19 de outubro de 2023

O dia em que fui primeiro lugar no 32º Concurso de Contos Paulo Leminski


        


        Feriado. Dia das crianças. Uma semana atrás. Eu estava prestes a tomar banho para dar um rolezinho no ITA quando veio a notícia.

Dias antes disso, recebi um e-mail meio inesperado: a divulgação dos vencedores do 32º Concurso de Contos Paulo Leminski seria naquela semana e eu estava entre os finalistas. Meses antes, deparei-me com o edital do concurso e pensei: “E se?”. Fui lá, procurei o que possuía na gaveta e encontrei aquele conto escondido, escrito para compor o “Napalm & histórias de amor”, mas que ficou de fora por destoar um pouquinho da temática central do livro. Aí fiz o que qualquer um que escreve sempre faz: relê, fica insatisfeito, começa a mexer aqui, a mexer ali, a cortar isso, a ajeitar aquilo… finalizei. Preenchi a inscrição e enviei. Era isso. O “não” eu já tinha, de qualquer forma. Você sempre tem um enfático “não” a seu favor.

Vá lá e seja teimoso.

Corta para os dias anteriores ao resultado: eu, recebendo o e-mail e sendo apossado por aquela suave expectativa atrás da orelha, até ansiedade, uma remota possibilidade de que, talvez, até dê certo. “E e se? Vai que, né?...”. Em seguida, a cena em que do nada, do nadão, assistindo à transmissão ao vivo, já desesperançoso de sequer ser escolhido para participar da coletânea, meu nome é anunciado:


“E EM PRIMEIRO LUGAR, COM O TÍTULO ‘MARIANNE’, AUTORIA DE FELIPE SANTIAGO, DE BELÉM DO PARÁ [...]”.




Na hora em que o título “Marianne” foi anunciado eu já estava no espaço. Sou meio totalmente fleumático. Fico extremamente feliz e empolgado, mas tenho dificuldades de reagir. Corporal e expressivamente mesmo. Acho que fiquei incrédulo. Não era possível. Eu? Eu? Justo eu? Sério isso? Surreal. Fiquei o restante da noite anestesiado.

O Paulo Leminski é um concurso de contos importante e de tradição, com gente do Brasil inteiro e residentes em outros países enviando as mais incríveis e bem-escritas narrativas. Anos atrás eu já havia submetido um conto, mas o bichinho era fuleiro e muito ruim, na época em que o que eu escrevia era igualmente fuleiro e muito ruim (não que eu seja um Machado hoje em dia, mas garanto que, comparado àquela época, alguma maturidade na escrita já me sonda). Foram 740 contos inscritos. Gente talentosa para um caramba. E dentre todos eles, “Marianne” foi se esgueirando e conquistando os membros da comissão julgadora a ponto de ser escolhido em primeiro lugar. Fico muito feliz por isso, porque esse é um conto cuja mensagem é valiosa e necessária. Agora estou ansioso para que o mundo o leia.

Quero agradecer a todos da organização do concurso: à prefeitura de Toledo, à equipe da Secretaria de Cultura e aos jurados que confiaram no valor dessa narrativa. Também a todos que me parabenizaram e que, de um jeito ou de outro, sempre estiveram por aqui dando forças e incentivos morais, principalmente quando tudo o que me sondava (e sonda) é a desesperança, o desânimo e a falta de fé em mim mesmo. À minha família que sempre me glorifica ao extremo - às vezes até demais,  mas não é culpa deles, é que ficam empolgados e entendo. Aos meus amigos que, muito embora tenham diminuído ao longo dos anos, continuam frequentando este reles e ainda existente blog, adquirindo ou se interessando pelas antologias das quais faço parte. E, acima de tudo, quero agradecer à Divona, por estar sempre ao meu lado, literalmente ao meu lado no momento da divulgação. A pessoa que sempre chora com as minhas pequenas, grandes e esporádicas conquistas.  

Fico sem graça de comemorar, mas eu tô bem feliz - daí a existência desse textão. É um baita de um gás para quebrar a programação normal.

Abaixo, deixo uma matéria publicada pelo Jornal do Oeste, falando sobre a 2ª Flit, em Toledo, e sobre as premiações do 32º Concurso de Contos Paulo Leminski e do 9º Concurso de Crônicas e Poesias Edy Braun, além do link da live completa ocorrida no dia.

Obrigado a todo mundo novamente.   


F.


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2ª Flit: sucesso comprova sucesso de ações de incentivo à leitura em Toledo: https://www.jornaldooeste.com.br/toledo/2a-flit-sucesso-comprova-sucesso-de-acoes-de-incentivo-a-leitura-em-toledo/


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Live com a programação do último dia da 2ª Flit:

https://www.instagram.com/reel/CyULB3Pr6I7/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==


31 de agosto de 2023

dos sobrenomes





I have a friend

I've never seen

He hides his head inside a dream

Someone should call him

and see if he can come out.

Try to lose 

the down that he's found.


(Only love can break your heart - Neil Young)





I.

A Amazônia está em chamas e o amor que se foda




Noemí Navarro tem os braços cruzados sobre o parapeito de metal. No andar de baixo, o motor do navio da Arapari é ensurdecedor, mas mesmo os que viajam ao lado dele conseguem, em algum momento, ignorá-lo. A embarcação acaba de passar por Cotijuba e à frente, da abertura entre as ilhas, é possível ver a cidade de Belém se revelar no horizonte. A água agora é como um tapete, ao contrário de 1h atrás quando o vento soprava ondas que faziam o navio balançar de um lado para o outro.

Noemí suspira, encurralada pelo beco sem saída que seu segundo livro recentemente encontrou e assolada pelo casamento já em ruínas. Junto com ela eu também suspirei. Embora fosse muito mais fácil escrever sobre uma prolixa escritora em ascensão devastada pelo bloqueio criativo diante de sua trilogia romântica épica no interior do Marajó, encarar a página em branco, sem saber qual rumo dar ao conflito da artista também me era a angústia metalinguística: a realidade transpassando a tela do computador, vencendo a fábula e se materializando na vida real. Mesmo entendendo minha própria personagem e seus conflitos diante do bloqueio, nem minhas próprias palavras fluíam através da página a fim de resolver nosso dilema. Seria fácil dizer que sofram os meus personagens, que estejam eles nas situações embaraçosas, que o trabalho fique inteiramente com eles! Entretanto, era kármico. A volta criativa do universo devolvendo o que era aplicado na representação ficcional. Na página em branco, Noemí estava parada no parapeito, de braços cruzados e com o pensamento em inércia, navegando afogada no declínio da angústia há quase dois meses. E diante da página em branco, também estava eu: em solo firme e sem muita firmeza. 

Pausei mais uma tentativa de cuspir palavras e estiquei os braços. Estalei os dedos e senti minha barriga roncar. Eram nove horas da noite e a última refeição do meu dia havia sido o café da manhã. Levantei e me arrastei até a cozinha. Na geladeira, três garrafas d’água cheias e uma garrafinha de suco Palmeiron de Caju — sabor migalhas de plano de saúde e crise de hipoglicemia. Misturei o tormento em um copão gelado, encontrei meio pacote de bolachas Maria e mandei ver. Deus, por que me ofereces tamanho banquete? Voltei à mesa, rumo à velha página em branco. Já mastigava a bolacha que se dissolvia na saliva e pregava na gengiva quando meu celular tocou.

— Oi. 

Ei — Cecília disse, animada. — Tudo bem por aí?

— Tudo, sim.

Ótimo. Se arruma que em trinta minutos eu passo aí pra te pegar

— Que porra é essa já? Cadê o respeito?

Passo aí pra te levar pra sair, bocó — ela corrigiu.

— Exatamente! Cadê o respeito? Não é assim, não. Tem que marcar com um mês de antecedência.

Por quê?

— Agenda cheia.

— Mentira. 

— E o meu preparo emocional?

Frescurento — ela riu do outro lado da linha. — É sério

— Olha, não precisa. Eu tô tranquilo.

O que tu estás fazendo

— Nada.

Então perfeito.

Cocei a cabeça. Procurei minha carteira e encarei no fundo dela uma nota esmirrada de cinco reais.

— Tô brincando, Cecí. Eu tô escrevendo, vou poder não.

Não me importo. Tu continuas depois. Trinta minutos. 

— Olha, eu não quero, não.

A cidade tá cheia de eventos internacionais. Um monte de turista e gringa por aí. Vai ser legal.

— Gringos não usam desodorante e turistas não tomam banho. Com esse calor fica todo mundo fedido. É uma desgraça.

Olha — ela respirou fundo, pela primeira vez com sinceridade. — Eu preciso de ti essa noite, é importante. E além de tudo faz muito tempo que eu não te vejo. Vou unir o útil ao agradável, entendeste? Por favor, podes ir comigo? É um pedido. Tu vais entender. Só essa noite, vai. Eu pago tudo, não te bate com isso.

— Hum. Paga tudo mesmo?

Pago.

— Tudo, tudo?

— Sim.

— Certeza?

Sim, besta. Vai logo se arrumar. Beijos.

E desligou.

Cocei a cabeça e suspirei do mesmo jeito que Noemí suspirava no conto. Deixei-a sozinha com os braços sobre o parapeito e alonguei sua chegada a Belém por mais uma noite. Que diferença faria? Desliguei o computador e me arrastei ao banheiro.

Era sexta-feira e a noite belenense fervilhava.

Maravilha.


O átrio do complexo era circular. Ao redor, dezenas de pessoas aglomeravam-se em pé ou sentadas. Os copos de plástico, latas de cerveja e doses de caipirinha bailavam em mãos, enquanto os cheiros de nicotina e de maconha ondulavam pelo ar. No centro, um microfone. As caixas de som em volta retumbavam as vozes que ali se dispunham a falar. Todos aplaudiram a mocinha de olhos claros que recitara um pequeno texto sobre a angústia da mulher belenense na cidade quente, sobre as árvores em chamas e o aquecimento global, além de qualquer crítica rasa a Ricardo Salles, os males do neofascismo e por fim um desfecho clamando por mais diálogo, ativismo e




só a empatia emplaca,

aplaca

e abarca o futuro.

Hashtag-salve-a-Amazônia.




Ela finalizou. Incrivelmente, o verso Hashtag-salve-a-Amazônia fazia parte do texto. Um teor artístico riquíssimo. O anfitrião do pequeno evento em defesa da cultura amazônica agradeceu pela contribuição da mocinha com um tom de voz muito educado e pouco verdadeiro, como se realmente houvesse prestado atenção no que ela dissera.

O burburinho continuou. O anfitrião pediu por alguns minutos, então checou a lista de próximos interlocutores poéticos ou quaisquer falantes com algo que julgavam importante ser compartilhado. Nesse meio tempo, Júlio espremeu-se entre as pessoas e se sentou ao meu lado. Era um sujeito alto, com cabelos ondulados e presos a um rabo de cavalo mal feito, camiseta azul florida com os botões abertos permitindo que o peito peludo pudesse respirar, bermuda jeans cor de areia e estampada por abacaxis coloridos, botas pretas e uma pochete (“shoulder bag!”, ele teria corrigido) atravessada no corpo. Apesar da aparência, já havia passado dos quarenta anos. Nas mãos trazia dois copos de meio litro de cerveja. Ofereceu-me um deles.

— Muito top, né? — Ele perguntou, apontando o queixo para a menina que agora se embrenhava na multidão. Os olhos dele a acompanharam com profusa atenção. Até demais. 

— É.

— Gosto muito desse levante de vozes femininas amazônicas. Muito necessário, não achas?

— Claro.

— Como uma região historicamente marginalizada, é importante que esse espaço seja totalmente ocupado por essas mulheres. Tu sabias, né? Que um dos grandes vestígios de dominação simbólica da época da colonização foi o estabelecimento do conceito social de raça. Mas não falamos disso pensando na colonização, no abuso ou na dominação das mulheres. A imagem que temos é a dos homens. Por isso, temos que pensar: como se davam as relações de gênero quando esse conceito foi construído pela colonialidade? Só nos últimos vinte anos que voltamos os olhos com mais atenção a isso. É a questão do machismo também, né, cara? A misoginia na região norte alcança números alarmantes. Só no ano passado... — todas aquelas palavras tornavam-se cada vez mais enfadonhas no sotaque sudestino de Júlio. O sujeito havia mudado para o estado há menos de 1 ano e meio e já era mais paraense que todos em volta. Pai d’égua. — E também, tu sabes — ele forçava a conjugação dos verbos na segunda pessoa do singular para mimetizar o dialeto paraense, tendo ainda uma estranha dificuldade de arrastar o s, o que mais parecia com uma caricatura mal talhada de carioca —, as mulheres, como um grupo socialmente violentado — e utilizou a palavra com estranho deleite — precisam se fazer ouvir, e é importante, importantíssimo, que nós homens escutemos o que elas têm a dizer. Não concordas?

— Concordo, truta. Claro — dei um longo gole na cerveja. Já era meu quarto copo e ainda assim a ânsia de vômito veio, aquela quase-golfada de alguém que mais bebia aquela merda para se anestesiar dos males externos do que por apreciação. 

— A Cecília te contou sobre o projeto que tô desenvolvendo na universidade?

— Contou. Ela me contou tudo. Bem legal. Parabéns.

E apesar da minha tentativa de fuga, Júlio pôs-se a falar. Discorreu sobre a importância da formação de grupos de leitura literária com mulheres pretas da periferia belenense, sobre o diálogo entre as realidades e a quebra constante de paradigmas que ele sempre trouxe consigo, sobretudo, imaginei, ao se dar conta de que as mulheres daqui até sabiam ler palavras, virar páginas de livros, manusear celulares e acessar internet. Continuei bebendo aquele líquido intragável enquanto ele mencionou o quanto fora a terapia que o impulsionara a desbravar os meandros da sociedade amazônica, que  “Larissa”, a terapeuta, o incentivara a uma “aventura sociológica e acadêmica rumo ao desconhecido, ao novo, ao necessário e ao exótico”, e que isso faria bem ao currículo lattes dele, em ascensão desde os tenros anos da juventude, quando abrira mão de gerir o negócio de família na Europa para enfrentar as necessidades de mudanças sociais através da universidade pública brasileira. 

— Deverias participar — disse ele, convidativo, porém hesitante.

— Eu?

— Claro, mano! Imagina que importante uma voz masculina no nosso grupo?

— Pode crer.

— Ela me disse que tu também és formado em Letras, certo?

— Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante.

— Teu doutorado foi em quê?

— Não cheguei tão longe.

— Ah. E o mestrado?

— O que é isso?

Hehehehe.

— Hehehehe.

Sem jeito ou sem saber muito por onde seguir, ante a descoberta de vida inteligente fora da academia, Júlio continuou, perdido:

— Ela me contou que escreves.

— É o que dizem. 

Hehehe.

— Hehehe.

Ergui o copo na direção de Júlio, sinceramente aguardando pelo momento em que ele faria quaisquer perguntas sobre como funcionava o centro poético da sociedade nortista ou sobre os desafios ficcionais de ser um escritor atuando na periferia do planeta. Nenhuma dessas perguntas veio. Ao invés disso, ele apontou para o átrio, onde o anfitrião nos anunciava um novo interlocutor. De imediato, pediu-me licença e disse que precisava ir ao banheiro. Foi a última vez que cruzamos palavras diretas naquela noite. 

O rapazinho anunciou a leitura de um poema de amor. Todos torceram o bico. Você percebe a mudança súbita no ambiente, os olhos revirando e as mentes inteligentes se contorcendo. Ninguém queria saber de amor nos dias de hoje. A Amazônia estava queimando, em uma semana os jornais anunciariam sensação térmica de 50ºc em Manaus, para que em seguida, na mesma reportagem, mostrassem as praias da cidade maravilhosa repletas de gente: moças da zona sul se bronzeando e crianças abastadas brincando, revelando que tudo terminava em alegria e nada que vinha antes de conectivos adversativos importava, tampouco o interesse dos ministérios e do próprio presidente (que buscava ser um herói na pauta climática) em explorar novos poços de petróleo na foz do rio Amazonas, para que continuássemos queimando o mesmo combustível que nos enrabava. Além disso, os mercados de joia e rolex andavam em alta, entretanto pouco punitivos aos crimes neles envolvidos e os campos de morango eram a expressão artística mais importante do ano. Quem se importava com poemas de amor? 

Inclinei-me para degustar os versos. Não que eu fosse amante de poemas ou muito hábil na escrita deles, mas era um alívio escutar a leitura de alguém que gritava quando se queimava ao invés de continuar sofrendo com o freak show intelectualizado que adentrava a noite. Ao fim da leitura, aplaudi a coragem do rapazinho. O poema não era tão bom. Não era bem cadenciado. A clichê escolha de rimas em soneto cairia bem melhor que o aparente uso de versos livres sem parâmetros. Ainda assim,

ainda assim,

em comparação às palavras bem alinhadas e arquitetadas vindas dos mais fluentes e abastados jovens revolucionários de Belém, saídos todos de vilas e de containers coloridos, o poema de amor havia sido o texto mais honesto e visceral da noite.

— Ei — Cecília sentou-se ao meu lado, terminando de aplaudir a leitura. — Cadê o Júlio?

— Disse que iria ao banheiro. 

— Ah.

Ela acendeu um cigarro e me ofereceu um trago. Neguei.

— O que tu achaste dele? — Ela me perguntou, curiosa.

— Foi a melhor leitura da noite.

— Não, não dele. Me referi ao Júlio.

— Ah. Ele é um cara legal. Liberalmente ativo, socialmente consciente. Faz o teu tipo.

Cecília riu.

— É sério. Me diz. O que tu achaste dele? 

— De verdade?

— De verdade. 

 — Ele gosta muito do som da própria voz. E sabe muito sobre tudo, principalmente sobre as coisas óbvias. 

Ela balançou a cabeça e tragou em silêncio.

— O que mais?

— ... 

— Diz.

— Eu detesto admitir isso, mas tenho que ouvir a porra da minha intuição. É o meu signo. Não tem jeito. São as estrelas falando, Cecília. Toda essa merda esotérica de pseudo ciência cultiva por adulto não crescido disfarçando a mais profunda e certeira conclusão empírica de que: esse cara é furada.

— Merda.

— Merda. Merda? Por que merda?

— Tô crushada nele. Na verdade, estamos bem sérios.

— Há quanto tempo?

— O tempo que não consigo falar contigo porque simplesmente sumiste. Uns seis meses?

— Tempo pra caralho — admiti num suspiro. — O cara é do Programa de pós-graduação. Ele é meio que teu professor, não é não?

— Sempre passo bem longe dele no prédio.

— Acho que nem tanto. Aparentemente tá passando bem perto, perto até demais. 

Ela riu.

— Mas o que tu queres de mim? Aprovação? — Perguntei.

— Opinião.

— A minha opinião é que ele é uma piada, mas quem sou eu pra dizer isso? O cara pagou metade das minhas cervejas até agora, Deus abençoe o funcionário público.

Ela suspirou fundo e me ofereceu o cigarro de novo. Recusei.

— Ele te falou do projeto que tá coordenando?

— Acho que deve ter mencionado.

— Por que não participas? Vai ser uma boa.

— Tu achas?

Cecília me encarou por longos segundos. Finalmente deu-se por vencida e explodiu em uma gargalhada contida.

— É ridículo, mas essa é a minha situação. E ele me come maravilhosamente bem — admitiu ela.

— Ninguém manda no coração, Cecília. Não viu o rapazinho ali? — Apontei para o centro do átrio que agora estava vazio. — Foi abatido pelo impulso de falar sobre o amor no meio de um bando de intelectualzinho de merda que nem liga mais pra isso. É preciso coragem até pra errar.

— Qual é a moral que fica?

Bebi a cerveja sem muita vontade.

— Se ele transa maravilhosamente bem, então é isso o que importa. O problema é que daí pra um eu te amo suado é só um passo. 

Encarei-a com cautela. Cecília engoliu em seco. Seis meses era tempo demais para transas suadas acompanhadas de eu te amo já terem acontecido. Ela me sorriu desconcertada, quase num tom de desculpas. Acariciei-lhe a bochecha e devolvi o sorriso em tom compreensível.

— Fodeu — eu disse.

— Fodeu — ela repetiu.

— Pelo menos ele é concursado. 

— Vou pensar nisso — ela levantou e me estendeu a mão. — Vem. O pessoal tá todo pro outro lado. Podes fazer mais esse sacrifício por mim? Vai ser rápido.

— Sim, senhora — beijei-lhe a mão antes de levantar e segui-la. — Vou tentar sobreviver.

— Tu estás muito carrancudo, sabias?

— Eu sei. Me desculpa.

— Há quanto tempo tu não sais de casa?

— Eu fui na padaria esses dias.

Ela esbugalhou os olhos.

— É brincadeira. Tenho saído pra dar aula. Duas vezes na semana. Então, tecnicamente...

— O que que tá rolando contigo?

O público já havia se dispersado. Aparentemente, a declamação do último romântico havia gerado certo tipo de constrangimento. De repente, ia se criando um clima terrível.

— Eu queria gostar mais de cerveja — forcei um gole, mas a espuma descia pela garganta trazendo a vontade de vomitar. — Nem isso eu consigo fazer. Não pareço muito adulto.

Cecília soltou um tsc entre os lábios, me roubou o copo e engoliu o resto da bebida em um gole.

— Frescurento.

— Eu sei. Me desculpa.

— Para de pedir desculpas.

— Me desculpa por pedir desculpas. 

— Sério, o que tá rolando?

— Eu não sei. Não importa. Olha, não são aqueles ali? 

Do lado de fora do complexo, mesas de bar contornavam as calçadas. Uma galeria de bares e restaurantes atendia ao público que abarrotava o quarteirão todos os finais de semana. Em duas mesas unidas de madeira, o círculo de amizades de Cecília tagarelava. As apresentações foram brevemente feitas, poucos sorrisos foram dados, escassos olhares foram levantados e a maioria mal se deu conta de quando sentamos. Apenas uma cadeira permanecia não ocupada, justo a que ficava do lado direito de Cecília. Júlio ainda não retornara do banheiro.

— A questão é simples — A garota que se chamava Beatriz desceu o punho sobre a mesa, empunhando o que parecia ser o décimo copo de cerveja e exigindo a atenção de todos. A voz estava trôpega, já os olhos vagos e pesados. — Eu pouco me importo com o dia de amanhã, hoje é sexta-feira e eu mereço. Sabem por quê? Simples, vadias. E não é porque eu sou trabalhadora ou porque eu sofri a semana toda ou porque o cliente da quinzena foi um Barbalho escroto que acha que todo mundo deve bajular ele. Não, não. Até porque quem lidou com todos os trâmites do negócio foi o pessoal do jurídico, principalmente as minhas duas novas estagiárias. De verdade mesmo? Manas, eu não fiz nada, nadica de nada durante essa semana. Assinei contratos. Dei aval pros projetos e no máximo autorizei a compra dos materiais. Foi fácil demais — o restante da mesa se deliciava com a voz mansa e burguesa de Beatriz. A garota era puro carisma mal talhado feito para fisgar gente besta e se valia da aparência de porcelana para arrancar sorrisos e conquistar empatias. — Eu mereço porque domingo é a porra do meu aniversário, vadias. E esse final de semana eu vou encher o meu cu de álcool e...

— E de uns três tipos de drogas diferentes — alguém da mesa emendou. 

— E de uns três tipos de drogas diferentes! — Beatriz bradou com um largo sorriso. — Eu finalmente tô no auge da porra da minha vida, vadias. E eu vou encher a cara porque eu mereço.

Todos aplaudiram. Em seguida, cantaram parabéns, cuja animação aplacou outras três mesas em volta que também entraram no coro. 

— Quantos anos, Beatriz? — Perguntei, fingindo interesse.

— Vinte e dois aninhos, amor.

— Parabéns — brindei de volta, agora com o copo de cerveja que Cecília me trouxe. — Tu tá aceitando currículo?

A mesa retumbou em risadas. Beatriz me encarou com uma carranca indecisa entre raiva e divertimento. Depois apertou o bico que brilhava de gloss, um cover barato de diva platinada brasileira, e me apontou o queixo com ar avaliador.

— O que é que você faz da vida, querido? 

— Dizem que eu escrevo, mas dou aula particular nas horas vagas.

— Aulas de quê?

— Geralmente em matérias que exigem que os moleques saibam ler mais que cinco linhas. 

— Ah — ela fez um muxoxo. — Minha empresa de engenharia não tá aceitando esse tipo de currículo.

— Que pena. 

— É, uma pena — ela brincou. — Você tá com quem mesmo?

— Ele tá comigo, mana — Cecília interveio, abanando as mãos para que Beatriz relaxasse. — Nós estudamos juntos na graduação. Se teu irmãozinho precisar de aulas de português, chama ele pras aulas. Ele é escritor. Eu mesma indico.

— Com toda a certeza, amore — Beatriz me lançou uma piscadela piedosa.

— Bia, Bia, para com isso, amiga. Toma — um sujeito com barba em tufo e bem alinhada interveio, ele tinha cabelo quase raspado e grandes óculos de grau com armação arredondada no rosto. Ofereceu uma garrafinha de água para a CEO de engenharia. — Pega leve, senão ninguém vai te segurar. Toda vez é isso. Da última vez foi um trabalho pra levar essa menina de volta pra casa, acreditam? Ela deu um PT desastroso. Os ubers estacionavam, viam o estado dela e desistiam da corrida, nem aceitavam que eu e as outras meninas iríamos levar ela em casa. Um absurdo. Toda vomitada e mijada. Tive que chamar o Tonho em plena madrugada pra dar um jeito.

— Tonho? — Perguntei.

— É, o motorista da minha família. Coitado, ele veio com a cara toda amassada de sono. 

Beatriz e ele explodiram em risadas misericordiosas.

— É, coitado — balancei a cabeça.

— Mas ele é ótimo. Todas as férias é ele quem nos leva pra nossa casa em Salinas. Ele até fica às vezes por uma ou duas semanas ajudando o caseiro, acho que é quando tá precisando muito de dinheiro, coitado. Nem todo mundo tem educação financeira ou sabe priorizar e investir a própria renda, né, galera? Por isso é um conhecimento necessário! Ah, mas ele é ótimo. Conheço o Tonho a vida inteira, é quase como se fosse da família. Se não fosse por ele, a Bia ia ficar na rua. Te juro. 

— Salve o Tonho, coitado — brindei novamente, em homenagem ao falso heroísmo que Tonho representava.

O rapaz da barba em tufo aproximou-se de Beatriz e obrigou a garota a beber água. Pousou três tapinhas no ombro dela e ignorou as reclamações que a garota teceu em voz de porcelana.

— Sério, galera. Desde que comecei a me cuidar, e isso tem uns dois anos, nunca mais ingeri álcool. Minha vida mudou. O Wilson, meu coach, ah, o cara é foda. É o Wilson quem mais me incentiva, mantém as coisas na linha. Se não fosse por ele, eu tava igual a essa daqui: enchendo a cara todo fim de semana, meninas.

— E acordando o Tonho na madrugada.

— É, isso — ele sorriu meio a contragosto. — Enfim. O Wilson é foda. Eu alterno musculação e funcional com ele, minha vida melhorou muito. É tudo uma simples questão de equilíbrio. Aí parti pro pilates e até Jiu-Jitsu engatei. Ah, e a terapia também. Hoje em dia equilibro o corpo com a musculação, com o funcional e com o Jiu-Jitsu; o espírito com as novenas e as sessões de yoga tântrico e minha saúde mental com a terapia.

— É o Tonho que vai te buscar nas sessões? — Perguntei. 

— O Tonho é maravilhoso, amigo. É quase como um tio pra mim.

— Pô, bacana. 

— Ei — Cecília me chamou num sussurro discreto. — Pega leve.

— Tô pegando — sussurrei de volta.

— Eu vou atrás do Júlio. Tu me esperas aqui?

— Claro. 

Tentei retornar à conversa, mas Beatriz, as outras três versões de Beatriz, o rapaz da barba tufada e suas duas versões idênticas agora debatiam sobre as leituras no átrio principal. O monopólio e a insistência do monopólio sobre o tópico discursivo eram claros, escrachados e tirânicos — entre eles, entre eles e sempre entre eles. Beatriz e suas cópias eram mais enérgicas, expansivas e minimamente mais autênticas. Já o sujeito com barba tufada e seus clones eram carregados de palavras polidas e de refinamento impecável, muito educados com seus tons de vozes delicados, sob controle, permissivos e elegantes, uma necessidade incontrolável de fazerem contraponto à veracidade das mulheres, com seus hormônios aflorados e vozes fortes, pois a esses sujeitos de óculos em círculos pertencia a sabedoria, o intelecto e a ponderação, a racionalidade bem eloquente e sempre sabichona — assim como Júlio, eram exímios explanadores do óbvio, tecendo comentários didáticos sobre as curiosidades do mundo e sobre as informações que apenas eles detinham, fosse qual fosse o assunto —, num frequente malabarismo sobre ovos na intenção de soarem corteses e cavalheirescos.

O assunto passeava sobre a mesa como uma bolinha de ping-pong sem haver qualquer competição envolvida, pois nenhum deles tecia opiniões ou pontos de vista discordantes. Para o tipo de mesa e para o tipo de jogadores, a partida até que era saudável, já que mantinham-se na defensiva, contornando os argumentos convergentes e tecendo críticas homogêneas demais, soando como um coro bem entoado de uma só voz, vez ou outra com inofensivas dissonâncias.

Além deles, apenas uma garota permanecia tão entretida na conversa. Embora não fosse incluída, mencionada nem sequer notada pelo grupo, os olhos brilhavam com um estranho interesse, analisando as rasas análises e ponderando-as com sorrisinhos muito discretos e secos, sobretudo quando o pico de consciência social dos falantes alcançava níveis absurdos de sordidez e de iluminação transcendental. A garota sem nome tinha longos cabelos pretos amarrados em um rabo de cavalo. Vestia uma camiseta preta básica com a estampa de Reagan Macneil com o pescoço virado em 360º. Os braços eram esguios e limpos de quaisquer vestígios de tatuagens. O esmalte preto e fosco nas unhas combinava com a camiseta e com os All Stars nos pés. Os olhos de jabuticaba eram grandes e vivazes, dois pares de piscinas escuras que refletiam os brilhos e os flashes e as futilidades da noite. Não teceu uma só palavra, mas balançava a cabeça e parecia fazer parte do grupo, mesmo não pertencendo a ele. Ao contrário de mim, era imune ao estranho clima do desprezo, porque não era desprezada com nojo ou distanciamento. Só permanecia imune. Camuflada.

— A moça que realizou uma das leituras é amiga da nossa família. Sabem? A de olhinhos claros? Então, é ela, a Gabi. Nem conto pra vocês, mas recentemente ela passou por uns maus bocados com as terras dos pais, uma situação muito desconfortável sobre partilha de posses, repartição de herança e gente maldosa tentando invadir a propriedade, sabem? — O sujeito da barba tufada balançou a cabeça, cabisbaixo. — É tão triste quando essas rixas em família acontecem, eu fico sempre muito chateado. Sei que na minha própria família aconteceram coisas parecidas, e por muito tempo isso gerou alguns traumas entre mim e os meus irmãos. Mas, graças a Deus, resolvemos tudo. Foi o yoga tântrico que, me ajudando a organizar os meus chakras, também me possibilitou um maior controle sobre o meu corpo. Eu parti do corpo pra mente, meninas. Acreditem, com o corpo alinhado, a mente fica mais propensa à evolução. E com a mente evoluída, a terapia me ajudou bastante com esses pequenos e grandes traumas de família, compreendem? Ah, foi bem legal. Aconselho todos vocês aqui a fazerem terapia, certamente vai ajudá-los muito. Estamos sempre precisando, não é?

Ele cutucou Beatriz, que àquela altura, zonza e com os olhos pesados, não entendeu a indireta.

— Tá, mas o que aconteceu com a família da tua amiga? — A garota sem nome perguntou, pela primeira vez entrando na conversa e pegando todos de surpresa ao lembrá-los de que ela também existia.

— Ah, não sei. Não cabe a mim falar sobre isso.

— Oxi — ela riu, frustrada. — Mas é que tu colocaste a informação no meio e não voltaste mais pra ela. Fiquei na expectativa, achei que teria algum desfecho. Tretas de família, conflitos de terra, sonegação de impostos... A história mais paraense de todos os tempos. 

O sujeito da barba em tufo pigarreou, irritadiço.

— Amiga, fofoca não edifica ninguém.

— Mas não foi eu quem começou. Eu só queria saber o final da história.

— Não-e-di-fi-ca — respondeu, categórico, como uma professora de português frustrada e irritadiça. Recebeu o apoio e as risadas do restante da mesa. — É por isso que eu indico terapia, saímos tão melhores de lá, entendes?

— Entendo — respondeu a garota sem nome com um sorriso contido. 

— Espero que a terapia do Tonho esteja em dia — eu disse. — Eu também precisaria de algumas sessões caso me acordassem no meio da madrugada só pra bancar a babá, né, Bia?

Beatriz, bêbada, adorou a piada, exceto o rapaz da barba de tufo. Em retribuição, ele semicerrou os olhos na minha direção e mordeu o canto dos lábios, uma prévia daquilo que só os mentalmente estáveis e saudáveis, treinados nos mais eficientes consultórios da cidade, eram capazes de fazer:

 — E tu, amigo? És conhecido da Cecília, né?

— Sou sim.

— De onde mesmo?

— Fizemos Letras juntos.

— Ah. Estás junto com ela no mestrado?

— Não.

— Então já terminaste?

— Não.

— Não foste aprovado?

— Nem sequer tentei.

— Que pena. Por quê?

A garota sem nome me olhou, apreensiva. E também curiosa. E também, acima de tudo, em tom encorajador, dizendo-me vai, tu consegues, vai ser fácil.

— Porque eu não sou tão inteligente quanto ela, nem emocionalmente estável pra lidar com as cobras do meio acadêmico.

— Oh, que pena. Te indico terapia. É sempre bom. Aprendemos a lidar com as emoções que não controlamos, nos auto controlamos, e a partir disso lidamos de forma mais madura e segura com o mundo. Sabias? 

— Fico grato pela preocupação. Podes me indicar a tua terapeuta?

— Amigo, ela é um pouco disputada, vive com a agenda cheia. O preço também é um pouco amargo. Mas, claro, posso te indicar, sim, se quiseres.

— Ela é behaviorista? Com certeza deve ser, né? Tu tens muita cara de fazer terapia comportamental. Imagino que deva ser importante aprender a lidar com os fatores externos pra se empenhar nessas mudanças ambientais, né não? Deves estar dando um baita trabalho pra coitada, coitada.

O barba tufada trincou os dentes.

— Então tu entendes alguma coisa sobre isso?

— Ué, ninguém nem me perguntou se eu entendia ou não.

A garota sem nome balançou os dedos, assertiva.

— Tu és colega da Cecília, né? — Perguntei.

— Na verdade, do Júlio.

— Ah, viu? Tá explicado. Ele também não me perguntou se eu conhecia qualquer coisa óbvia sobre as coisas óbvias.

A garota sem nome conteve outra risada. 

— O importante, amigo — imitei o tom de voz do sujeito: extremamente polido e respeitoso, empenhando o malabarismo oratório de soar evoluído e elucidativo. Uma punheta insuportável —, é não utilizarmos a terapia como argumento de diminuição alheia. Caso contrário, a terapia terá sido em vão. Certo?

— Isso aí — Beatriz exclamou, lançando em minha direção dois joinhas que indicavam que, sim, estaria a um passo de aceitar meu currículo. 

Muito empenhado, o barba tufada continuou:

— Mas se não continuaste estudando, o que fizeste? Dá algum retorno ser professor sem pós? É o que fazes, né? És professor.

— Claro. Dou aula 5 vezes por semana pra 4 alunos diferentes. Mas só nas horas vagas.

— E o que fazes da vida, pelo amor de Deus?

O que fazes da vida? Mostra pra ele, a garota sem nome me encorajou, pouco importando qual fosse a resposta. 

— Eu sou escritor, é o que as pessoas dizem. Tenho alguns contos e poemas publicados. Antologias, revistas, blábláblá. Meu primeiro livro, meu, só meu, tá pra ser lançado. Um livro de contos sobre a temática do amor na cidade das mangueiras: abusivos, absurdos, cômicos, trágicos, violentos. Só que atualmente eu tô me dedicando a uma nova trilogia. Tenho viajado aos interiores do Marajó pra pesquisar. Pretendo escrever um épico romântico ambientado na primeira metade do século XX. Mas, tu sabes, o trabalho tá bem no início e precisei pausar, porque tive que conciliar o treino diário (pratiquem exercícios físicos, faz bem à saúde!) e estudar pra concurso. Banco do Brasil. Tive que aprender matemática básica desde o zero, sabias? Tirei uma nota boa, bem acima da média e do mínimo necessário. Marquei 96 pontos. A redação foi absurdamente fácil. Tô confiante. Com certeza eu passo e viro banqueiro. Estabilidade até dizer chega.  

— Ahh... — ele fez um muxoxo.

— Wooow — Beatriz se animou.

A garota sem nome estreitou os olhos e puxou o celular.

— Qual o teu nome? — Ela perguntou.

Depois que respondi, ela digitou e abriu um sorriso orgulhoso.

— Teu nome já aparece no Google como autor! Que massa!

— Pois é, valeu. Mas tenho um problema com meu nome.

— Ah, é? Qual? 

— Meu nome artístico é o meu nome e o meu segundo nome. Eu sempre usei assim, até nas redes sociais. Meu nome é como qualquer outro nome comum pra caralho. Durante a infância, sempre tinha uma penca de outros moleques com o mesmo nome na sala. E aí eles se diferenciavam pelos sobrenomes. Mas eu usava o segundo nome e era chamado por ele. Isso fez com que eu me sentisse, sei lá, único. Uma falsa sensação de que sou especial, sabe? Eu sou o único nesse estado. Pelo menos o único com esse nome composto e que é escritor. Até hoje as pessoas acham que meu segundo nome é sobrenome e se surpreendem quando descobrem a verdade. Uma confusão engraçada. O problema de verdade é que nome e segundo nome não são bons marketings pra escritores, principalmente em um mundo onde você precisa ser mais marketeiro do que escritor se quiser ser um escritor. 

— Isso não é lá um problema — ela respondeu. 

— Machado de Assis. Guimarães Rosa. Lima Barreto. Clarice Lispector. Rachel de Queiroz. Lucas Neto. Olavo de Carvalho. São grandes nomes da literatura brasileira que usam sobrenomes. Os três primeiros, por exemplo? Nem o nome usam. São tão imponentes que se deram ao luxo de serem aclamados só pelos sobrenomes. Agora, o meu...?

— É verdade, tens razão — a garota sem nome admitiu, reflexiva. Foi a única a entender o tom de ironia em certas citações, ao contrário do restante da mesa. — G.R.R. Martin e até aquele exemplo de ser humano da nossa querida J.K. Rowling. Todo mundo usa sobrenome. Ficam imponentes.

— Tá vendo? 

Ela riu. De repente, a bolinha de ping-pong era nossa. E o monopólio do jogo também. Contrariado, o barba tufada pigarreou:

— E isso te dá algum dinheiro?

— O quê?

— Essa coisa de escrever, de ser escritor. Te dá algum dinheiro?

Era uma pergunta retórica. A acidez escorrendo pelo canto da boca do sujeito era mais do que óbvia.

— Claro, eu não escreveria caso não fosse lucrativo. Que maluco seria maluco de começar a escrever só por puro prazer ou aptidão, só pelo ato de escrever dias e dias e postar na internet pra ninguém ler, pra ninguém comentar, pra ninguém sequer criticar? Ninguém gosta de silêncio, ninguém gosta de ser esquecido ou ignorado. Fazemos isso pelo dinheiro, óbvio. Pelo sucesso e pelo prestígio social. É o movimento artístico neoliberal. Abaixo a fantasia utópica da arte! Hashtag-lucro. É como construir prédios, certo, Bia?

A garota, sorridente, fez um ok com as mãos. 

— Então tu não precisas mais aceitar o currículo dele, Bia.

— Ah, não??? — Perguntou ela, devastada.

— Tá tranquilo, chefinha — respondi. — Desculpa, é que eu nunca conheci uma CEO de engenharia. Precisava arriscar a experiência.

Beatriz assentiu. Levantou-se da cadeira e me empregou um abraço apertado. Apontou pra mim e disse:

— Aguardo teu email na segunda-feira, vadia!

— Aliás, a garota que detonou o Ricardo Salles é a tua amiga? A amiga dos conflitos de terra? — Perguntou a garota sem nome ao barba tufada.

— Sim.

— Adorei a leitura dela. O que vocês acharam? — Se eu a conhecesse melhor, quase diria que as palavras saíram carregadas da mais sutil, nobre e gloriosa ironia.

O sujeito relaxou. E sem entender muito bem, concordou. As cópias dele e as cópias de Beatriz também concordaram. 

— De fato, a Gabi sempre teve uma eloquência muito bonita — disse ele. — Na escola ela escrevia muito, tinha até um blog onde escrevia textinhos. Nós adorávamos. Ela sempre foi muito crítica e engajada, principalmente nas causas humanitárias. Ela é uma querida. No geral, adorei quase todas as leituras que fizeram, menos a daquele doidinho que leu um poema de amor. Pelo amor de Deus, né, gente? Alô, existem coisas mais importantes acontecendo.

— Certamente — respondeu uma das cópias do barba tufada.

— Disse tudo, amigo — retrucou uma das cópias de Beatriz. 

— Patético.

— Surreal.

— A Amazônia tá queimando, manaaaaas.

— Isso aí, vadias — Bia contribuiu.

— Qual é? Na verdade, gostei muito mais do poema de amor que ele leu. Foi bem fofinho — a garota sem nome admitiu com a voz ardida 

— Mana, viajaste — acusou o barba tufada. — Isso não é hora nem lugar.

— Oxi, o anfitrião anunciou que o microfone tava liberado pra “qualquer leitura” — ela os relembrou. — E olha que vocês aplaudiram e até ousaram chamar toda aquela coisa superficial e elitista de “expressão artística”. É muito importante falar em nome dos outros, mas cuidado, não deixemos que os outros falem. Ninguém quer abrir mão do protagonismo. Olha só, eu mesma tenho que estar dizendo isso porque vocês não tiveram a decência de ter uma amizade indígena ou preta nessa mesa pra sequer contestar esse evento de esquina — ela riu, ácida. — Depois de tantas palavras sábias, repletas de críticas indestrutíveis e profundamente... profundas... acho que o cara merecia recitar o próprio poema de amor. Achei justo.

— Alô, a Amazônia está em chamas! — Exclamou o barba tufada, revirando os olhos. — Isso aqui não é um sarau, por favor. Não é poema que vai prender garimpeiro.

— Nem o ato revolucionário de filha de dono de terra que vai apagar o fogo na floresta. Acho que, inclusive, pelo contrário — retrucou ela.

— Wooooow — Beatriz ergueu os braços.

— Querida, quem és tu mesmo?

A garota sem nome sorriu um sorriso leve. Os olhos de jabuticaba também sorriram. Então curvou-se para pegar o copo de cerveja. Bebeu calmamente, um gole fundo, bem fundo e sem pressa, típico de alguém habituada que não sentia enjoos nem golfadas, apenas deleite. Obrigou cada um naquela mesa a prestar atenção nela, a aguardá-la, a ansiá-la, como jamais cogitaram fazer durante toda a noite. Ensaiou uma resposta que pareceu estar na ponta da língua por muito tempo. Deliciou-a. Degustou-a. E um segundo antes de cuspir, resolveu engoli-la. Eles não a mereciam. Não valia a pena.

Por fim, respondeu:

— Ninguém.

O barba tufada bufou. Há muito havia aberto mão de sua elegante masculinidade e da pretensiosa desconstrução machista adquirida numa sala de análise, com sua falsa polidez e dissimulada cortesia. Ele até articulou uma resposta. E retrucou com muita elegância e pompa. Nisso era hábil e venenoso, mas nenhuma das escolhas soou tão bem quanto o golpe final da garota sem nome.

Encerrado o assunto, a Amazônia continuava queimando,

os idiotas continuavam amando

e o Ciclope, cego,

sem nem saber,

jazia caído. 



II.

Só os profetas enxergam o óbvio




Eu tinha um copo de cerveja vazio nas mãos. Meia hora já havia se passado quando desisti da busca por Cecília. Conferi a tela do celular. As mensagens eram entregues, porém não visualizadas. Ela não fazia sequer questão de atender as ligações. Olhei para o fundo da carteira: meus cinco reais continuavam ali, mas àquela hora não haviam mais ônibus na cidade das novas-velhas-ideias. Sentei na beira da calçada, na verdade em uma vala seca afastada das mesas. A três metros de distância, bem na esquina, um grupo de jovens compartilhava becks, frases feitas, fofocas e flâmulas debaixo de um poste mal iluminado.

— Ei — Cecília chamou. Ela se sentou ao meu lado. Manteve o aspargo dos olhos perdido no horizonte da rua.

— Tô te procurando há meia hora, Cecí. Onde tu estavas?

— Tava com o Júlio.

Vagarosa, ela acendeu um cigarro. Ofereceu-me um. Neguei.

— O que aconteceu?

Ela tragou, pensativa. Permaneceu inerte, presa ao horizonte.

— Cecília, o que aconteceu?

— Promete que não vais fazer nada?

Suspirei fundo, antevendo a merda.

— Claro que não.

— Me promete.

— Achas que eu vou partir pra cima dele? Quebrar o cara?

— Se fosse isso, eu ia preferir que sim. Nem faz teu estilo, isso é o que me preocupa.

Ante o silêncio irritante de Cecília, fechei a mão e estiquei o dedo mindinho direito. Ela retribuiu com o mindinho esquerdo, entrelaçando-os.

— Fui procurar o Júlio — ela disse. — Fui no banheiro e nada. Fui em outro banheiro e nada. Fui em muitos outros banheiros onde ele poderia estar e nada.

— Onde ele tava?

— Bom, ele não tava no banheiro. Mas tava com o pau pra fora. Dentro de uma branca anêmica do olho azedo. A mesma que leu um memorando muito profundo sobre manterem a Amazônia de pé com a força da empatia. 

— Ah. Caralho. Puta que pariu. Que merda, Cecília. Eu sinto muito. 

— É. Tanto faz. 

Olhei em volta à procura do filho da puta. Ela pôs a mão sobre a minha.

— Tu me prometeste.

— É, prometi. 

Ela suspirou.

Eu suspirei.

— Pelo menos ele é concursado.

Cecília me fuzilou com os olhos, incapaz de aceitar a piada. Depois, com algum esforço, deu-se por vencida. Não era a maior das quedas que ela já havia levado, nem a pior delas. Seria só mais uma. Só mais uma. E por isso, com elegante tragédia, acabou rindo.

— Que merda a gente tá fazendo aqui? Nessa noite? Nesse lugar? Qual a moral que fica? — Ela perguntou.

— Acho que a gente veio pra lembrar das coisas óbvias. Pra lembrarmos dos lugares óbvios. E das obviedades de nós mesmos.

— Essa foi a coisa menos óbvia que eu escutei hoje.

Ela sorriu e acendeu outro cigarro. Me ofereceu um trago. Apontei para a carteira e ela me entregou um não aceso. Pus o cigarro entre os lábios, porém neguei o isqueiro. Mantive-o ali, pendurado, sentindo o forte e repulsivo sabor da nicotina na ponta da língua.

— Acho que a tua observação mascarada de intuição tava certa — ela disse.

— Me desculpa, não quis te jogar praga nem nada do tipo.

Ela deu de ombros, agradecida. 

— Sabe, quando você não sai de casa as chances de merdas te acontecerem são mais baixas — eu disse. — Se você fica protegida, recolhida, sossegada, merdas não acontecem.

— Se você fica protegido, recolhido, sossegado — ela repetiu. —, nada acontece. 

— O nada é melhor, é mais tranquilo. Não tem muita coisa aqui fora que valha a pena. Só virose, maldade gratuita e punhetagem discursiva.  

— É por isso que tu não tens saído de casa?

— Também.

— O que tá rolando contigo?

— Sei lá. Não importa.

Ela sorriu. Agora uma risada forçada, indignada, absurda. 

— Cara, pra mim isso não passa de drama. Não o que tens sentido ou o que te trouxe aqui, mas como tens reagido a isso. Eu não sei o que tá rolando contigo, mas quanto mais tu fizeres isso, pior fica. E queres saber? Tu podes sumir quanto tempo for, se enfurnar no quarto, abraçar o que tu julgas ser a tua derrota ou o teu fracasso, mas e daí? Quem foi que escreveu que, a vida, mesmo injusta, continua? Ninguém se importa, cara. Ninguém liga. As pessoas não se importam, elas não ligam.

— É. Não ligam.

— Mas eu ligo — ela me apontou os dedos de unhas bem alinhadas com anéis gigantescos em tom severo. — Só nós dois nos importamos um com o outro. E seja lá o que estiver acontecendo, eu vou saber. Porque eu vou te ligar e tu vais me atender. 

— Ok.

— Mas não hoje, tá? Hoje eu tô fodida pra caralho. 

— Eu sei. Eu sinto muito. Eu te levo em casa.

— Não. Não precisa. Eu não quero. É aquele lance de ficar sozinha, de chorar sozinha, de sofrer sozinha e depois de cair no sono. Sozinha. Tu entendes, né?

— Claro. Eu sempre choro antes de dormir. É melhor que remédio. Tu ficas exausto, com os olhos cheios de remela, o nariz escorrendo, entupido de choro e entupido porque o vento do ventilador tá em cima de ti pra matar o calor absurdo do capitalismo desenfreado queimando a Amazônia e aí… Aí eles pregam, os teus olhos pregam, tu cansas de chorar, ficas tão cansado que esquece o tamanho da tristeza, então finalmente cai no sono e acorda melhor no outro dia. 

Ela riu.

— Essa é a minha garota.

Sem nada a dizer, ela concordou e deitou a cabeça no meu ombro. Assim ficamos enquanto os jovenzinhos da esquina queimaram todo o beck e sonharam todas as fantasias da juventude - acessórios que igualmente nos serviram dez anos atrás, quando os vinte anos pareceram uma aventura duradoura e promissora. Entretanto, o corpo ganha forma: tatuagens se acumulam com relatos de dores, barrigas ficam protuberantes nos mais azarados, as curvas das pernas e dos braços dos quadris ganham flacidez, incham, aproximam-se das primeiras imagens claras de nossos pais, quando nos damos conta de que eles são adultos, de que aqueles são corpos de adultos e que assim seriam todos os adultos - crianças perdidas e encorpadas, carrancudas perante os mais jovens, fingindo que de alguma coisa sabem, porém, acima de tudo, sendo desrespeitadas diante do pouco que aprenderam, do muito que viveram e de todos os túmulos que carregam. E dez anos atrás, quando os jovens de hoje não passavam de meras crianças empolgadas com os novos palavrões que aprendiam, naquelas mesmas esquinas e sob aqueles mesmos ideais estávamos nós, no auge e no início dos vinte, mais sonhadores e mais sorridentes e com alguma flâmula, a mesma flâmula, ainda incandescente, em algum lugar aqui por dentro quando aquelas ruas consumiam nossas próprias histórias, fossem elas esporádicas de uma noite, fossem elas frequentes de assíduos finais de semana. Dez anos de diferença eram pouca coisa e ao mesmo tempo carregavam consigo a gravidade do universo. E agora estamos na vala, recolhidos e nos acolhendo, observando a estas novas vidas caminharem por onde caminhamos, por onde vivemos, por onde flertamos com sonhos afogados e nos comprometemos com a tristeza patológica da rotina e do fracasso. Estas ruas que nos são nostálgicas, tenham por nossos pés sido pisadas ou não, agora nos encaram deterioradas de memórias, como as metas que largamos na esquina. Meros estranhos, estrangeiros nativos, os outsiders que nem os mais jovens reconhecem e que um dia eles também serão, se assim tiverem sorte.

Custou tempo demais para que ela pedisse um Uber e ainda mais tempo para que o carro chegasse. Quando o sujeito estacionou, Cecília se afastou, mas a impedi de partir. 

— O que foi? — Ela perguntou.

— Eu preciso voltar pra casa — abri a carteira e revelei os cinco reais.

— Meu Deus, me desculpa — ela remexeu na bolsa e me entregou uma nota de vinte e outra de dez. 

Devolvi a segunda nota. 

— Isso já serve. Depois te devolvo — eu disse. — Juro.

— Não precisa, para com isso.

— Precisa sim. Cacete, eu tenho que te devolver. Eu preciso. Só assim vou manter minha dignidade intacta… ou o que quer que tenha sobrado dela.

Dessa vez foi ela a me acariciar o rosto.

— Acho que agora entendi o que tá rolando — ela respondeu. — Entendi tudo. Vou te esperar me devolver o dinheiro, capiche?

Capicho

E abriu a porta do carro. Antes de entrar, falou:

— Desculpa pela noite. Aquele monte de gente babaca são todos amigos do Júlio.

— “Diga-me com quem andas e digo-te que já sabes o resto”. Não sei quem foi o esquerdista maconheiro que disse isso, mas ele tava repleto de razão, Cecí. Tens que rever teus círculos.

— Ah, é?

— É. Faz que nem eu.

— Que não tens nenhum?

— Ei, claro que tenho. Meu círculo é tu. E eu tô bem acompanhado.

Ela balançou o ombro, satisfeita.

— Enfim.  Tinha uma garota lá... a da camisa do Exorcista — comentou, apressando as palavras para que o motorista do Uber não arrancasse num cavalo de pau. — Ela era legal. Ela só apareceu do nada, ficou por lá e… foi ficando. Conversei o suficiente com ela pra saber que era gente boa, gente boa de verdade. Eu ia te apresentar, só que nem deu tempo. 

— A garota sem nome. Sei quem é.

Garota sem nome — Cecília repetiu, reflexiva. — Tenta, sei lá, só falar com ela. Vocês parecem odiar o mundo de um jeito parecido.

— Qual o nome dela?

— Por que não perguntas pra ela?

— Tu acabaste de dizer que ias me apresentar. Qual o nome dela?

— Garota sem nome — ela brincou.

— Vai logo, Cecí. Diz logo, adianta aí. Isso não é um último tango em Paris. Isso nem é Paris. E graças a Deus Bertolucci e Brando estão mortos.

Por fim, revelou-me a informação. 

— Obrigado.

— Só tenta, sei lá, falar com ela. Tipo em uma das tuas histórias românticas onde o amor salva a noite. Vai saber, né?

— É, vai saber.

Ela me deu uma piscadela e entrou no carro. 


Encontrar a garota outrora sem nome não foi tão difícil quanto procurar por Cecília. A primeira hora da madrugada já se aproximava do relógio e isso significava que ainda era cedo para retornos. Cruzei com ela no lugar mais provável de se encontrar alguém que bebia desde às dez da noite. Quando saiu do banheiro e me viu, ela alargou um sorriso (e esta não me é uma memória carregada de revisionismo ou de convencimento), o que a julgar pelo meu estado de ânimo, pela carranca apática e indolente, era incomum.

— Ei — eu disse.

— Oiiiiiiii — ela me chamou enfática, utilizando meu nome e sobrenome como vocativo. Apesar disso, não estava bêbada. Aparentava sórdida sobriedade. — Achei que tivesses ido embora ou tido uma síncope de criatividade.

— Ainda não, mas valeu pela expectativa.

— O que aconteceu? Eu te vi sair e tu não voltaste mais.

— Não precisava acontecer muita coisa pra eu querer sair correndo daquela mesa.

— Olha… tens razão.

Ela não desviou os olhos de mim. Não é outro revisionismo convencido, não é a fé de que ela estava profundamente interessada ou atraída por mim — tampouco isso. Não. Não eram olhos femininos de jabuticaba dando aberturas, eram olhos dos quais eu não estava mais acostumado (à exceção de Cecília): de quem presta atenção, de quem se dispõe a ser minimamente cortês, educada e humana. Era um olhar sincero, minimamente interessado em ser cordial, em crer que diante dele havia outra pessoa a ser ouvida e notada, o olhar de alguém que sabia o quanto o esquecimento era o início da inexistência humana. Entretanto, por um breve momento ela se dispersou de nossa conversa entrecortada e banal. Buscou por sobre meus ombros, para além da pequena multidão e dos passos que iam e vinham. Buscou. Buscou. Não encontrou. Notando o próprio desvio, voltou a me olhar. Os olhos pretos eram gigantes e se encaixavam perfeitamente entre o nariz alongado e as bochechas bem formadas, tão gigantes que me fizeram desviar de sua direção quando busquei amparo na noite, na luz do poste ou em qualquer outra distração inexistente que verdadeiramente não me chamava a atenção. 

Balbuciei qualquer assunto oportuno, arrisquei qualquer coisa, mas voltei atrás quando novamente os olhos dela se desviaram e reacenderam diante da chegada de outra pessoa. O sujeito, meio sem jeito, colocou-se ao lado dela, anunciou que iria ao banheiro e que em seguida retornaria pra que a gente possa ir. 

O rapaz nos era mais que conhecido e bravamente apreciado.

— Ei, tu és o cara que leu o poema de amor — eu disse.

— Isso. 

— Eu gostei demais do teu poema, parabéns.

— Pô, mano, valeu — respondeu sem muita confiança.

— Ele foi a outra pessoa que defendeu o teu poema na mesa — a garota outrora sem nome mencionou. — Confia, ele realmente gostou.

Aliviado e menos evasivo, o rapaz relaxou os ombros e se deu por convencido. Não era muito difícil não confiar na garota, principalmente quando era uma hora da manhã de um sábado e você já estava totalmente envolvido por jabuticabas em chamas.

— Inclusive, ele gostou porque é escri…

— Sou só um apreciador de poemas de amor — eu a interrompi no meio da apresentação. — Só isso. Assisti a muitos vídeos de poemas do Drummond e do Vinícius de Moraes no Youtube quando era moleque ao invés de, sei lá, bater punheta pra jogador de futebol. Tá certo que me arrependo pra caralho disso, mas tu sabes, é um caminho sem volta.

Os dois riram. Ele bem menos que ela. O rapaz a deu um beijo afirmativo na bochecha para plantar algum sinal, alguma indireta ou algum recado territorialista. Acenou para mim e partiu. Pelo menos ele parecia um sujeito honesto, desses que realmente dariam uma mijada ao invés de caçar uma presa indefesa.

— Eu disse que ele era fofo — ela comentou, desconcertada.

— É, disse mesmo — eu sorri, igualmente desconcertado e desabituado com o fato de que aqueles olhos ainda me olhavam como se eu fosse, sei lá, um ser humano.  

— Cadê a Cecília?

— Ah… já foi embora. A noite não terminou muito bem pra ela.

— Por quê?

— O filho da puta do Júlio tava comendo outra enquanto a Cecília procurava ele por aí. 

— Que filho da puta!

— Que filho da puta. 

— Não acredito. Ele pagava tanto de apaixonado por ela. 

— É… desgraçado filho da puta.

— Como ela ficou?

— Fodida. Tentei fazer companhia, mas ela não quis. É só a primeira noite, o pior vem sempre depois.

— É, pois é. Só o amor pode quebrar o seu coração, né? 

Olhei-a com estranheza. Ela me devolveu o olhar com a mesma estranheza.

— Neil Young — eu disse.

— Neil Young — ela confirmou.

Desviei mais uma vez das jabuticabas. Ah, merda.

Distante delas, reuni alguma coragem:

— Eu tava te procurando pra pedir desculpas. 

— Desculpas? Por quê?

— Pelo que rolou na mesa.

— Oxi, mas tu não fizeste nada demais.

— Fiz sim.

— O quê já?

— Eu menti.

— Sobre…?

Respirei fundo.

— Eu menti sobre muita coisa quando falei de mim. Olha, eu não trabalho cinco vezes por semana nem dou aula pra quatro alunos diferentes. São só duas vezes na semana, e nem toda a semana, pra um moleque mimado de 13 anos que é mais eficaz em detonar a minha autoestima do que eu próprio. E eu só não mando ele tomar no cu porque essa é a minha principal fonte de renda. Eu não passei em concurso público algum, eu não sei matemática básica e eu não faço longas viagens ao Marajó pra pesquisar pra um segundo romance, porque eu não tô escrevendo nenhum romance, que dirá um segundo. Isso tudo são coisas que uma personagem de um conto que tô escrevendo conseguiu, porque ela, sim, é bem-sucedida, e ainda assim, no atual enredo, ela tá fodida com o casamento à beira do colapso enquanto precisa ter forças pra escrever sobre um romance épico marajoara. Ela, sim, tá escrevendo livros. Ela, sim, passou em um concurso público. Ela sim, seria capaz de dar aula cinco vezes na semana porque ela, sim, seria madura o suficiente pra aguentar ou lidar com um pirralho de 13 anos ou com 40 pirralhos de 13 anos que têm mais segurança pra serem uns babacas nessa idade do que eu tenho, na casa dos 30, pra ser um cara minimamente autoconfiante. Puta que pariu, eu não consigo sequer terminar esse conto. Tô preso nele há dois meses. E queres saber? Nem essa merda eu fumo, nem dessa porcaria eu gosto — de repente me dei conta de que a haste de câncer fedorenta que Cecília me dera ainda permanecia entre meus lábios enquanto subia e descia a cada palavra.

Na falta de fumantes por perto, joguei o cigarro no lixo. 

— E por que tu mentiste?

— Porque eu lido com esse bando de filho da puta a todo momento. Tem sempre alguém mais bem sucedido querendo cantar vitória, enchendo o peito e sendo polido, muito bem educado, refinado e “mentalmente saudável” pra te dizer que você é um merda, que você fracassou, que sequer te escuta ou presta atenção em ti quando você fala, porque tá preocupado demais enchendo o próprio ego, contando vitória, se afastando das derrotas, como se a derrota não o atingisse, como se a derrota não fosse um fator humano, uma coisa comum, e acima de tudo ficam falando, falando, falando… exatamente como eu tô fazendo agora

Um breve silêncio recaiu sobre nós. Mas a garota outrora sem nome mordeu os lábios.. 

— Exatamente como tu estás fazendo agora — confirmou ela.

— É, pois é, né? É cansativo estar sempre por baixo e lidar a todo momento com gente bem-sucedida. Gente bem sucedida me irrita. Sejam propositadamente convencidos ou não. Não me importo, não tenho preconceito. Me irritam igualmente.  E por isso eu só queria me desculpar por ter mentido, porque tu foste a pessoa mais legal que eu conheci essa noite e eu não queria ir embora sem, sei lá, saber o teu nome ou te dizer que eu menti. A verdade é que tudo tá cheio de mentiras. Eu vivo mentindo pra mim mesmo sobre um monte de coisas e a verdade, a única verdade, é que dizer a verdade, de maneira sincera e bondosa, é o que vale de alguma coisa, “porque gritamos quando nos queimamos”. Sabe, é como o rapaz ali do poema fez: era a verdade dele e ele a disse. O maluco leu um poema de amor em voz alta pra um bando de intelectualzinho de merda. Ter esse tipo de coragem, de dizer a verdade, essa é a obviedade da noite. Os profetas sempre souberam disso.

— De todas as coisas que foram ditas naquela mesa, teve alguma que não foi mentira?

— Meu nome composto.

— Eu sei, eu vi no Google. Mais alguma?

— Eu realmente vou publicar um livro de contos, o meu primeiro livro.

— É, né? Também vi no Google. 

— Sabe o que não dá pra ver no Google? O quanto eu tô tão fodido que essa “vitória” nem faz diferença. Eu tô tão envolto em fracasso que o meu primeiro livro, que era o meu maior sonho, não tem feito diferença alguma. A Amazônia tá queimando e o que eu deveria ter feito era plantar uma árvore.

— Seria uma boa também. 

— Eu só queria me desculpar por ter mentido, eu já mencionei isso? Eu não sou vitorioso como todo mundo já é aos vinte e poucos anos. Égua, a garota vai fazer 22 e já tem duas estagiárias? Que mundo é esse? A outra galera que chegou aos trinta já tem família, emprego, estabilidade, diploma, mestrado ou doutorafoda-se. Eu sou só feito de uma monte de derrotas, como um fracassado comum em um mundo absolutamente comum e ordinário. Essa é a verdade que eu queria ter dito. Que eu queria ter te dito. 

— Eu entendi.

— Que bom.

— Tu sabes que despejando esse monte de coisas é mais fácil me assustar do que me impressionar, né?

— Eu não quero te impressionar.

— Ah, não?

— Se eu quisesse te impressionar, eu mentia.

— Tu mentiste.

— Tu entendeste.

As jabuticabas se espremeram num sorrisinho cínico.

— Mas e aí? Tu queres que eu banque uma manic pixie dream girl pra te aliviar dessa angústia?

— Pior que não.

— Ah, pior que não?

— É, ué. Pior que não — balancei os ombros, arteiro. — A cura que eu preciso não tá em uma mulher ideal ou descolada.

— Tá onde?

— Se eu soubesse, não estaria aqui agora reclamando.

— Reclamar é bom — desabafou ela.

— É um direito ontológico — complementei.

— Mas então: eu não sou uma mulher ideal e descolada?

— Ideal? Nem tanto, controla essa autoestima aí. Descolada? Sim, com toda a certeza. 

A garota outrora sem nome torceu os lábios em algum sinal que poderia ter sido misericórdia, compaixão ou pena. Optei pela compaixão. Este, sim, é meu revisionismo sobre a memória daquela noite.

— Janaína — disse ela após um breve silêncio. Então estendeu a mão. — Meu nome é Janaína.

— Prazer, Janaína — respondi com um aperto de mão, como se já não estivesse em posse da informação o tempo todo. — A Cecília já tinha me contado teu nome.

— Hum. Então por quê…?

— Eu precisava fazer por merecer, né?

— Ah, que babaca! — Ela riu. — Mentiroso. 

— Viu? Isso sim é impressionar.

Ensaiei um tchau, um até logo e um desculpe-me pelo inconveniente, no entanto as jabuticabas flamejantes exigiam mais.

— Ué, é só isso? — Perguntou ela.

— Sim, é só isso. 

— Ok.

— Ok. 

Olhei por sobre os ombros dela na direção do banheiro. O rapazinho ainda não havia retornado.

— Certo. Ok. Beleza. Que tal me dares o teu número?

— Não — ela negou. — Sem chances.

— Tá bom — assenti e me virei.

— Idiota — ela disse. — Mas eu posso ir no lançamento do teu livro. Fiquei interessada no tanto de bobajada autodepreciativa que vai ter nele.

— Ah, mas quando. A verdade é que na época em que escrevi eu até tinha alguma autoestima.

— Aqui, toma — ela me entregou o celular desbloqueado, a contragosto da própria negativa. — Anota teu número.

Acatei a ordem com profunda satisfação e um sorriso de ponta a ponta. 

— Pronto.

— Ok.

— A propósito, cuida bem do último romântico pra gente. O futuro do romance pós-moderno, o planeta Terra e a Amazônia dependem disso. 

— Deixa comigo! Sabe, pode não ter parecido, mas eu me importo pra caralho com a Amazônia — confessou ela.

— Eu também. Mas também me importo com poemas de amor ou qualquer história de amor. Acho que dá pra fazer as duas coisas sem bancar o evoluídão socialmente desprendido, né?

— É, dá sim.  

O último romântico retornou e segurou na mão dela. Me acenou outra vez com certa insegurança, como todo bom romântico sem muito experiência faria, sobretudo sob os encantos de um imponente pé de jabuticabas. Demos as costas e seguimos para a noite, quando ouvi meu nome e sobrenome serem chamados novamente.

Janaína me acenava à distância.

— Oiiii — ela chamou. — Esqueci de te dizer uma coisa.

— O quê?

— A Larissa Manoela.

— O quê?

— A Larissa Manoela — ela ria.

— O que é que tem?

— Ela é uma pessoa legal, né?

— É sim.    

— Então! A Larissa Manoela usa só o nome e o segundo nome. Ela não precisa de sobrenomes. Ela tem sucesso no que faz. E é uma pessoa legal.

— E é pobre como a gente.

— E é pobre como a gente — ela repetiu, ao lado do último romântico que aguardava ao término do diálogo sem nada entender. — Então desencana e não liga pra isso. É besteira. É um bom nome composto. Continua usando, ok?

Balancei a cabeça devagar, livre de um peso que me assolou por muito tempo. Livre, finalmente livre. Não ironicamente.

— Ok. 

Os dois desaparecem de mãos dadas em meio às mesas e à pequena multidão. A noite ainda fervilhava, mas eu tinha sono e nenhuma outra função a cumprir. Um estrangeiro fracassado e invisível que, vez ou outra, por alguém ainda era notado.

Por hábito, abri a carteira e chequei o conteúdo: vinte e cinco reais residiam, imponentes, no fundo dela. Sorri agradecido, na esperança de que a noite não fosse tão turbulenta para Cecília. Mas como todas as esperanças, elas eram vãs. E o que vinha no dia seguinte era sempre mais doloroso: a insistência e a certificação de que sonhos ruins eram melhores que a realidade, pois ao menos eles eram passíveis de interrupção. Não que ela já não tivesse passado por pior. Não que eu já não tivesse passado por pior. No entanto, toda essa merda era como a apatia da criatividade. O cursor piscando, piscando, aguardando pela próxima palavra, pelo próximo passo ou pelo iminente silêncio, qual Noemí de braços cruzados sobre o parapeito de metal, observando as águas barrentas cortadas pela proa do navio ao observar um futuro incerto, envolto pelo nada, pelo bloqueio e pelo sufocamento da vida vazia onde somente a página em branco jazia.

Quando nada acontece,

então, 

bem,

nada acontece.  

Simulei a corrida no aplicativo de volta para casa.

18,96 R$.

E confirmei partida.