29 de novembro de 2022

Pes maledictus


 

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Menino Ney, não me decepciona

Menino Ney, vê se não faz vergonha

 

(Menino Ney, Diogo Defante)

 

 

 

Poucos frequentaram as aulas na sexta-feira. O prédio da faculdade estava vazio, apenas os funcionários da limpeza, as tias da lanchonete, o porteiro e as coordenadores do curso faziam coro à escassa multidão. Além de Caio, doze pessoas de uma turma de vinte e cinco estavam na sala. O restante estaria, pelo que ele constatou nos stories das redes sociais, agora deitado com a cabeça latejando, ingerindo água gelada ou consumindo ampolas de epocler para curar a ressaca. A cabeça de Caio ainda zumbia devido à bebedeira da noite anterior, mas não deixaria de frequentar a aula. Trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles vagabundam, era o clássico bordão do pai, naquele tom de trovejo intempestivo que ditou toda a vida de Caio e da irmã caçula desde a infância. E desse conhecimento popular o filho não contestava, pelo contrário: vivia-o com disciplina. Só assim faria jus ao nome da família e mereceria o império jurídico de renome construído pelo Dr. Otávio Diniz.

Caso estivesse com severa ressaca, em condições precárias, cabeça pulsando além do normal e estômago embrulhado, certamente não deixaria de frequentar a aula. Nisso, ao contrário dos colegas, Caio era exemplar: levava a qualificação a sério, estampava o estudante de Direito na descrição do Instagram com muito zelo, compromisso e responsabilidade, e a isso jamais deixaria de honrar. Acima de tudo, não deixaria de frequentar as aulas de sexta-feira pois eram suas favoritas.

O Dr. Jânio Vasques ministrava a disciplina de Direito Penal há 35 anos, desde que participou da criação da União das Faculdades Superiores do Pará, a UNIFASPA, instituição particular de maior renome da região amazônica. O homem, embora muitos chorões o chamassem de dinossauro, Dr. Jurássico ou velho defasado (a exemplo dos grupinhos mais progressistas), inegavelmente era um pilar vanguardista na área. Amigo pessoal do pai de Caio, além de um mentor em vida particular, era uma inspiração para o rapaz. Portanto, nenhuma aula dele ousaria faltar, nem sob a mais fulminante das ressacas pós-vitória da seleção brasileira.

Naquela manhã, o Dr. Jânio dedicou as três aulas – que, na verdade, não passavam de grandes digressões e parênteses – para falar sobre o argumentum ad hominem. Embora a cefaleia estivesse comprimindo o crânio de Caio naquela manhã, porém de maneira menos severa que imaginou, o jovem herdeiro do império Diniz não vacilou a atenção. Graças ao vazio da sala, fez questão de sentar-se na primeira cadeira, a fim de não espremer os olhos para enxergar melhor sob as lentes retangulares dos óculos. Já havia estudado a respeito de tais falácias argumentativas em disciplinas anteriores, porém nem as professoras supostamente mais especializadas nisso eram tão didáticas e competentes quanto o Dr. Jânio. Na ânsia de se fazerem profissionais e de tentarem provar algo que ao público já estava claro, as professoras perdiam a objetividade e conservavam um tom maternal irritante, naquela frequência física de som (já comprovada pela ciência) em que homens como Caio não conseguiam se concentrar por mais de cinco minutos. Ver o assunto ser abordado de forma tão contextualizada por seu mentor intelectual era de uma experiência das mais enriquecedoras.

Dr. Jânio abordou os mais contemporâneos exemplos dos ad hominem e como tais falácias se tornaram uma regra na sociedade, sobretudo com o advento das redes sociais e com a proliferação de movimentos sociais. É uma argumentação muito comum àqueles que não possuem conhecimento, polimento ou educação, disse o Dr. Jânio. Portanto, é comum vê-la acontecer frequentemente na boca do povão que não tem muita noção de nada, ele se divertiu com a própria frase, proferida pela voz metálica com cheiro de tabaco. Todos riram com ele. Citou, por exemplo, o recente debate eleitoral do segundo turno, quando o candidato Luis Inácio Lula da Silva acusou Jair Bolsonaro de ser defensor do aborto ainda na década de noventa, em detrimento de sua atual posição sobre condená-lo, tudo com o intuito de desmoralizar o adversário. Isto, explanou o Dr. Jânio, é uma variação do argumentum ad hominem, conhecida como tu quoque. No tu quoque, que em latim significa tu fizeste ou você fez, notem o quanto os grupos de esquerda a utilizam, querendo apontar hipocrisia e atacando o que o sujeito já fez ou defendeu no passado. É uma das formas mais absurdas do ad hominem. Nos debates entre os candidatos no primeiro turno, vocês lembram que muitos deles atacavam o presidente por já ter sido preso por um infeliz planejamento de ataque ao quartel ou por ter sido humilhado por ser assaltado na rua e ter a arma roubada? Os candidatos utilizaram exaustivamente esses "argumentos" para inviabilizarem a defesa dele ao armamento da população, como se todos esses erros passados o desqualificassem de defender uma proposta (e neste momento ele apontou para a frase “ARGUMENTO BEM CONSTRUÍDO E, PORTANTO, VÁLIDO” escrita no quadro) ou governar um país. A condenação que ele recebeu foi única e exclusivamente do exército, e, portanto, não jurídica, o que nunca o impediria, nem o impediu, de ingressar na vida política. Condená-lo ou desqualificá-lo por uma tentativa falha de ataque ao quartel, por um assalto que sofreu ou por supostos envolvimentos com rachadinha, não declaração de impostos ou compra de imóveis com o próprio dinheiro conquistado, enquanto usa o combate a corrupção como um dos carros justos e chefes de campanha, é um claro exemplo de argumentum ad hominem do tipo tu quoque. Compreendem? Todos balançaram a cabeça, afirmativamente, em silêncio. Compreende, Diniz? Perguntou o Dr. Jânio a Caio, referindo-se sempre ao sobrenome da família. O rapaz respondeu que sim. O professor prosseguiu.

Portanto, disse o Dr. Jânio, tenham em mente que todo argumento possui um viés. Vieses são a base sólida para que tenhamos fundamento sob nossas opiniões e para que possamos defendê-las com argumentação bem construída. Até o mais vil argumento possui um viés. Imaginem só: certa vez, frequentei um jantar de amigos onde um rapaz, desses bem espiritualistas e progressistas, refutou as opiniões de um colega porque ele havia se embasado n'A Mão Invisível de Smith. E, portanto, toda a argumentação desse colega estaria fadada à contradição porque, simplesmente, utilizava a obra em questão. Vejam, vejam... Ele exigiu a atenção da turma, enquanto riam com espanto de tamanho absurdo, já inteiramente inseridos na lógica da aula. Este é um exemplo de ad hominem por associação. Se você defende Smith, não será o seu argumento a ser refutado, nem as bases teóricas e reais que Smith tão solidamente construiu, mas a própria persona de Smith. Não importa o que Smith fez a nível acadêmico, de pouco vale a contribuição dele para a economia moderna das grandes nações. O que é refutado aqui é o próprio Smith e o fato de nosso colega ter se embasado nele. Percebem o absurdo? Gosto também de utilizar outro exemplo: há quem diga que as obras pintadas por Adolf Hitler não tenham valor artístico, portanto, criticam suas supostas noções distorcidas de cores ou de perspectiva. Vejam, vejam… critica-se a obra de Hitler não pelo valor ou pelo improvável demérito artístico dela, e sim pelo que Hitler fez durante a segunda guerra mundial. Eis um ad hominem que não refuta as bases do argumento – neste caso, a técnica artística –, mas os atos de Hitler, a pessoa de Hitler, como se tudo o que ele fez em vida estivesse fadado ao que foi cometido naquela época. Gosto de usar esse exemplo porque, hoje, nas redes sociais, muito se apontam as semelhanças de determinados governantes ou ministros a Hitler. Querem um exemplo? Um slogan ser parecido com outro. "Das Lied der Deutschen" e "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” não necessariamente faz menção, de maneira ideológica, ao movimento nazista. Isso não faz o menor sentido, é maldade e enviesamento cínico estabelecer simetrias. Esvazia-se o sentido de Brasil, como nação; esvazia-se o sentido de Deus, como protetor de um país que é 80% cristão. Isso não pode acontecer. Desfaz-se toda a retórica argumentativa, lima-se o debate, chega-se ao fracasso. Outro dia, coitado daquele rapaz, o menino da internet que é famoso, qual o nome dele? Aquele que sofreu ostracismo do próprio canal por defender que há a necessidade da criação de um partido nazista no Brasil. Vejam, neste caso, vemos mais um ad hominem por associação. Não só isso, há um ad hominem também pela pessoa que o rapaz da internet é, já que noto que os movimentos sociais de esquerda pouco concordam com ele. Percebem? O argumentum ad hominem está muito presente em nossa sociedade: ignora-se o argumento, ataca-se a pessoa. Dizem, também, que não podemos debater certos assuntos porque não possuímos "vivência nem experiência" nas situações. Há quem diga que, pelo fato de você não ser negro… preto…. Afrodescendente… Vejam, vejam, tomem cuidado com a utilização do termo, tornou-se complicada essa questão, você é culpado até pelos termos que utiliza… enfim, pelo fato de se viver bem, de se ter um conforto digno, de se conquistar o que tem através de trabalho duro e esforço próprio, por não fazer parte do homossexualismo ou por não ser mulher, você está automaticamente invalidado de tecer opiniões ou contribuições ao debate. É um absurdo, compreendem? Atacam-se as pessoas que proferem o argumento por serem brancos, não favelados, heterossexuais ou homens, ao invés de um questionamento lógico e saudável ao argumento em si. Toda a sala balançou a cabeça, concordando entre risadas absurdas e comentários de apoio. Caio, junto de mais três colegas, levantou a mão e deu início a um debate sobre o assunto, que durou quinze longos minutos e copiosamente animou o Dr. Jânio, deixando-o muito satisfeito com a absorção e a convergência discursiva por parte dos alunos.

Alongada as discussões, prosseguindo as explicações e findando-se a aula, Dr. Jânio encerrou com a típica tosse estalada de fumante inveterado (usuário de cachimbo, não de cigarro). Ele fez a chamada de maneira silenciosa, pois sabia de cor o nome dos alunos que frequentaram a aula naquela sexta-feira. Fez alguns comentários elogiando a todos eles, admirando-os pelo compromisso de darem valor ao curso, à aula e fazerem questão de estar ali mesmo com a vitória do Brasil no dia anterior. Aproveitando o assunto, ele apontou para o fundo da sala, onde geralmente as alunas progressistas costumavam se sentar. Fez uma brincadeirinha muito polida e eufêmica da qual todos riram, a respeito de copos de cerveja, ambientes insalubres, devassidão e adoração gratuita e voluptuosa a pombos jogadores de futebol. Por exemplo, ele disse, acho que hoje teríamos uma discussão muito mais acalorada e muito menos permissiva se suas colegas tivessem vindo. Ainda bem que não vieram, assim a sexta-feira termina mais tranquila, sem confusões nem comentários lá na diretoria. Sem exceções, voltaram a rir. Inclusive, vocês viram o que aconteceu com o pobre do Neymar Júnior? Esqueci de vos citar o exemplo, mas vejam mais uma vez a presença do ad hominem, principalmente entre os grupos sociais: questionam a habilidade e os posicionamentos do jogador por conta do apoio que ele ofereceu na campanha do presidente. Isto é algo muito grave. Desqualificam o rapaz e até as próprias opiniões do rapaz, criticam a liberdade de expressão do coitadinho por conta de quem ele apóia. Não há um debate saudável acerca do futebol, relega-se o esporte a outros assuntos, é distorcido o espírito esportivo e, por fim, deturpa-se tudo. Vemos pessoas com pouco conhecimento sobre o esporte tecendo longos comentários repletos de críticas, mas nunca ao esporte ou à técnica do futebol, mas sim à persona do jogador, do pobre do garotinho do Neymar Júnior. Ou seja, o que vemos aqui é um ad hominem por associação, também. O quanto querem apostar que algumas colegas de vocês estão satisfeitas e certamente ontem muito se hidrataram por conta da contusão do rapaz? Coitado.

Dessa vez, poucos concordaram. O burburinho foi notoriamente menor com aquele comentário do que com os anteriores. Caio, com a cabeça mais latejante e humor ligeiramente abalado, irritou-se com a falta de clamor que as palavras de seu mentor geraram nos colegas presentes. Poderia apostar que muitos ali, em algum nível, possuíam críticas ao menino Ney. Embora a discussão em sala de aula houvesse sido positiva, sem discordâncias nem refutações (graças à ausência das colegas libertinas que a tudo reclamavam e em tudo enxergavam problemas sociais), o simples fato da existência da realidade social o contrariava, irritava-o por lembrança automática. Imaginar que a internet estava lotada de gente sem conhecimento, ignorante e apoiadora das falácias argumentativas era um gatilho para seu stress diário.

Despediu-se do mentor com uma conversa breve. Irritadiço, sequer conseguiu desenvolver os típicos diálogos matinais com seu grande mestre. Perto da faculdade, havia uma farmácia. Caio atravessou a rua em busca de analgésicos. Comprou uma cartela mais uma água mineral. Na fila para o caixa, concentrou-se na tv ligada. Era horário de almoço e em um programa esportivo o Craque Neto, hoje comentarista, que possuía um claro posicionamento anti-bolsonarista e mimizento, igualmente irritado, tecia ferrenhas críticas a um país que em sua maioria desejava o mal ao pobre menino Ney. Os esquerdistas do “ódio do bem” enchiam a internet com comemorações pelo menino Ney sofrer e chorar com a entorse. O Craque Esquerdista Neto criticaria, também, caso tivesse coragem de apontar para o público que tanto o bajulava, os fãs de Anitta e de Beyoncé, de Pabblo e de irrelevantes fósseis como Caetano e Chico, Gil e Paulo Freire. Um público que nada acompanhava de futebol, a não ser de quatro em quatro anos, para propagar o mal, a falta de empatia e comentar sobre um esporte que sequer conhecia. Nós não ganhamos a copa do mundo sem Neymar, gritou o Craque Esquerdista Neto, Vinicius Jr.? É legal. Rodrigo é. O Raphinha é. O Richarlison é um monstro, vai ser o cara da copa, se o Brasil for pras quartas, pra semi, pra final. O Richarlison-pombo vai ser o cara! Agora, torcer pro Neymar não voltar, ô, só porque ele é Bolsonaro? Não tô nem aí pra isso! Isso é uma falta de respeito! Isso é uma falta de humanidade! Cambada de zé ruela, dos comentaristas, de quem quiser! Falta de humanidade torcer pro rapaz, coitadinho, quebrar a perna! Falta de humanidade só porque ele apoiou o presidente! Ora, vão pra'quele lugar! Gritou ao vivo o Craque Esquerdista Neto. Na fila, Caio balançou a cabeça e teceu comentários baixos, concordando com o apresentador e, acima de tudo, surpreendendo-se com a clareza dele. Até o Craque Esquerdista Neto abominava, por prática, argumentos ad hominem, enquanto a população esquerdalha afundava-se neles.

Quatro pessoas na fila concordaram e deu-se início a uma breve conversa. Apenas uma delas permaneceu canalhamente calada, um sorrisinho escondido no canto dos lábios. Aquilo esquentou as pontas dos dedos de Caio e a cefaleia deu uma pontada na lateral da testa. Se o sujeito abrisse a boca para qualquer piadinha, Caio não se controlaria. Muito orgulhosamente faria uso de seu poder argumentativo, de sua boa eloquência e de suas impecáveis dicção e retórica para colocar o antipatriota em seu devido lugar. Por sorte, nada aconteceu. O Craque Esquerdista Neto continuou a berrar – pelo menos, desta vez, berrava por uma causa justa. A fila andou. Caio pagou o analgésico e a água e voltou ao estacionamento da faculdade. Dentro do HB20, tomou um comprimido. Recostou a cabeça e fechou os olhos, cogitando se conseguiria dirigir ou se seria melhor aguardar a dor aliviar. Optando pela segunda alternativa, ele esperou. Diminuiu o brilho do celular e respondeu as mensagens pendentes que havia recebido durante aquela manhã. Ignorou os questionamentos da noiva. Respondeu com avidez aos amigos no grupo do Whatsapp. Victor, encegueirado, não parava de falar da prima de 16 anos com quem andava trepando. Era até fácil de compreender depois que compartilhou as fotos dela no grupo. Apesar disso, já estava demais. O chá havia sido pesado, o cara estava virado no fascínio. Caio mandou-o se foder, fazer alguma coisa, lavar a cueca, largar o celular e ir trabalhar naquele emprego de merda que era o de recepcionista em hospital. Em seguida, abriu as redes sociais. Todos os colegas, amigos e familiares uniam-se à causa solidária do pobre menino Ney, compartilhando orações e desejos de boa recuperação ao sempre jovem herói da nação. No entanto, o bostil era inevitável. Não demorou muito para memes aparecerem. Piadas sem graça. Comemorações que vibravam pelo pé inchado do craque da Copa, que não teve sequer tempo para mostrar sua habilidade em forma de finalizações exitosas – como se apenas marcar gols, e não sua desenvoltura em campo, seus passes de bola, seus dribles ou suas participações em jogadas, fizesse de um craque, um craque. As maldições, o coração tão pesado dos usuários, o escárnio com que tratavam a dor do menino Ney, a chacota que às lágrimas dele teciam... um absurdo... Um absurdo…

Zero empatia. Neymar não representa o espírito da seleção brasileira, tampouco o povo brasileiro, dizia Oliver César, a quem Caio conhecia desde os tempos de escola e que adorava frequentar boates coloridas na noite de Belém. Entendia muito de bolas, mas não as do futebol. Se o cara não dançasse na frente do adversário com a bola, não apanhava. Não aprendeu até hj, não aprende mais, pode apostar, comentava Cláudia Adorno, ex-namorada da época de ensino médio que muito entendia de chás regionais, sobretudo os de canela (que deveria tomar, certamente, várias vezes a cada semestre), e que nada entendia de estilo brasileiro de futebol, de dribles ou de zoar com os adversários em campo, como faziam os mestres Garrincha, Ronaldinho Gaúcho, Fenômeno, entre outros. O futebol não passava de um esporte do qual Cláudia havia descoberto há pouco menos de uma semana. O comentário dela compunha, majoritariamente, o de todas as companheiras de palpite que a respeito do jogo comentavam na internet. Eram conclusões vazias, sem aprofundamento, sem conhecimento, sem entendimento, palavras muito bem articuladas para um esporte que não demandava tanto decoro ou frescuras, mas sim habilidade, inteligência e malandragem. Caio jamais diria isso em público para evitar tanta cefaleia, mas não era esvaziada a afirmativa de que gente como Cláudia (ele se negava a utilizar o termo mulher, por impaciência de tamanha enxurrada de choro que viria a seguir) pouco e praticamente nada entendia de futebol. Assistiam para venerar a beleza dos jogadores e lançarem às suas belas pernas torneadas de muito esforço e treinamento, olhares maliciosos. Zé ruela amigo de fascista, afirmava Paulo Anderson, um primo bem distante (por sorte) e que todos sabiam ser adotado. Paulo Anderson era o suprassumo da inteligência atual: compartilhava causas muito nobres, defendia os direitos de qualquer cidadão que existisse, sobretudo as minorias mimizentas de travestis e mulheres e gordos e PCDs e pobres e bichas e bandidos e todo o bostil atual. Apesar do altíssimo intelecto, Paulo Anderson dedicava o futuro a uma profissão com remuneração ridícula, que pouco ou quase nada contribuía para o crescimento do país ou da própria vida pessoal, já que continuava sobrevivendo de kitnet em kitnet, sempre clamando por aluguéis mais baratos e desperdiçando o tempo reclamando de como o tratavam diferente por conta da cor. Caso empenhasse tamanha dedicação em lutar, ao invés de reclamar, Paulo Anderson certamente seria o primo rico, não o contrário.

A cada um deles Caio euforicamente respondeu, refutando-os de forma embasada com sua escrita bem articulada, aprendida com a ferrenha leitura do Vade Mecum de cabo a rabo e proporcionada pelos melhores professores de cursinhos de Redação belenenses, e acima de tudo, utilizando o que seu mestre Dr. Jânio o ensinou mais cedo. Questionou cada argumento, apontando as incongruências fundamentais por não criticarem a arte futebolística do menino Ney (qual Dr. Vasques mencionou sobre a técnica artística de Hitler), mas sim sua pessoa, seu posicionamento político e a administração de sua vida particular-econômica. Apontou ainda como de forma triste e degradante comemoravam a entorse no calcanhar do pequeno craque, do menino que tão orgulhosa e dignamente carregava as cores do país no uniforme. Como era, contraditório, o quanto lutavam por empatia, por amor, pela bondade e pela paz social, mas desejavam o mal a um jogador de futebol, um menino de 30 anos que tinha o mais genuíno sonho de levantar a taça do Hexa e dar alegria ao seu povo, tão sofrido pelo destino sanguíneo e tão saqueado por governantes corruptos antipatriotas.

Mas não foram esses os comentários que embrulharam o estômago de Caio. Foi a postagem da irmã mais nova, a caçula da família, a que carregava o sobrenome Diniz de maneira desonrosa e irresponsável, que trouxe a ele uma lástima tão profunda. Desde que entrara no curso de artes visuais na Federal do estado, reduzindo os longos cabelos a cores vibrantes e cortes de menino, Giovana tinha se transformado em uma pessoa transgressora, questionadora dos hábitos familiares que tão bem os criaram e apoiadora de causas absurdas, de choros mimizentos e de ideologias repugnantes. Na piada que ela fazia, com a frase EU CHORO, fotos do pé do menino Ney eram exibidas em comemoração. A entorse protuberante, o garoto-herói mancando, em lágrimas, tão entristecido e desolado por não jogar por seu país, pela sua nação, pela sua pátria. Caio sibilou um misto de raiva e desolação. Sentia a dor no próprio tornozelo, a agonia de, talvez, ver um sonho não realizado pela maldade alheia, pela torcida atroz convergindo em massa para seu azar, sua maldição, seu fracasso.

Caio não conseguiu responder de maneira embasada. O sangue subiu-lhe a cabeça e ali embaralhou os argumentos, afundou a coerência e a coesão tão pertencentes a ele. Consternado, comentou um palavrão. Dois. Três. E quatro. Mandou-a se foder, apontando o quanto ela estava louca, o quanto havia perdido a sensibilidade, o quanto era desumana com a dor alheia e o quão vil era celebrar a dor física e sentimental do outro. Pra quê? Perguntou-se Caio. Pra que isso? O estômago em rebuliço, a dor aguda na espinha, o arrepio na base do pescoço alongando-se pelos braços. E, no entanto, ele não conseguia parar de ver aquelas fotos. Era um álbum recém montado por algum usuário da internet. Na lista, havia montagens com emojis chorando, personagens de desenhos animados japoneses com irônica posição de choro, de lamento, e ao fundo o pé do menino Ney, inchado, com as inegáveis e tão belas e lindas tatuagens descendo pela canela torneada, as veias expostas no dorso do pé, o roxo já subindo pelas pontas dos dedos truncados, o dedão machucado com um nódulo escuro de sangue, em suma o hematoma crescente. Era um pé que Caio conhecia bem, tão bem, tão familiar, tão heróico e inspirador. Vê-lo em tal estado assemelhava-se ao desespero de ver o jovem menino Ney, à época ainda tão mais jovem, sofrer com a lesão causada pelo bandido do Zúñiga em 2014. Nem a derrota para a Alemanha comparou-se à aflição que uma nação de rapazes como Caio sentiu naquele ano, ao ver o pequeno herói urrando de dores no chão. Novamente, a maldição se repetia. Era doloroso. Era abissal a revolta. Era imperdoável o estado no qual haviam deixado aquele tão hermético e homérico pé.

Caio guardou o celular. As náuseas e algo mais secreto que isso reviraram o estômago e fizeram o sangue circular diferente. Ele girou a chave do carro e deu partida no motor. Dirigiu de volta para casa com um suor frio, a cefaleia ainda presente, entretanto aliviando lentamente. Ele passou por ruas e avenidas enfeitadas de verde amarelo, só que, infelizmente, apenas em função da Copa do Mundo. O verde era um atípico verde, o amarelo era um opaco amarelo e até o azul brilhava de maneira distinta que o azul original – visualmente as mesmas cores, significativamente pintando a cidade com outro objetivo. Era deprimente que tantos brasileiros comemorassem a vitória de 2x0 do Brasil sobre a Sérvia tão alheios à luta que na frente dos quartéis era travada, tão esquecida e minguada. O futebol, servido como pão e circo para aquele povo, infelizmente era utilizado de maneira a alienar a população, para fazê-la esquecer e calar a luta que insurgia nos corações mais patrióticos e verdadeiramente brasileiros. Ocultos e calados pelos gritos de gol, esqueciam-se da mazela política em que estavam entrando. Por isso, heróis nacionais como o menino Ney faziam-se tão necessários para o não esquecimento das verdadeiras e mais honrosas causas: lutar por um país livre, feliz e campeão. Por outro lado, enquanto continuassem encarando futebol e política como coisas dissociadas, jamais alcançariam o conhecimento necessário para uma melhoria justa e possível, econômica e intelectualmente. Enquanto optassem pelo erro, receberiam a miséria, a roubalheira. Os males que possuíam eram justificáveis. Infelizmente o povo merece o que passa, Caio disse a si mesmo. O povo que alega sofrer de fome e chora desigualdades inexistentes é o mesmo povo que hoje aplaude a contusão e que hoje torce pela tragédia do menino Ney por motivos fúteis.

Quando chegou em casa, a dor de cabeça já havia passado, mas não o stress. Se tivesse esbarrado com a irmã naquela tarde, travariam uma briga que todo o Verde Ville escutaria. Certamente, os vizinhos o compreenderiam. Não era desconhecida a fama de Giovana na vizinhança: as brigas que travava contra a família durantes as reuniões, as drogas pesadas que andava fumando nos corredores arredios da Federal ou o modo como sussurrava as intimidades do pai com a secretária, os problemas da mãe com o álcool (graças a Deus ela andava limpa desde que empenhara vigília semanal fronte ao 2º BIS na Almirante Barroso) ou as asneiras que blasfemava sobre Caio. Petulante, abrira mão de viver sozinha no próprio apartamento no centro da cidade ao contradizer os pais e irritá-los, escolhendo viver ao lado deles por pura birra. Até o fim daquele dia, caso ela não estivesse se propondo a uma overdose de maconha, Caio tinha certeza, ainda enfrentaria a irmã em uma torrente de xingamentos devido a audácia pouco empática de zombar da dor do menino Ney.

Dentes trincados, o herdeiro da família Diniz sequer respondeu ao cumprimento dos empregados. Respondeu de forma direta que não desceria para o almoço e ordenou que ninguém o incomodasse. Ele subiu para o quarto, trancou-se no banheiro. A cefaleia havia passado, mas o embrulho no estômago não. Tentou vomitar, não conseguiu. Sabia que não era mais o efeito de uma quase-ressaca que o atingia. Era algo bem menos físico e mais psicológico. Enfiou o dedo indicador na garganta. O refluxo não foi forte o suficiente, pois na metade do incômodo, covarde, ele retirou a mão da boca, incapaz de induzir o próprio vômito.

O que causava isso? Era a perversidade encarnada no humor maldoso das pessoas, de brasileiros que não reconheciam o talento de um jovem herói pobre e batalhador, vindo da periferia e que com tanto talento, esforço e dedicação conseguira vencer o destino e ganhara a admiração dos clubes, do Brasil, de um mundo inteiro? Caio tirou a roupa. Deixou o ar-condicionado do quarto ligado na temperatura mínima e deitou na cama, a fim de esfriar o suor frio que insistia em lhe descer a espinha. Nu, ele inspirou e respirou fundo. Tomando coragem, abriu a rede social, mas antes de procurar pelo perfil da irmã, as fotos obscenas do sofrimento do jovem Ney já abarrotavam as redes. Eram as fotos, não eram? Eram as fotos que lhe causavam tanto desconforto, que lhe faziam a sudorese tomar conta do corpo. Todos que conhecia àquela altura compartilhavam o pé inchado e roxo do menino Ney. Alguns exibiam as fotografias em forma de lamento, clamando em oração pela intercessão divina, pois só o grande Deus pode abençoar esse menino tão doce e tão humilde que injustamente vem sofrendo com as maldições e psicas de um povo tão ignorante e maldoso e sem coração e meu Deus, meu Senhor, perdoai-vos (mas nem tanto), pois eles não sabem o que fazem! O outro tsunami de fotos e publicações era acompanhado, finalmente, por chacotas e piadas. Era a maioria agora. Sim, Jesus Cristo nosso Senhor, era a maioria!

Desesperado com tamanha insanidade, observando o pé tão amado e abençoado por Deus, Caio chorou. As lágrimas caíram, incessantes, dentro do quarto. As imagens obscenas não lhe escapavam a cabeça, então, furioso, desativou a própria rede social. E depois outra. E em seguida todas elas. Pelos quinze minutos que se passaram, ele sentiu que o ar escaparia pelos pulmões, como se a garganta estivesse se fechando, embora tivesse sido um rapaz muito saudável e viril durante toda a vida, sem problemas respiratórios crônicos.

Quando as lágrimas cessaram, ele se acalmou. O ar-condicionado esfriou o quarto e o suor secou. Pouco a pouco, o ar preencheu os pulmões e o coração, aos galopes, silenciou-se ao ritmo normal. As imagens malditas, entretanto, continuavam na mente, insistentes. O leite desprezado. A obra de arte destruída. A mácula ao sagrado. A imagem em sua cabeça não poderia, desta maneira, ser profanada. Não. Recuperado, e acima de tudo determinado, Caio pegou de volta o celular. Abriu as pastas secretas de sua nuvem. Documentos > PDFs > RG e CPF > Xerox > NJR10. Na galeria da pasta, vislumbrou a mais pura personificação do sagrado masculino. Dezenas de fotos mostravam as pernas do menino Ney. As mais antigas, sem as tatuagens. As mais recentes, preenchendo os dois pilares que davam vida ao mais exímio dos artistas do futebol. Na canela esquerda, QUE DEUS ME ABENÇOE, abaixo, um 19. Na canela direita, E ME PROTEJA, abaixo, um 92. Súbito, a mão de Caio automaticamente segurou o próprio pênis em riste. Duro, ele deslizou a mão esquerda pelo celular, enquanto a direita subia e descia. Uma das pernas trazia consigo a mensagem motivadora WORK HARD. Motivado, hard, muito hard, Caio trabalhou hard.

A noiva costumava brincar que não podia reclamar do presente de Deus. Caio era duro. Firme. E forte. Nunca havia finalizado um jogo em menos de 15 minutos. Nunca. Isso era raro. E as piadinhas que sobre isso costumava fazer na internet eram nada mais que irônicas, uma provocação às demais moças para que possuíssem curiosidade e diante do assunto abordado secretamente o procurassem para constatarem o contrário. Sempre funcionava. Infalível. A noiva disso se deliciava e se orgulhava, as demais moças disso se aproveitavam.

Mas diante do sagrado masculino do menino Ney, Caio nunca durava mais que dois minutos e meio. E estava tudo bem. As necessidades de um homem são compreensíveis. Admirar o que havia de mais belo na Terra era uma necessidade física.

WORK

                                                HARD

E hard, muito hard, Caio trabalhou. Moveu as mãos para cima e para baixo. Espantou a imagem obscena do pé contundido do menino Ney, pobrezinho. Focou no pé atlético, saudável, em tempos de glória. E hard, muito very hard, ele continuou a se acariciar, a se tocar, a subir e a descer o prepúcio enquanto imaginava o pênis esfregando a cabecinha rosada pelas coxas torneadas do menino Ney, pelos joelhos arredondados e bem articulados do menino Ney, pelas canelas fortes e tatuadas do menino Ney, e, finalmente, deslizando pelos pés não inchados e herméticos do menino Ney. As plantas dos pés do menino Ney estariam agora a lhe roçar o pênis hard, um footjoob que nem a mais sortuda e próxima geração de base do Santos Futebol Clube conseguiria proporcionar. Trabalhe hard, very duro. Working. Working. Very hard. Tão hard até que não seja mais possível conter a euforia, a potência da finalização, o gol saindo pela boquinha ansiosa de comemoração, de vitória, pelo título do gozo.

Caio explodiu. Sentiu o leitinho quente lhe escorrer a pele, espremer-se entre os dedos. Imaginou que suas mãos eram a musculatura bem trabalhada das pernas do menino Ney. E o menino Ney estaria sorrindo. Sem lágrimas. Sem dores. Sem lamentos. Sem maldições. Empunhando a taça do Hexa. E o Brasil por ele estaria gritando. Venerando. O menino Ney seria, novamente, um herói.




25 de novembro de 2022

Atraso




Teu futuro o mundo sabe:

é em um estampido prateado

andarilho rumo ao cérebro 

perfurando o teu palato.


Teu futuro o mundo sabe:

quando o véu enfim cair

e rumando fundo na garganta

a verdade, lume, há de vir.


Não havia muita chance aqui

só um atraso, só uma gira-volta 

na grande vira-volta.


Teu futuro o mundo sabe:

Tic-tac-tic-tac

Tic-tac-tic-bang.




(Felipe Santiago)



23 de novembro de 2022

a verdade sobre o desaparecimento da srta. Finch ou Criaturas Noturnas ou um texto sobre ficção

Arte de Michael Zulli para "Facts in the Case of the Departure of Miss Finch", Neil Gaiman.

 


Leio a verdade sobre o desaparecimento da srta. Finch. É a penúltima adaptação do encadernado. Comprei a edição há mais de um ano. Li as três primeiras narrativas há mais de um ano. A segunda, lembro bem, foi na varanda. Criaturas da Noite: sobre um gato preto protetor que todas as noites se engalfinha com o Diabo – um touro, um minotauro, uma mulher, um gato selvagem odioso – para proteger a casa e a família, subvertendo a folclórica imagem dos bichanos pretos que trazem azar. Enquanto eu lia, haviam dois gatos de rua perto de mim naquela tarde. Fiz um vídeo. Naquela varanda eu nem desconfiava do futuro. Naquela varanda fizemos história. Você fez história. Dormiu demais. Sonhou demais. Confraternizou demais. Brincou, riu, ralhou, viveu demais. Contou-me histórias, quando deitávamos na rede e nos embalávamos. Eu, muito pequeno, cabia embaixo dos teus braços. Até hoje, lembro de uma história que inventei e que você parecia tão atento e interessado: a do macaco-folha. Era um macaquinho assombroso que tinha asas debaixo dos braços, quais folhas, e ele se camuflava no topo das árvores, igual àquela que tinha num terreno do outro lado da rua, gigante, que um dia durante uma tempestade foi atingida por um raio, tombou por sobre o muro e caiu na rua. Virou reportagem, dessas que não se encontra na internet porque isso foi muito, muito antes da internet e dos smartphones. Até seu Antônio, vizinho fofoqueiro e que não dá muito as caras hoje em dia por conta da idade, deu entrevista. RBA. O Liberal. Foi o maior hit de sucesso que a rua Esperanto conheceu. Era naquela árvore que vivia o macaco-folha. Com a árvore, foi-se o macaco. Com os anos, foram-se as folhas. O terreno foi adquirido tempos depois. Virou um residencial que hoje toma quase todo um quarteirão. As coisas mudam, mas nem todas. Eu ainda invento histórias. Ainda tenho certa predileção por contá-las. Não são as melhores. Nem são contadas da melhor maneira nem lidas por muita gente. Irrelevantes. Esquecidas. A gente faz o que pode. Leio a verdade sobre o desaparecimento da srta. Finch agora. No momento desta sentença, ainda não a terminei – o público acabou de entrar nas galerias subterrâneas de Londres, recentemente apresentada ao Teatro dos Sonhos Noturnos. Se eu disser que leio este encadernado sem sentimentos ruins, estaria mentindo. Tem sido uma tortura. Caso contrário, estas palavras nem se fariam existentes. Lembro que a edição chegou pelos Correios naquela pausa de quase 8 meses em que estivemos na sua casa. Foi uma bagunça. Foi uma confusão. Mas sempre cabia a todos nós, hóspedes temporários: quatro pessoas e duas gatas, as nossas. Mas cabíamos. Com esforço, caberíamos de um jeito ou de outro, porque você nunca diria não e estaria sempre sorridente, alegre por nos ver ali, por nos ter por perto de novo. A reforma aqui de casa foi demorada, e, portanto, nossa estadia na sua casa também.  Ainda bem. Foi a minha última extensa morada ali, meu último extenso tempo contigo – mas ninguém sabia de nenhuma dessas coisas, porque se alguém disse que o amor é um cão dos diabos, é porque não parou pra pensar sobre o futuro. A gente olha sempre pra trás com uma sapiência inútil. Acho que Deus é esse grande sujeito que a tudo pode, mas pouco sabe e vice-versa. Porque quando Ele sabe, não pode. E quando pode, já passou. Passou. Li Criaturas da Noite naquela varanda há mais de um ano. Disso me lembro tão bem. Naquela varanda em que fizemos história, em que nossa família fez história. Agora, continuar a ler este encadernado é penoso. Embora, materialmente, uma coisa nada tenha a ver com a outra, apenas o meu costumeiro hábito de abandonar pela metade todas as leituras que dou início. Difícil pensar que quando comecei a ler, você estava ali. Agora que termino, você já se foi há meses. Por que machuca tanto? Lembrar. Pensar. Vincular um fato aleatório a uma época específica. Por quê? Naquela varanda onde você enfrentou o assaltante e escapou de um tiro e se safou de morrer, onde esteve por diversas vezes sentado, falando a meu respeito e sobre como eu havia publicado mais um livro – embora meu nome só estivesse espremido no meio de tantos outros autores e embora o livro nem fosse meu nem necessariamente só meu – enquanto eu fingia não escutar, porque sempre tive vergonha de ser exageradamente louvado, admirado, exaltado. Terminar esta leitura vai ser penoso. Tem sido doloroso. Pensar que a comecei naquela varanda, onde moramos por 25 anos e, agora, quase 5 meses pra cá, a casa nem é mais nossa, nem te tem mais nela nem a nós, nossa família ou nossas cores ou nossas vozes. Tudo porque você não está mais lá nem nunca mais estará. Tudo porque a vida é um sopro, não de rápida ou de irrelevante, mas de inconstante: hoje estamos aqui, amanhã, com sorte, talvez. Muito talvez. Terminar esta leitura tem sido um fardo que me traz a estas linhas talvez desconexas, sem muito sentido, sem muita coesão, sem muitos parágrafos, sem métricas, sem atenções, sem acabamentos. Leio a verdade sobre o desaparecimento da srta. Finch, mas isto é só ficção. Divertida. Interessante. Passageira. Não me ajuda a lidar com o teu desaparecimento físico. Ajuda? Só me faz lembrar de um ano atrás. De mim sentado na varanda. Lendo sobre o gato protetor que todas as noites lutava contra o Diabo para proteger a família e a casa à beira da estrada. Só me faz lembrar daquele dia em que a vida era mais fácil porque a tua ausência ainda não existia. Gatos podem nos proteger do mau e até a srta. Finch pode desaparecer em uma câmara subterrânea nos abismos de Londres para realizar seu improvável sonho de biogeóloga. Tudo isso a ficção possibilita. A ficção pode tudo. As histórias são capazes de mudar o que há aqui dentro, mas são incapazes de trazer o passado real de volta. A realidade, tão precária e deficiente, não possibilita o retorno real da carne desfalecida ou das cinzas consumadas. Por isso contamos histórias, por isso macacos-folha existem, por isso "o consumo de ficção independentemente da mídia tem um papel muito mais importante do que somos capazes de perceber. É verdade, não somos médicos e não salvamos vidas, mas talvez salvemos sonhos, fantasias, sentimentos", diz o prefácio que nunca teve a intenção de se encaixar no teor destas palavras, mas ironicamente o faz. A realidade, falha, tão falha, não possibilita o dom de voltar, de congelar o relógio, de lá confraternizar ou de ali pra sempre ficar quando você ainda existia. Quando você ainda estava. Quando a casa ainda era nossa – e a varanda e as memórias e as histórias. Quando a vida era menos vazia e o luto não havia. Porra. Que Inferno. Que saudade. Outro dia, muito depois deste texto finalizado, e que agora mais uma vez o altero (acho que finalmente cheguei à versão final), sonhei contigo. Um sonho certamente influenciado pela construção destas palavras e pelo martírio deste sentimento. No sonho, eu te abraçava. Confessava angústia. E te perguntava qual o sentido disso? Qual o sentido da saudade? E você, sorridente, me respondia que significava que valeu a pena. A vida e o que foi feito dela valeram pena. A ficção me ensinou, em um diálogo banal de blockbuster de verão, que o luto é senão o amor que perdura. Acho que é verdade. A realidade massacra. Ela dói e traz angústia. Mas o que são os sonhos senão a representação ideal da realidade? O que são os sonhos senão a nossa forma particular de fazer ficção, de contar histórias, de vivê-las, de relembrá-las e de senti-las? Acho que agora entendi, embora a dor ainda esteja aqui. Entendi aquele seu passeio aqui nos meus sonhos. Aquele abraço macio. Aquele sorriso imortal. A ficção pode tudo. Ela combate a saudade, luta contra o luto. Torna o amor eterno. E se os sonhos são ficção, então a ficção é eterna. Esse é o melhor final que eu posso dar a este texto. Me desculpa. E obrigado.


13 de novembro de 2022

3º Turno: culpa, muita culpa


 

 

 

I'll never be your beast of burden

So let's go home and draw the curtains

Music on the radio

Come on, baby, make sweet love to me

 

(Beast of burden – The Rolling Stones)

 

 

 

 

Antigos amores são encontrados nas esquinas. Em dias chuvosos. No frio do inverno amazônico. Atravessei a rua. Inspecionei o céu com desconfiança. As nuvens estavam escuras e o ar gelado. Passei por um bar onde uma pequena e jovem multidão bebia e acendia cigarros, todos aqueles que a Dra. Patrícia – Heil – Stockler tanto tinha certeza de que eu fumava.

Celina acenou de longe, chamando meu nome. Diferente de como fiz com a enfermeira quase um mês atrás, acatei o chamado, surpreso em encontrá-la. Ela me sorriu com bochechas fartas e rosto arredondado de uma típica paraense, cabelo amarrado, pele alva de uma palidez congênita e insipidez atraente. Não precisou dizer muito. Nem bastou que anunciasse. Eu a abracei com calorosa felicitação.

Feliz aniversário, eu disse.

Tu ainda lembras?

Eu sempre lembro. 

Celina me convidou para sentar. Me apresentou a amiga de trabalho, rosa. Não havia muitas rosas por aí com menos de quarenta e cinco anos. Esta estava ainda nos trinte e dois. A mais jovem delas em um jardim cheio de rosalías e robertas, rúbias, ravenas e rosanas. rosa me apertou a mão com sorriso caloroso. Me ofereceram um copo de cerveja. Confraternizei com as duas.

Antigos afetos como Celina sorriem de forma muito genuína. Uma felicidade que dá gosto de ver. Nem parecia que ela sabia que eu sabia tudo o que detestava saber a seu respeito. A felicidade é momentânea, reside nas brechas da vida. Aquele era um momento. Ela celebrou com muitos copos de cerveja como alguém que comemora em dia calorento, apesar da primeira semana de novembro já começar chuvosa.

Estranho, né? Chovendo tão cedo. Era pra começar só no finalzinho de dezembro, lá por janeiro, rosa comentou.

Estranho mesmo, disse Celina, mas eu gosto assim, do friozinho. Tu gostas também, né? Ela me perguntou.

Gosto sim, eu respondi.

Antigos romances também não esquecem das coisas. Ou eu estava delirando ou ela fez sugestiva menção à época em que tudo deu certo antes de tudo dar errado. Aninhados no meio do carnaval, aproveitando a viagem dos pais, enchendo os estômagos sadios com pizza e coca-cola e coxinha e comida processada. Fez tanto frio naquele ano quanto agora, com a exceção de que naquela época os dias de novembro costumavam ser ainda ensolarados, abafados, não chuvosos como agora.

Tá tudo uma bagunça, eu disse, mas é isso aí, é o aquecimento global. 

Menino, e não é?! rosa exclamou.

Mas Celina não. Celina ficou calada.

Bebemos e observamos o clima. O chuvisco se transformou em chuva e de repente a chuva se avolumou, forte e barulhenta, aproximou-se de nossas canelas sem que o toldo nos protegesse. Levantamos as pernas. Não arredamos pé. O frio estava sugestivamente incômodo, então Celina resolveu que queria esquentar as veias. Misturou o álcool da cerveja com o álcool da cachaça e nem rosa nem eu negamos o convite. A bebida aqueceu nossos peitos e trouxe-nos um rubor às têmporas. Foi bom transpirar no frio glacial belenense. 

Antigos amores ficam calorosos quando tomados pelo álcool ou quando sobriamente ficam desinibidos de todas as convenções sociais e cismas históricos que os impedem de se aproximar, de dizer olá, de confessar eu ainda sinto saudades. Celina se aconchegou comigo. Não protestei, porque eu não quis, porque o álcool também me amolecia e porque, ao invés de ponderar velhas armadilhas e hábitos cíclicos, até antes daquela tarde meus únicos problemas eram tomar água frequentemente e ingerir fibras no café, no almoço e no jantar. Meu intestino funcionava sem lavagens nem angústias. O país enfrentava só nos últimos dias uma onda de civilidade estranha, coisa que não víamos há mais de cinco anos. Os investimentos estrangeiros aumentavam, a moeda sofria notória valorização, assassinos cristãos não aguentavam o fardo e enfartavam e representantes ainda não empossados viajavam ao Egito para debaterem promessas sobre o clima mundial, para que as chuvas de novembro viessem só no fim de dezembro, lá pra janeiro, e que o calor amazônico não nos surrasse o couro como o vinha fazendo na última década. Apesar de vias paradas, de livros atrasados e da necessidade urgente de intervenção psiquiátrica em pequenas multidões de gados pingados (uma arruaça até comum e condizente com a ambientação social dos últimos anos, quase imperceptível, apenas ruidosa e hilária), o país encarava certo ar de civilização política avançada, onde homens agiam como homens, mulheres agiam como mulheres e equinos relinchavam em seus devidos currais, choramingando seus futuros abates. 

Sem avisos, Celina me beijou o canto da boca. De imediato, respondi ao beijo como uma criança empolgada.

Por que a gente não faz isso mais vezes? Ela perguntou.

Antes que eu respondesse, rosa levantou o copo, brindou ao nosso beijo e entornou a bebida:

Eita, que eu vou sobrar aqui. Volto depois, deu as costas e entrou no bar.

Por quê? Por que a gente não faz isso mais vezes? Ela repetiu a pergunta. 

A vida, eu acho. Não sei.

É isso não. Tu somes.

Eu tô sempre por aí, Celina.

Tá nada.

Suspirei devagar. Era como pisar em ovos. Um planejamento milimétrico, um discurso sempre ponderado, pensado, pausado acima de tudo para que as palavras certas fossem ditas e torrentes espontâneas evitadas (de ambos os lados).

Tamo quase bêbados. Deve ser isso, eu disse.

E daí?

É quando tu lembras que eu existo.

Isso é um absurdo, ralhou ela. Tu pensas em mim todos os dias?

Não.

Viu? Eu também não. Só quando te vejo ou quando escuto a teu respeito. Aí não consigo evitar. A bebida só facilita.

É, é verdade. Eu também fico assim.

Viu?

Então. Eu não sumo. Eu tô sempre por aí. É que a gente não se esbarra muito. Só isso.

Acho que é.

Desculpa, não queria começar uma DR, eu disse.

Ela fungou o nariz em protesto, alcoolizada demais para remoer as pequenas coisas que justificavam as grandes distâncias.

Eu vou te desculpar porque hoje é um bom dia. Olha a chuva. Olha tu aqui. Nem tava nos planos, só apareceu. Até parece o destino, ela então tornou a me beijar. 

O rosto arredondado de Celina cabia entre minhas duas mãos. Não era a primeira vez que fazíamos aquilo – encontros esporádicos, promessas antigas e retornos certeiros. No próximo dia, na semana seguinte ou nos meses vindouros, a vida geralmente cobraria o preço cotidiano. Sabedores disso e desprezando a isso, ignorávamos. A vida era uma grande tábua de madeira carcomida pelas décadas. Os lábios de Celina, alcoolizados ou não, eram a grande brecha. Momentâneos.

Feliz aniversário, eu disse novamente.

Ela agradeceu com um sorriso trôpego. 

Essa última semana foi um Inferno, sabia? Tudo deu errado no trabalho, pergunta pra rosinha. Três clientes pularam fora do barco e melaram os contratos do resto do ano. Agora a gente tem que aguentar burocracia e corte de gastos. Todo aquele blablablá burocrático, sabe? Não bastasse isso, ainda vivemos nessa loucura de país.

Há muitos anos, na verdade, complementei.

Há muitos anos nada. A gente tava indo bem, agora vai ser foda. Acho até que esses clientes que pularam fora desistiram do contrato por conta do que tá rolando no cenário político. Um Inferno, essa volta do Comunismo.

Como assim?

É. O Comunismo.

Beijei-a, bem de leve, a testa. Aí me recompus, permitindo que o sangue fluísse sem confusões pela cabeça e pelos ouvidos. Olhei em volta. A chuva havia passado e só uma garoa quase inexistente pairava no céu. Do outro lado, a praça, para onde estreitei os olhos à procura de algo. Depois continuei buscando embaixo do toldo, entre os beberrões que nos acompanhavam, em seguida pelo interior do bar, no balcão, escondido atrás da coluna espelhada, dentro das geladeiras ou saindo do banheiro.

Cadê ele, Celina?

Ele quem?

O Comunismo. Tô procurando.

Ela torceu os lábios.

Quer saber? Essa culpa eu não carrego.

Que culpa, Celina?

De colocar esse homem de volta no poder. Um absurdo. Um absurdo.

Foda, né?

É. Foda. 

Cheirei o topo de sua cabeça. Afaguei o nariz entre os cabelos castanhos. Inferno. Como podia? Belas cascas armazenarem tamanho fedor.

Eu sei que tu apóias esse Molusco. Esse teu silêncio é chato, sabia? Não vais dizer nada? Ela perguntou.

Não. Fiz uma promessa.

Que promessa?

Que ficaria calado.

Pra quem?

Pra Nazinha.

Ela gargalhou, incrédula. E continuou:

Me admiro é de ti, sabe? Depois de todo esse tempo e depois de tudo o que ele fez.

Ah, é?

É!

O que ele fez?

Ela se afastou, proferiu um xingamento entredentes tão silencioso e desconexo que não entendi ou nem quis.

Essa loucura política tá destruindo tudo, sabe? Eu nem falo essas coisas mais perto da rosinha. A gente fez um trato: não falamos disso e preservamos a amizade. Tem dado certo. Meu pai, por exemplo? Ficou louco, louco! Fanático. Não fala mais com o resto da família de tanto defender esse homem. Não escuta mais a gente, fala que tudo o que a gente diz é mentira, que a gente tá inventando ou acreditando em histeria, em fake news. Não é fake, é só a verdade, mas vocês não gostam de ouvir. Ficam acreditando em cada notícia que sai nessa mídia esquerdista. Eu me admiro é de ti, sabe? Tu és tão inteligente, eu sei disso. Tens que saber que eles nos controlam. Sempre, sempre, sempre controlaram. Só porque um veículo de notícias é grande, não significa que esteja dizendo a verdade. Pelo contrário, são mal-intencionados. Não vê como eles perseguem o presidente? Em três anos e meio não deixaram ele governar e agora tão aí, comemorando a vitória do Molusco. Todo esse tempo comemorando a derrota, torcendo pra que tudo desse errado. Era contra o progresso do nosso país que torciam contra, meu Deus do céu! Daqui pra frente é ruína. Ruína. Não sei nem se vou poder continuar dizendo isso em voz alta sem que venham atrás de mim.

Tu tá falando sério, Celina?

Claro, disse ela, categórica. 

E olha, eu sei que tu vens com essa história de defender o Molusco. Mas tens que parar, tens que sair dessa bolha e olhar o outro lado da história.

O outro lado, é?

É. Eu te vi nas redes sociais nesses quatro anos. Posso fazer uma confissão? Ela balançou as mãos e molhou o lábio com a cachaça, a fim de dar mais desenvoltura à língua e à vontade de falar.

Sorri de leve e assenti, apertando-lhe a bochecha com esvaído carinho.

Eu tive que te silenciar no Face, no Insta e até no Whatsapp. Me desculpa, de verdade. Nem era por ti, era mais pelo assunto, por todo mundo brigando e deixando de viver porque um político ou outro fez uma besteirinha. Todos eles fazem isso, são políticos. Nenhum é inteiramente honesto. São todos iguais. Só que isso virou uma guerra desnecessária. Tu não paravas de falar, de postar, de criticar... Isso me cansou, sabe?

Sei.

Por isso te digo que deverias sair dessa bolha. Prestar atenção no outro lado.

Tá bom.

Outra coisa: eu adorava os teus textos. Por que não voltas a escrever que nem antes?

Tu achas?

Acho. Desde que essa loucura começou, paraste de escrever aquelas coisas tão lindas. Eu amava. Agora é tudo contra o presidente: só falas do presidente, contra o presidente. Vocês não deixam ele governar. Vocês falam tanto de saúde mental, de cuidar dos outros, de ter empatia. O Jumentinho foi até esfaqueado, pelo amor de Deus! Foi perseguido durante anos, não podia nem se dar ao luxo de ficar nervoso, de se estressar. Agora perdeu as eleições e tá visivelmente abatido, ninguém lembra que ele também é um ser humano. Coitado.

Tu votaste nele?

Óbvio que não!

Mas...

Olha, nem vem! Eu não sou nem um nem outro nessa guerra maluca. Só não gosto de ver as pessoas fanatizadas. O país tá quebrado no meio. As pessoas estão brigando, se matando por política! Que absurdo.

É, que absurdo.

Agora que acabou e que vocês elegeram esse Molusco, espero que terminem e parem com essa guerra. Vocês conseguiram, finalmente. Não podem dar um tempo?

Tentei virar mais um shot de cachaça, mas já havia terminado. Recorri à cerveja. Molhei a garganta. Amaciei o cérebro. Aí perguntei:

Queres que eu volte a escrever como antes?

Sim. Por que não voltas? Sabe, eu gostava tanto, ela finalmente se apoiou nos meus ombros, a expressão menos carrancuda. Eu não sou burra a ponto de dizer que arte e política não se misturam, mas quando uma fica maior que a outra, aí é chato. Perde a graça.

Entendi.

Eu te leio na internet, tenho todos os teus livros. Nunca parei de te ler nesses quase 20 anos.

Obrigado.

Mas desde que tu começaste a misturar política e arte, vem ficando chato.

É?

É. Sinto que teus personagens estão ficando... sabe... caricatos.

Sério?

Sério.

Muito caricatos?

Bastante. Ninguém é daquele jeito na vida real.

Não?

Não, ela bebeu o resto da cachaça. Ninguém diz todas aquelas coisas tão caricatas. A vida real não é assim.

Ah, não?

Não.

Acho que tu tens razão, eu disse. Como pode, né? Tamanha caricatura.

Exatamente! Ela sorriu, alegre e contente por proferir e me fazer enxergar tantas verdades.

Tá bom, envolvi-a pela cintura e depositei um beijo mais breve que o normal. Eu vou voltar a escrever como antes.

Ai, que bom! Ela buscou minha boca para mais um beijo estalado, mas levantei o dedo indicador e disse:

Lembrei! Lembrei de uma coisa. 

O quê?

Tenho que mijar. Já volto, anunciei com um sorriso.

Deixei Celina para trás e me embrenhei entre a pequena multidão que abarrotava o interior do bar. Aguardei na fila por tempo demais. Deixei que dois sujeitos atrás de mim passassem na frente.

Depois um terceiro

e depois um quarto.

Fui interrompido pela voz de rosa:

O que tu estás fazendo?

Vou no banheiro.

Então por que não entras?

Eu vou entrar.

Ué? Ela riu, confusa.

Que foi?

Tu já deixaste um monte passar na tua frente.

Deixei, foi?

Foi.

Ah.

Ficamos em silêncio. rosa tinha uma simpatia irrevogável, mesmo quando aplacada pela dúvida ou pelo incômodo. Os longos cabelos crespos e propositalmente embaraçados emolduravam o rosto confiável. Além de lindo, era um rosto agradável de se olhar, de se estar. Cartola havia cantado algo sobre rubros, rostos e rosas, não tinha?

Posso te perguntar uma coisa, rosa?

Pode.

Tu votaste em quem?

No Molusco, respondeu ela com latente obviedade.

Essa culpa eu não carrego, respondi.

Ela revirou os olhos e, de imediato, retrucou:

Não acredito, eu esperava mais de ti.

Essa frase não é minha. Ando escutando com frequência. Tá atravessada no meu intestino? Sabe? Igual merda acumulada, desabafei, cabisbaixo.

Ela concluiu a tudo com uma risada trágica. Disse por fim:

Ahhh, é. É. É. Pois é. Eu sinto muito.

É, eu também.

Um rapaz se aproximou e ficou parado atrás de mim, dei lugar a ele e indiquei que passasse. O silêncio entre nós repousou como uma pedra, mas não uma do tipo incômoda. Em parte, era a atitude dela, agradável e confiante, que servia como um aríete para o muro das amofinações. Em outra, porque era fácil conversar com rosa. Sem ovos a pisar, sem discursos para medir, sem palavras a calcular.

Ela cortou o silêncio:

Posso te perguntar uma coisa?

Claro.

Vocês dois se conhecem há muito tempo?

Desde a infância, quase.

Sempre foram amigos?

Sempre-um-pouco-mais-que-isso, na verdade.

Vocês parecem bem juntos. Por que não deram certo antes?

Porque éramos jovens demais e gente jovem demais faz merda demais, eu acho.

Se estranharam feio?

Pior que não. Foi sempre tudo muito pacífico, sem brigas.

Legal. E por que não ficam juntos agora?

Nós estávamos juntos até pouquíssimos minutos atrás, só que uma caganeira aconteceu.

Ela riu.

Não esse tipo de juntos, ela explicou.

Dei de ombros, igualmente confuso. Continuei:

Tu passas a vida inteira com alguém perto de ti e achas que conheces aquela pessoa. Aí, do nada, as coisas ficam claras. Ou talvez já estivessem. Era só tu que estavas... sabe... cego demais pra ver. Acho que alguns de nós envelheceram mal. Acabei de perceber isso.

Entendi.

Pois é.

Trágico, né? rosa ergueu as sobrancelhas e naquela brecha de momento não identifiquei se o gesto foi um escárnio bondoso ou um pesar iminente. Ela entornou a latinha de cerveja que tinha na mão, incomparavelmente mais sóbria que Celina e eu juntos e tão afável quanto no início da bebedeira.

É, nem tanto, respondi com estranho ar de alívio. Nem tanto.

Mais um rapaz chegou. Resolvi sair da fila. Minha bexiga era boa. Aguentava muita bebedeira. Eu só não queria era mijar mesmo.

Quer saber, rosa? Eu já tô indo.

Sério? Já?

Já.

Não vais nem se despedir?

Eu tô me despedindo agora, dei nela um abraço apertado. Foi um prazer te conhecer. E fiquei feliz pra cacete em saber que tu és tão responsável por carregar essa culpa quanto eu.

Ela riu e fez o M do Molusco com a mão.

Respondi com o mesmo gesto. 

A gente se vê por aí, ela disse.

A gente se vê por aí, eu respondi. 

Saí pela lateral do bar, atravessei duas ruas para não passar perto de onde Celina estava. A chuva e os chuviscos haviam cessado, porém o céu da tarde continuava escuro. Em casa, repus a quantidade de água para compensar o álcool e amolecer a merda no intestino. Sentei no vaso. Finalmente mijei. E também caguei, uma boa e progressiva merda que saiu como um trenzinho, deslizando sem dificuldade pelos trilhos que me eram as pregas recuperadas, apitando antes e depois de mergulhar na água. A Dra. Chucrute ficaria orgulhosa. Dei a descarga. 

Limpei minha bunda e tomei banho. A água gelada me escorreu pelo corpo. Lavou-me a alma e livrou-me de antigos apegos, todos mal envelhecidos e fedendo muito mal. Como podia? O corpo humano armazenar tanta merda. 

De repente, o celular tocou. Ignorei a pequena e muito contida torrente de mensagens que me questionavam onde fui parar e que aquele tipo de coisa não se fazia com alguém. Visualizei. Ignorei. Excluí.

Pouco tempo depois, o celular tocou de novo.

Uma solicitação de amizade surgiu na tela.

Era Rosa.