido pra nomear uma rainha.
- Porra, que merda.
- Sim, né? Que merda.
- Falando assim, até parece que eu beijo e já tô apaixonado.
- Eu sei que não, Zé Sol em Peixes. – Debochou. – Pior que eu sei que não.
- Mas eu me apaixonei assim que te vi.
- Eu sei. – Os dedos desceram por minhas têmporas. Fechei os olhos. – Tu és lindo, mas não sabes enxergar e talvez precises consertar isso pra finalmente encontrar alguém. Até lá, não desiste, cacete. Eu não vou ficar porque não sou eu, Felipe. Se fosse eu, ficaria. Se fosse eu, nem decidiria ir.
- Tá tudo bem.
- Não, não tá.
- É, não tá. Mas “tá tudo bem” porque eu não vou frescar.
- Vai escrever sobre mim ainda?
- Sempre.
- Não, cabeção. Não pode, vais afastar a concorrência. Escreves só mais uma vez e aí nunca mais.
- Nenhuma menção sequer?
- Fê...
- Nenhuma?
- Tá, menção pode. Mas só isso. Fechado?
- Fechado, mas só mais uma não.
- Caralho, tu não colaboras, fica revirando tudo aí dentro e depois tá sofrendo. Toca pra frente e supera, cara. Superar não significa que vai parar de doer, significa que tu consegues viver bem apesar da dor. Eu te amei e sempre vou te amar, Fê, mas de um jeito diferente do teu.
- Só mais três vezes, Jordana. Relaxa.
- Caralho, tá.
- “Caralho, tá”.
Apertou outra vez meus cabelos agora com as duas mãos e aí nós dois rimos juntos.
- Eu confio em ti. Sei que não é um novinho que vai me foder a paciência me perseguindo e mandando indireta no facebook.
- Olha lá, hein, caralho? Vou postar teste com Casal Perfeito: Leão.
Ela gargalhou, preenchendo o silêncio da noite.
- Olha lá o cacete, filho da puta. Há de ti fazer isso.
Outra vez nós rimos.
Baixei mais o volume da tv e me virei sobre os joelhos, deitei a cabeça na barriga dela e brinquei com a ponta dos dedos na pele que eu tocava pela última vez. Sexo de despedida era, depois de descobrir que o último cigarro mofou dentro da carteira, a pior coisa na terra. Ou a melhor. Dolorosamente a melhor.
- Valeu por me fazer crescer nesses sete meses.
- Pra mim tu continuas baixinho.
- Caralho, mano.
E rimos de novo.
- Tu tá agindo errado de novo. Não me eleva nem me venera. Eu não sou melhor que tu e nenhuma das mulheres que tu amas precisa ser. Eu já te disse, deixa de ser submisso. Amor não é submissão, Felipe. Amor não é pra ser combustível de veneração. No dia que tu souberes disso, vais ter encontrado o guarda-chuva amarelo.
- Anotado.
Fecho os olhos. A pele de Jordana tem um cheiro bom, cheira a orvalho em fim de tarde pós-chuva, misturado à terra molhada do Marajó enquanto o café quente é posto na mesa e os amigos sorriem ao seu redor, contando uma piada de humor negro ou infame que todo mundo sabe que é errado rir, mas ri mesmo assim, porque é seguro rir sem ser julgado pelos olhos insanos do mundo perverso de éticas tortas e intocáveis. Jordana tem cheiro de dia nublado e pacífico. Jordana tem cheiro do que eu julgo o melhor livro já escrito – cheiro de Jack London diante da Remington escrevendo o que viria a ser Caninos Brancos correndo, livre, nas brancuras do Wild.
Jordana tem cheiro de gratidão,
é o que vou pensar antes de conjurar um Patronum ao encontrar um Dementador e
Jordana tem cheiro de memória, aquela que quarenta ou cem anos depois eu não vou ter esquecido.
Então ela dá o golpe final:
- Lembra aquela música que tu me mandaste pelo Spotify? Do Johnny Cash?
- Eu te mostrei milhões de músicas dele.
- Aquela do coração.
- Hein?
- Que ele não para de procurar alguém.
- Heart of Gold?
- Isso, Fê. Tu és essa música, eu prometo que sempre vou escutar e aí vou lembrar de ti.
- Eu sou uma música do Johnny pra ti? – Finjo enxugar uma lágrima.
- Você é.
Levantei para beijá-la. Ela não protestou. Não houve protesto algum pelo que veio em seguida, de novo, de novo e de novo pela noite inteira.
No dia seguinte, quando foi embora da minha casa, eu ainda cantarolava Heart of Gold.
Ela acenou antes de fechar a porta do carro, mas não baixou o vidro.
Jordana soube se despedir como nenhuma delas soube antes.

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