31 de outubro de 2021

A Gata Preta (Parte III)

 



III.

Casa

 

 

Dona Ilda perguntou mais uma vez:

– O senhor tem certeza?

José já pusera sua assinatura em pelo menos três folhas.

– Eu tenho, sim.

– O senhor sabe que leva tempo pra eles se adaptarem, ainda mais depois desse tipo de situação tão... ai, meu Deus... tão horrível.

José balançou a cabeça.

– Como eles estão?

– Menos assustados e interagem melhor com os demais gatinhos. Mas eles não se desgrudam, por isso, apesar de te perguntar isso, fico feliz que possas levar todos eles.

– É, pois é. Separar os quatro seria injusto.

– Como eu avisei – Ilda, dona do abrigo de animais, retornou ao assunto enquanto apontava para o termo de compromisso. –, eles precisam se adaptar. Isso vai levar provavelmente mais um mês, no mínimo. O senhor tem condições necessárias pra cuidar deles?

– Tenho.

– E a sua casa?

– É um apartamento. Eles permitem animais. Vou telar as janelas. Minha filha vai adorar.

– Ótimo. Mas... – ela pareceu relutante. – Os 4 gatos são pra sua filha? Ela é criança?

– Não, não são pra ela – José sorriu. E então suspirou. – Eu tive um gatinho na infância, o Stalone. Ele desapareceu. Na verdade, faz pouco tempo, descobri o que aconteceu com ele. Acho que tá na hora de superar isso. E também, desde que eu entrei naquela casa, sabe.... Acho que eles me ganharam ali.

 Dona Ilda ficou em silêncio, analisando o breve relato do investigador. De repente, talvez munida pelo mesmo senso inexplicável de santos que batem (ou não) e de faros investigativos, a dona do abrigo se deu por convencida.

– Ao longo dos meses vou sempre manter contato com o senhor, pra saber como eles estão. Tem gente que leva, acha que os bichinhos são só pra catar e bater foto, e não cuidam direito. Mas tem uma coisa que eu não entendi, seu José.

– O quê?

– Por que o senhor informou pros conhecidos da moça que alguns não sobreviveram e outros fugiram? Os familiares ou amigos não podiam ter ficado com eles?

– Dona Ilda – ele suspirou. – Eu conto essa história depois, mas adianto à senhora de que aquelas pessoas não eram lá muito confiáveis também.

A dona do abrigo assentiu. Em pouco tempo, buscou os quatro gatos que o investigador encarou pela primeira vez naquela madrugada sangrenta. Eles miaram para ele de dentro das caixas de transporte, erguerem o nariz e o farejaram através da portinhola. Ele os chamou, cada um, pelos nomes que possuíam – uma rápida averiguada nos perfis da falecida dona no período de investigação o familiarizou com cada um dos bichanos.

Mortitia, a gata preta com manchas alaranjadas, apesar de desconfiada, era a mais carinhosa. Eugênio, folgado e belo, jamais era contrário a um carinho ou atenção. Já as gêmeas, Florbela e Maria Teresa, de longe pareciam aquelas duas criaturas frágeis de um mês atrás. Estavam fortes, encorpadas, saudáveis e alegres.

José voltou para casa ao som dos miados dos novos integrantes. Clarinha mal esperaria pela surpresa e decerto amaria a nova adição à pequena família de dois.

Naquela noite, sem que soubesse disso (ou que se lembrasse, pois ao contrário dos gatos, os humanos possuem a memória curta), José sonharia com uma noite estrelada.

Dentre as estrelas que ele veria, três pares se destacariam. O primeiro, incandescente, imponente e ancestral, brilharia com gratidão e confiança enquanto apontasse para o sonhador. O segundo, um par fraco, brilharia feliz e satisfeito por ver os irmãos a salvo. Já o último teria um brilho distinto – duas estrelas de cores diferentes, uma azul, outra verde.

Um brilho que nunca esqueceu de seu antigo dono. E que, lá de cima, diria olá para ele.  

 

30 de outubro de 2021

A Gata Preta (Parte II)




II.

Umbral

 

O movimento era fraco naquela manhã de terça-feira. José aguardava no lado de fora do prédio de perícias científicas com um copinho descartável de café preto e amargo fumegante nas mãos. Apenas uma viatura esteve parada com as portas traseiras abertas quando ele chegou, mas não demorou para que logo retirassem dois caixotes compridos, subissem a rampa e os fizessem desaparecer no interior do prédio. A viatura voltou para, talvez, outra ocorrência.

Ele sorveu um gole de café quando Silvia finalmente apareceu. A touca escondia os longos cabelos cacheados. Vestia o uniforme azulado, a máscara hospitalar sob o queixo. Ela sorriu para José e o entregou um envelope pesado e lacrado com o logo do instituto.

– Tudo aqui? – Ele perguntou ao apanhar o envelope.

– Tudo aí. Enviei uma cópia por email pro teu chefe.

– Ele que pediu?

– Foi.

– Ok – ele deu de ombros e finalmente sorriu de volta para ela. – Oi.

– Oi – ela se colocou na ponta dos pés para dá-lo um rápido e contido abraço. – Tu estás bem?

– Tô, tô sim – ele mentiu, tentando soar convincente.

– E a Clarinha?

– Ela tá ótima.

– Ah, que bom – Silvia estava meio atrapalhada por conta do abraço.

– Acho melhor eu ir.

– Tá certo.

Antes de se virar e descer a rampa, Silvia o chamou.

– Ei, Zé.

– Hum?

Ao longo dos anos, Silvia já havia descoberto muitos indícios quase invisíveis e indetectáveis nas entranhas de cadáveres. Redigira uma infinidade de relatórios solucionando mortes aparentemente naturais e outras que de naturais nada tinham. Enfrentara cinco grandes casos de comoção estadual e esteve envolvida em pelo menos dois que ganharam atenção da mídia nacional. Não duvidava das próprias suspeitas, por isso todas elas apontavam para uma direção muito clara e identificável. Era um trabalho que buscava indícios. Os indícios levavam a causas e as causas clarificavam as provas. Não à toa sabia que José estava mentindo. Não estava tudo bem. Mas suas averiguações terminavam aí.

– Sabe, eu já vi muita coisa estranha por aqui. A maioria delas só é estranha, então logo a gente acaba esquecendo. Não sei se eu vou esquecer dessa, porque isso... – Ela apontou para o envelope. – Isso é uma das mais estranhas que eu já vi.

– É, né? Nem me fale, doutora.

José enviou uma piscadela para Silvia e desceu a rampa.

Ele entrou na viatura da polícia civil e dirigiu à divisão de homicídios. Quando o carro parava em um semáforo, José encarava o envelope sobre o banco do carona com um incômodo pulsante. As últimas cinco semanas foram tomadas por aquela sensação esquisita – a de olhar para um rosto passageiro na rua, ser cumprimentado por ele e cumprimentar de volta por pura educação, já que você não se recorda a quem ele pertence. Qual o nome dele? De onde nos conhecemos? Quando nos vimos?

Desde que atendeu a chamada em uma madrugada vazia de sábado e precisou arrombar a porta da casa para encontrar aquele cadáver desfigurado, iniciou-se a tal sensação esquisita. O rosto desconhecido, que te acena e te conhece, que de você jamais permitiu-se esquecer, embora a recíproca tão pouco tivesse de verdadeira. Não era exatamente o rosto, muito menos a vítima, mas as características do crime. José já havia visto aquilo antes, não é? Ou, pelo menos, tinha ouvido falar. Tinha sido em algum caso não solucionado nos últimos 12 anos em que trabalhava como investigador? Não. A peculiaridade obscena do crime não o faria esquecer tão facilmente. Algum boato soprado por um colega de delegacia? Talvez. A semelhança do rosto desconhecido, ou melhor, as características do crime esquisito soavam como um sussurro, uma voz flutuando no fundo de um salão barulhento e da qual você luta para querer escutar, para prestar atenção. Uma fofoca fraca relatada no meio da multidão, um nome esquecido no fundo da memória que persiste em se esconder por trás de brumas densas. Que merda era aquela que não o deixava dormir direito há mais de um mês?

Quando chegou a delegacia, torceu para que as últimas horas de seu plantão fossem calmas. Que nenhum corpo surgisse nas valas ou nos terrenos baldios do bairro e das regiões em volta. Que nenhum casal equilibrado resolvesse colocar as desavenças em dia e que nenhum sujeito de bom caráter se sentisse ofendido pelas reclamações infundadas de uma esposa saturada. Que nenhum drogadinho resolvesse cruzar o caminho do dono da boca, implorasse pela vida antes de a vizinhança escutar os disparos e relutasse em ligar para o CIOP, embora cedo tarde alguém sempre o fizesse. Que nenhum daqueles casos diários e corriqueiros fosse transferido ou solicitados para a Divisão de Homicídios e exigisse que o investigador José Alvarenga por lá aparecesse, a menos de quatro horas para o final do plantão.

Ele se esticou por trás da mesinha que dividia espaço com outras cinco. Abriu o relatório e o leu de cabo a rabo, embora já soubesse de cada conclusão – na verdade, inconclusões –, extraoficialmente. Então ligou o computador e criou um novo arquivo, nomeando-o com o código do caso em caixa alta. A partir dos pontos que leu no relatório da perícia, assinado pela Dra. Silvia B. Costa, médica legista, complementou com as lacunas do que havia observado na noite em que arrombou a casa e viu a cena do crime, além de toda a investigação que fizera ao longo das últimas semanas.

Embora a vítima fosse mulher, jovem, 26 anos, caucasiana e com um vasto círculo social, nada indicava feminicídio. A vítima não possuía desavenças ou relacionamentos com quaisquer homens. José, inclusive, logo percebeu que a mulher possuía uma longa lista de casos afetivos com outras mulheres, o que o levou a investigar pelo menos quatro delas. No entanto, todas possuíam álibi incontestável e pareceram verdadeiramente consternadas com a trágica morte da amiga.

Não há explicações sustentáveis, por exemplo, para quando alguém topa com uma pessoa e automaticamente por ela sinta antipatia ou desconfiança. Alguns atribuíam isso a causas sobrenaturais e espirituais, coisa de santo. José e a maioria de seus companheiros também seguiam essa linha. Você bate o olho e percebe algo incomum: uma escolha lexical diferente, uma pequena expressão em desacordo com o sentimento do momento (um olhar frio, um sorrisinho de desprezo, uma piscadela nervosa, um movimentar de mãos desalinhado com o resto do corpo). Em mais de uma década tendo de revirar, cavar e averiguar gente assassinada, José conhecia o desespero e a dor de alguém que encontra um ente querido ou um amante morto, e o quanto essas pessoas desejam, com o mais profundo lamento, remediar a situação e fazer com que tudo seja diferente. O quanto desejam acordar do pesadelo real, modificá-lo como faria um autor bem-sucedido a um parágrafo mal escrito.

Mas a vítima era amada por todos e todas. Na inconclusão inicial de um caso que não parecia levar a lugar algum, José pediu auxílio da delegacia virtual à procura de ameaças que a vítima poderia ter recebido, mas não havia nada. Estudante de Medicina e com claros sonhos de seguir na área da Neurocirurgia, a vítima era a cidadã ideal. Defensora das causas progressistas e bem relacionada, as fotos mostravam muitos amigos, dezenas de comentários elogiando sua beleza e centenas de curtidas.

Mas havia um detalhe, um único detalhe incondizente com o que José descobrira durante as investigações. Dentre os incontáveis atributos socialmente creditados a ela – tanto nas redes sociais quanto nos inquéritos com testemunhas e improváveis suspeitos –, havia a alcunha de protetora das causas animais. A vítima utilizava a imagem dos próprios gatos na capa de pelo menos duas mídias sociais, além de uma quantidade absurda de vídeos e fotos dos bichanos. Mesmo na rua em que morava, os vizinhos eram capazes de defender e corroborar tal imagem, embora houvesse alguém para discordar disso – geralmente uma velha carrancuda e fofoqueira que jurava de pé junto escutar os miados dos gatos com fome e solitários, afirmando que a vítima passava dias e dias sem aparecer em casa.

– Que diabos de plantões são esses? – Questionou a velha, enquanto José anotava e se questionava se valeria o esforço de levar em consideração o que a velha fofoqueira dizia. – Tenho um sobrinho que veio do interior pra cidade na época em que fez medicina, seu policial. Ele vivia pra estudar, que Deus o abençoe. Ele também fazia plantões, mas os plantões não duravam dois, três dias seguidos. Alguns eram nos fins de semana, sim. Mas nunca vi um que começasse quinta à noite e terminasse segunda de manhã. Nunca vi isso, seu policial. Eu sei bem onde essa menina devia fazer plantão...

José anotou tudo. Em menos de uma semana de investigação, concluiu que a velha tinha oferecido mais informações relevantes do que os demais vizinhos. Também a incluiu na lista de suspeitos, é claro. Mas era uma senhora com artrite em ambos os joelhos que vivia para cuidar das próprias plantas e de dois cachorros. Além disso, morava a três casas de onde residia a vítima. A velha jamais teria tempo de fugir quando os vizinhos escutaram o último da série de gritos desesperados emitidos pela vítima, conforme relataram na ligação à emergência.

 Quando entrou na casa da vítima naquela madrugada, o cheiro de urina entrou no nariz como um soco. Como se injetassem ácido pelas narinas, José precisou recuar, dobrar a camisa de cima sobre o rosto como uma máscara e acender as luzes. A casa possuía seis compartimentos: sala, banheiro, dois quartos, cozinha e área de serviço nos fundos. A mulher estava na cozinha, estatelada no chão com as mãos na altura do rosto. A expressão escondida era de terror: a boca entreaberta num grito seco, os dedos esfarelados e os olhos comidos, uma gosma vermelha e branca escorrendo, ainda fresca, pelo buraco das órbitas.

Todo o corpo da vítima estava triturado no que pareciam pequenas mordidas. O pé direito estraçalhado. Pele e meia tornaram-se uma camada só de sangue e carne. Um buraco no calcanhar, irregularmente aberto, já começava a atrair as moscas. Toda a parte coberta por peças de roupa fora igualmente mordiscada e consumida. De dignidade, nada restara da vítima.

Porém duas coisas absurdas chamaram a atenção do investigador, da equipe de policiais militares (que o ajudaram a arrombar a casa) e das equipes de perícia que chegaram à cena posteriormente:

A primeira foram as pequenas patinhas felinas que salpicavam a geladeira branca, a mesa e o fogão. Tais registros também existiam pela pia e alguns elevavam-se das paredes até o teto, como se os animais que ali estiveram corressem em pavorosa, ignorando a existência da gravidade. Muito além de impressões felinas carimbadas a sangue pelo corpo da estudante, haviam as marcas das unhas: rasgos finos e profundos que mergulharam na carne dos braços, das coxas, da barriga e do pescoço, como gatos a afiarem as unhas num arranhador de papelão. Os indícios de dentinhos estavam nos orifícios abertos com mais profundidade. Nenhum dos golpes realizados era de maneira limpa ou clínica. Todos a esmo, irregulares, sem a menor consciência ou planejamento.

Já a segunda foi o miado dos gatos presos em um dos quartos. Quando tentou abrir a porta, José notou que ela estava trancada por dentro. Precisou, novamente, arrombar a porta para encontrar os bichanos.

Àquela altura, parou de digitar o próprio relatório. Respirou fundo e coçou a cabeça. Que merda, a sensação esquisita continuava. Um rosto desconhecido o cumprimentando, dizendo olá, há quanto tempo não te vejo, Zé. Como tu estás?

– Bem – ele respondeu em voz baixa, sem que ninguém na sala percebesse. – Bem pra caralho.

Levantou para buscar mais café. Julieta, do balcão, o alertou para os perigos do consumo excessivo de cafeína em horário de almoço. Ele se espantou com a informação, já que não percebeu as horas passarem, agradeceu a preocupação da senhorinha e retornou com a xícara cheia.

Quanto mais lembrava do corpo da vítima, mais o rosto desconhecido sorria para ele. Então redigiu seus complementos para com o relatório de Silvia. E, finalmente, mencionou os gatos: cinco deles estavam naquele quarto. Acuados e confusos, mal sabiam se permaneciam na defensiva e caminhavam para trás à procura de um lugar onde se esconder, ou se engoliam o medo em nome da carência e da fome que sentiam. Eles não estavam esqueléticos, isso era certo. Mas clamavam por comida. As vasilhas, sabe-se lá há quanto tempo, vazias. Os miados eram fracos e sofridos, mas suficientemente audíveis no objetivo de comunicarem a fome. Havia uma gata preta com manchas alaranjadas que tomou a frente. Ela chiou na direção de José, mas parecia confusa com a resposta atenciosa que obteve dele. O segundo gato, aquele que estampava metade das fotos nas redes sociais da vítima, tentou levantar, mas cambaleou e caiu atrapalhado da cama. Ruivo, peludo e charmoso, seria naturalmente mais gordo se não exibisse tanta fome e desorientação.

Já os outros gatos eram menores, três filhotes em uma caixa. Duas gatinhas brancas estavam aninhadas com os olhos piscando, fracos. Ao menor toque da mão gigante de José, parecia que se desfarelariam. Ainda estavam vivas, mas em uma situação alarmante. E havia o último: um filhote acinzentado de orelhas pretas. Estava duro, morto há talvez mais de um dia, porém deitado em uma posição que curiosamente parecia a de vigília, de frente para as irmãs branquinhas, como se até o último suspiro estivesse ali para assegurá-las de que tudo ficaria bem.

O quarto, que claramente pertencia a vítima, estava abafado. As janelas fechadas, as cortinas em posição para bloquear a luz solar e o cheiro de mijo e de merda ali dentro era duas vezes mais insuportável que no resto da casa.

Estranhamente, os dois gatos adultos que ainda possuíam forças para ficar de pé, não fugiram nem com a porta do quarto escancarada. Se por medo dos policiais que ali entravam ou se desesperados para receberem alimento, José não soube explicar. Antes de lembrar que havia um corpo na cozinha, ele procurou ração para os bichos. Buscou nas estantes do quarto, no guarda-roupas e nos armários. Os legistas e os PMs estranharam a prioridade do investigador, mas ele revirou os móveis, descumprindo no mínimo três protocolos para cenas de crime. Fracassado, misturou água com leite em pó em uma vasilha e fez com que os bichos tomassem. Eles afundaram os rostinhos e melecaram boca e bigodes no leite.

E foi aí, só aí, olhando os bichanos mais de perto, que José percebeu o quanto eles estavam limpos, apesar de abandonados. Não estavam sujos de sangue, não mostravam quaisquer indícios de terem tido contato com o corpo. Todas as saídas da casa, sobretudo as grades da frente e as grades que cercavam a área dos fundos, possuíam telas e redes de proteção. Não foram rasgadas, sequer estavam com buracos abertos por onde animais externos pudessem invadir ou por onde os internos pudessem escapar. E, a julgar pela ausência de muitos insetos e pelo cheiro de sangue ainda fresco (aliados aos relatos dos vizinhos de que a vítima gritava em desespero), José concluiu, já de antemão, que a mulher estava morta há pouco mais de uma hora.

Todas as conclusões prévias daquela noite estavam certificadas no relatório. A vítima foi atacada por um grupo de animais, contabilizando, no mínimo, quinze ou mais felinos, dizia um trecho dele.

O investigador não colocaria suas impressões mais pessoais no relatório final – nem da maneira mais polida, sugestiva ou técnica. Não discorreria sobre o quanto o gatinho morto parecia proteger as irmãs ou o quanto os outros dois confiaram no primeiro desconhecido que arrombou a porta para buscar comida a eles. Também não mencionaria a negligência da dona dos gatos, afirmando, em tom de denúncia, o quanto a casa era infestada por baratas ou fedia a fezes e mijo, tampouco citaria a ausência de cuidados para com os gatinhos – e o quanto isso contrastava com a imagem que dela defendiam e que dela possuíam. Ela já estava morta, de qualquer jeito. Era uma estudante promissora de medicina, socialmente bonita e caucasiana. Mas estava morta. De que adiantava que soubessem a verdade, num caso em que nem mesmo a polícia e os peritos conseguiram solucionar?

– E aí? – Alguém por sobre os ombros de José perguntou. Era Marcos, outro colega investigador. – A galera fez um bolão pra esse caso.

– Ah, foi? – José tomou outro gole de café. – Apostaram o quê?

Marcos deu de ombros.

– Uma grade de Brahma. Metade acha que foi crime passional.

– Mas como ele levou uns cinquenta gatos pra dentro da casa?

Marcos ergueu os ombros com uma expressão de esperteza.

– Pois é, não faz sentido. Por isso eu apostei na outra alternativa.

– Qual que foi?

– Gatos assassinos.

José riu com tamanho absurdo. Um rosto desconhecido ainda batendo na porta dele, dizendo olá.

– Eu não tô brincando, Zé. Olha só, tu lembras daquele antigo conjunto habitacional nos limites da cidade?

– O conjunto Icamehí?

– É. Esse aí.

– Eu morei lá.

– Porra, e tu não lembras daquela história do velho que matava gatos?

José largou a xícara sobre a mesa e girou na cadeira.

– O quê?

– Porra, Zé. Como assim? – Marcos começou a rir com a eloquência vitoriosa de um bufão que descobre saber mais sobre um assunto que os outros. – Tinha um velho no conjunto, lá pela década de 70. Ele amava gatos, sempre colocava comida pros bichentos na frente de casa. Aí os gatos da rua todos iam até lá, comiam, entravam pela grade.... Aí o velho parou de aparecer, os vizinhos começaram a sentir um cheiro forte e chamaram a polícia. O homem tava era morto lá dentro, todo dilacerado com marcas de mordidas e de arranhados. Mas o pior de tudo: descobriram que o velho colecionava olhos de gatos em uns recipientes de vidro com formol. Isso aí não é mentira não, pergunta pro povo da nossa idade, eles vão tudo confirmar.

– Como tu sabes disso? Como era o nome do velho?

– Ah, vou lá saber? Essa história não tem na internet, é antiga, Zé. Me admiro é de ti não saberes isso – Marcos deu um tapinha nos ombros do colega e acenou, distanciando-se. – Mas não me conta nada, não. Quando tu entregares o relatório, a gente descobre. Vou ganhar esse bolão. Gatos assassinos. É.

José ficou ali, parado, vendo o colega se distanciar como um adolescente fanfarrão. Buscou a xícara de café, mais um gole, precisava de só mais um gole, mas ela já estava vazia.

Ele girou na cadeira, encarou as quase dez páginas de relatório complementar e demorou a digitar novamente. Concluiu com palavras secas e mais diretas que o normal. Não checou os erros ortográficos, ninguém fazia aquilo em relatórios da polícia. Imprimiu a papelada, grampeou e anexou ao envelope da perícia com um clipe de papel. Bateu na porta do delegado e entregou a papelada. Respondeu algumas perguntas, todas realizadas de forma breve e pouco compromissadas. A particularidade do caso pesava mais do que a solução em si. Algum barulho seria feito, já que a vítima era uma mulher branca com boas amizades, mas pelo pouco vínculo com a família, ninguém faria caso e tão logo os bons e verdadeiros amigos deixariam de se importar. Ninguém mais lembraria. Talvez virasse uma história, um mero boato estranho na divisão.

José saiu da delegacia naquela tarde com o incômodo finalmente solucionado – pelo menos alguma coisa haveria de ser aliviada. O rosto desconhecido que dera olá para ele por mais de um mês finalmente fora descoberto. Era um rosto antigo, dos tempos de infância, uma história que foi contada a exaustão em sua alameda e em todo o conjunto. O velho que amava gatos e de repente foi encontrado morto revelou-se não ser tão agradável como aparentava. Muitas histórias foram contadas a respeito depois que a polícia esteve lá: de que ele ainda estava vivo, de que pegaria as crianças que ficassem depois das dez da noite na rua, de que era ele caçando os gatos quando esses gritavam lá fora em cima dos telhados, de que ele possuía um cemitério de bichanos no quintal ou, pior, de que dentro de casa muitos gatos-zumbis eram alimentados com os corpos daqueles que ele matava.

Todas aquelas histórias eram surreais, exageros infantis de uma época em que medo e inocência eram bons irmãos. Mas se havia algo do qual José finalmente lembrava agora – desfeito o véu do bloqueio que estivera sobre seus olhos durante as últimas semanas e, certamente, durante as últimas décadas –, era o par de olhos de seu gatinho naquela época. Como ele se chamava? Ah, sim. Stalone. Stalone e seus olhos de cores diferentes – um azul, outro verde. Stalone que nunca saía de casa e, na primeira vez que o fez, jamais retornou.

Como uma certeza clarificada, José tinha acesso às memórias da infância. Morava na rua do velho assassino de gatos? Era esse tal velho o senhorzinho que sempre cumprimentava seus pais e ele? Encontrara Stalone a porta do velho assassino, na vez em que ousou pular muros e telhados pela primeira vez? José tinha a resposta, mas não quis se debruçar sobre ela.

Já eram três da tarde e precisava retornar para casa. A filha, Clarinha, o estaria aguardando. Mas havia algo mais a ser feito. Só uma coisa a mais.

Por isso, naquela tarde, ele não dirigiu de volta para casa. 



29 de outubro de 2021

A Gata Preta (Parte I)

 



I.

Soleira

 

O pequeno Gilbert acordou de um longo, longo sono. Espreguiçou-se com a pequena boca, os dentes rangeram uns nos outros quando a fechou. Não sabia onde estava, embora recordasse de que também era escuro no lugar onde adormecera. A diferença era que quando fechara os olhos, estava quente e abafado, a respiração saía em brasas pelo focinho rosado, já aquele lugar onde agora acordava era agradável como uma noite envolta em conforto pelo cheiro do papelão ou dos demais irmãos.

Isso. De repente, recordou-se dos irmãos. Onde estariam? Quando levantou sobre as quatro patas felpudas, averiguou o local em volta em busca do cheiro adocicado dos companheiros fraternos, mas nada sentiu. Mortitia era a irmã mais velha e a que exalava o perfume mais forte entre eles, com pelagem rala e macia, inteiramente preta se não fossem os salpicos de manchas alaranjadas. Era ela quem, em quaisquer situações adversas, mostrava as presas para atirar uma ordem ou para relembrá-los de um perigo que ainda desconheciam. Nela confiavam e a ela temiam, jamais avançavam um ou doIs passos onde ela adormecia ou se lambia sem que antes anunciassem um miado. Se ela os olhasse de soslaio, prosseguiam. Se ela arranhasse a garganta, regressavam.

Eugênio era o segundo: felpudo, ruivo, gordo e carismático. Decerto pouco precisava fazer para que de todos ganhasse as atenções e os carinhos. Era o irmão do qual Gilbert mais gostava: estava sempre pelos cantos deitado, aceitava as lambidas do irmão mais novo e a elas também retribuía. Corriam um atrás do outro, mordiscavam cangotes e entrelaçavam as patas. Eugênio tinha um cheiro peculiar que tomava conta de toda a casa, porque eram dele as bolas de pelo que com mais frequência rodopiavam em meio ao lixo dos fundos ou ficavam agarradas ao xixi que alguns deles depositavam nos três pontos diferentes da sala de estar onde eram acostumados a mijar, pois a areia, aquele fino fio esquecido nos fundos, estava sempre acumulada com as fezes de uma ou duas semanas.   

Florbela e Maria Teresa eram as gêmeas. Embora fossem quase duas horas mais velhas que Gilbert, eram menores e até as cores e as fraquezas compartilhavam: mais frágeis e leves, eram brancas como algodão e sempre pareciam prestes a rachar a simples menção de toque. Eram chamadas de gêmeas pela Grande Mãe e por todos os Grandes Outros que ela trazia para casa, em meio a risos, cantorias e forte cheiro de álcool. Todos os irmãos adoravam as noites de cantorias, pois a Grande Mãe os entregava toda a atenção que nos demais dias a eles era negada. Na presença dos Grandes Outros, fazia carinho nele e em seus irmãos e compensava os vários dias e incontáveis noites em que passava fora deixando-os de estômago vazio. Ao lado dos Grandes Outros, a Grande Mãe os entregava ração, carne enlatada, cafunés e a eles dirigia a voz melosa e carinhosa. E muito embora Eugênio e as gêmeas fossem os alvos de todos os carinhos, Gilbert arriscava alguns saltos em direção das pernas da Grande Mãe e de seus amigos, aproveitando aquela profusão de vozes e de atenção enquanto tivesse tempo.

Passadas as noites de cantoria, pouco viam a presença da Grande Mãe por ali. Entregava a eles portas trancadas e grades teladas. Quando, raro, aparecia, caminhava entre eles de maneira indiferente, sempre com pressa. Ainda mais raras eram as vezes em que nesses momentos entregava-lhes comida. Por sorte tinham as baratas que subiam pelo ralo do banheiro ou se arriscavam nos restos de comida de cheiro cítrico abandonados na cozinha. Por várias noites eram os insetos rastejantes que preenchiam o vazio da barriga e os divertiam no calor abafado das paredes da casa.

Todas essas memórias vieram em um fluxo luminoso na cabeça de Gilbert. Quando acordou, mal parecia ter consciência da própria existência – quem era, como era e onde adormecera. Agora, no entanto, em meio ao jorro de informações, caminhava mais seguro de si na escuridão que o cobria. O focinho apontava em todas as direções em busca do aroma dos irmãos ou qualquer superfície que os localizasse. No escuro noturno da casa, conseguia enxergar com perfeição, já naquele escuro reconfortante, o nada existia em todas as direções. Quando olhava para cima, via o mesmo que enxergava quando olhava para baixo, apenas as patinhas felpudas de um cinzento claro davam a ele a sensação do que era em cima e do que era embaixo. Entretanto, a superfície que pisava não existia sob as patas, apenas o mesmo vazio escuro que havia dos lados e adiante.

Agora temeroso e confuso, Gilbert começou a miar. Um miado de pavor. Chamou pelos irmãos. Desejou a maciez de Eugênio. Implorou pela frágil alegria das gêmeas. E suplicou pela segurança que Mortitia oferecia, mesmo a contragosto.

Quando do vazio só recebeu de volta os ecos do próprio miado, o filhote se aninhou na estranha superfície em que caminhava. Uma bolota de pelos acinzentados em meio a escuridão. O rabo entre as pernas, as orelhas ora atentas, ora recuadas. Assim que os ecos cessaram, uma resposta brotou da escuridão:

– Olá, Gilbert.

O filhote chiou e ficou de pé. O rabo agora teso como um espanador.

Ele olhou em volta, mas nada viu. Caminhou para trás, girou para todos os lados e arreganhou as unhas, porém, novamente, nada viu.

Entretanto havia um aroma no ar. Se aquela escuridão, apesar de vazia e angustiante, tinha a temperatura de uma noite agradável, o aroma que seu focinho rosado detectou era uma mistura de todas os bons cheiros dos quais já havia sentido: o cheiro dos irmãos, o cheiro do peito da mãe que sequer conheceu (ou lembrava), o cheiro de comida recém depositada no recipiente e o cheiro do sono, o cheiro do piso gelado em tarde de calor e do tecido quente em dia chuvoso. Pouco a pouco, o rabo de Gilbert amansou e expressou menos prontidão. Manteve-se em posição de defesa por puro orgulho, aquele que ainda teria muito tempo para desenvolver nos vindouros anos de sua vida.

– Não tenha medo – tornou a dizer aquela voz mansa de cheiro agradável. – Eu estou aqui.

Em meio a escuridão, dois pontos distantes surgiram no horizonte. Dois pares de estrelas fracas brilharam no que parecia ser uma longa distância, para então rodopiarem e se aproximarem. Embora não tenham se tornado mais fortes nem mais incandescentes, Gilbert soube que o par de estrelas se aproximava, como se o distante fosse logo ali e o logo ali fosse a uma eternidade de passos.

O cheiro ficou mais forte. Logo, o par de fracas luzes brancas estava diante dele. Mas não eram estrelas. Eram olhos. E nos contornos da escuridão, de repente o pequeno filhote distinguiu – não com os olhos, mas com o olfato, com o tato e com algo mais que não compreendia – a silhueta de uma imensa e sinuosa gata preta diante dele. O preto dos pelos que ela carregava consigo era da mesma tonalidade que o vazio possuía. Ainda assim, era distinguível de maneira mais clara que Gilbert conseguia enxergar à noite.

– Você me chamou, criança – disse a gata sem abrir a boca. Não era uma pergunta.

– Chamei?

– Sim. Estou aqui agora – as palavras proferidas pela voz mansa pareciam sorrir. Não era apenas o aroma da gata que ecoava conforto.

– Quem é você?

– Todos vocês sabem quem eu sou. Todos vocês sabem o meu nome.

– Sim – Gilbert não sabia como, mas era verdade.

Ela era filha do Sol e há incontáveis séculos foi responsável pela iluminação de dinastias inteiras, gerindo e acolhendo grandes reis que a ela chamavam de mãe-protetora. Por ela esses breves e poderosos homens foram guiados no tempo solar de seu pai e por ela foram auxiliados quando a noite os deitou em seus majestosos túmulos. Gilbert também soube que era ela, a gata preta, quem escoltava o sol pelos céus e dele afugentava a serpente maldita.

Ela sabia o nome de cada ancestral de Gilbert e saberia o nome de cada pequeno filhote que seria dado à luz. Ela conhecia o nome de cada mãe morta incapaz de escutar o ronronar de seus filhotes e conhecia o verdadeiro pai de cada um deles. Embora momentaneamente esquecida durante o período em que os felinos estivessem despertos, a gata preta era sempre lembrada quando eles pregavam os olhos, fosse em sonhos, fosse no pós-vida, pois ela acariciava a todos e os lambia também, oferecendo em seu corpo um lugar onde adormecer angústias e atender desejos não ditos.

Gilbert sentiu-se acolhido porque, olhando para aquele par de estrelas fracas, soube que ela sempre esteve ao seu lado, até mais que Mortitia, Eugênio, Florbela e Maria Teresa jamais estariam, muito embora a eles a gata preta também oferecesse igual conforto. Ele sempre soube disso, apenas não lembrava nos períodos em que esteve desperto. A informação sempre estivera dentro dele: correndo pelo sangue físico e pulsando pelas veias que sua percepção intocável era munida. Seus ancestrais também possuíam tal informação e os filhotes de Gilbert também a possuiriam caso tivesse a oportunidade de serem gerados.  

Menos tenso, o filhote permitiu (ou julgou permiti-la) que a gata preta se aninhasse ao seu lado, Era muito maior que ele. Maior que Eugênio e mais imponente que Mortitia jamais seria. Ainda assim, trazia consigo a delicadeza de Florbela e Maria Teresa.          

– Conte-me, criança. O que tanto o angustia? – Perguntou ela.

– Eu não sei onde estou.

– Não?

– Que lugar é este?

– É a soleira de sua casa.

– Não, não – ele grunhiu, aninhando-se ao pelo dela para afugentar o medo. – Esta não é a minha casa.

– Não, pequeno. É a soleira. Sua casa fica a um salto daqui. Você está perdido, mas encontrará o caminho.

– É por isso que está aqui?

– Também.

– Então...

A gata preta pareceu soltar uma risada fraca, então o lambeu da nuca até quase o meio dos olhos. Repetiu o movimento mais duas vezes.

Gilbert pareceu menos confuso. Menos... angustiado.

– Conte-me – ela tornou a perguntar. – O que, de verdade, tanto o angustia?

– Quero voltar para casa. Quero voltar para os meus irmãos. Quero voltar para a Grande Mãe.

Pela primeira vez, a gata preta chiou. Porém não na direção de Gilbert. Ele não se sentiu ameaçado.

– Ser mãe não é um dom, tampouco um privilégio, criança. É um aprendizado. E aquela a quem você chama assim pode ter muitos nomes e ser chamada de muitas maneiras por cem línguas distintas, exceto de Grande Mãe. Esse não é um nome ao qual ela mereça.

– Quem é ela?

– Uma humana.

– Humana?

A gata sorriu.

– Como vários humanos antes dela e como vários depois.

Nesse ínterim, Gilbert foi novamente assolado por mais memórias. Eram miados. Seus e de suas irmãs, as gêmeas.

– Eu estava chamando por ela – o filhote utilizou outro termo. Estranhamente, não a chamar de Grande Mãe pareceu bem mais adequado. Qualquer outro nome soaria mais suave na boca. Mais justo. – Minhas irmãs e eu estávamos chamando, mas ela não veio. Ela não veio.

– Eu sei, criança. Escutei os seus chamados.

– Por que você não veio antes? As gêmeas, elas... elas estavam... eu estava...

A gata preta assentiu. As fracas estrelas apontando para os pequenos e perdidos olhos azuis do filhote.

– Eu só pude vir agora.

– Você observou a tudo? Você nos viu?

– Eu os ouvi. Eu os observei. Eu farejei o cheiro forte. Eu senti suas dores e meu estômago foi embrulhado pela sua fome, criança. Até o fim.

– Até o fim?

A gata preta não respondeu. Não faria diferença, caso o tivesse feito.

– Por que você não fez nada? – Ele ousou elevar o tom de voz e sentiu-se acuado da mesma forma quando ousava avançar pelo território de Mortitia.

Após um longo silêncio, a gata preta respondeu:

– Desde que aprenderam a reinar, os humanos se tornaram maiores que aqueles que foram gigantes antes deles. Hoje, o reinado deles é impetuoso. É grandioso, Gilbert. Por outro lado, existem coisas maiores que os humanos, esses seres de memória curta, e maiores que nós, que lembramos das coisas que as Esfinges esqueceram. 

O filhote não entendeu. Sabendo disso, a gata preta o empurrou para mais perto da resposta.

– Por que está aqui, Gilbert?

– Eu não sei.

– Você sabe. O que tanto o angustia?

– Eu... eu não sei.

– Um desejo silenciado é um desejo morto, criança. Se pronunciá-lo, terei forças.

– Para o quê?

Novamente, a gata preta sorriu, desta vez, maliciosa. Ergueu-se sobre as patas e esticou o focinho até a orelha esquerda do filhote. Perguntou outra vez:

– Lembre. O que tanto o angustia?

Arrepiado, o pequeno filhote chiou e, desta vez, foi inundado por todas as memórias que ainda estiveram turvas até aquele momento. Recordou-se de Eugênio, de Mortitia e dos miados das gêmeas. Recordou-se, acima de tudo, dos próprios miados, porém o quanto eles eram irrelevantes (e a dor que vinha acompanhada deles) diante da situação de Florbela e Maria Teresa: as duas ao seu lado, aninhadas em uma caixa, os olhos piscando cada vez mais lentos e o peito subindo e descendo cada vez mais devagar, sem energia, sem a frágil alegria da qual possuíam e que finalmente parecia se esvair dos corpos de pouca saúde.

Gilbert lembrou-se do quanto miou. Não pelo buraco que parecia haver em seu estômago ou da fome que sugava as energias necessárias para fazê-lo se sustentar sobre as patas, e sim pelas súplicas que direcionava a ela, à humana, à outrora Grande Mãe que sempre esteve fora, sempre do outro lado da porta, que a eles pouco alimentava e que a eles relegava à sujeira e às baratas.

O filhote recordou-se do quanto chamou pela humana, para que ela viesse ao auxílio de suas irmãs gêmeas. Que ela as salvasse. Que ela estivesse ali. Que ela...

– Agora você sabe o que tanto o angustia, criança? – Perguntou a gata preta, satisfeita.

– Sim, agora eu sei.

– O que você deseja?

Gilbert respondeu.   

Na escuridão do imenso vazio, a resposta ecoou como um estrondo. O sorriso de satisfação no rosto felino da gata era inegável. Finalmente, o filhote compreendeu o que era maior que os humanos e maior que eles, os felinos, os verdadeiros filhos do Antigo Nilo.

A gata utilizou a própria cabeça para dar um leve empurrão em Gilbert. Ele já estava de pé, seguindo na direção em que ela o indicava. Nesse instante, porém, o imenso vazio preto não era mais um vazio. Olhando adiante, Gilbert pôde testemunhar uma profusão de pares de estrelas, um arranjo infinito de pontos fracos e brilhantes pairando na escuridão do outrora imenso nada. Ele olhou de volta para a gata preta, mas agora os olhos dela brilhavam, incandescentes, porém sem ofuscá-lo. Os olhos da gata eram o par de estrelas gêmeas mais forte naquele vazio.

No instante seguinte, Gilbert não percebeu, mas seus olhos também eram estrelas e faziam parte do interminável oceano de constelações. Todas as estrelas estavam atrás dele – os olhos de todos os gatos adormecidos do mundo: filhotes, jovens e idosos, machos e fêmeas, de todas as cores, tamanhos e temperamentos. E, à frente de todos eles, inclusive do pequeno Gilbert, caminhava a gata preta, sinuosa e ancestral. Ela carregava, um por um, o desejo de todos aqueles gatos que a seguiam. Atenderia a cada um deles. O primeiro, aquela noite, seria o do pequeno Gilbert.

Assim eles caminharam na soleira.

A caminho de casa.



28 de outubro de 2021

Halloween 21


 



É Halloween e o autor deste blog ainda está vivo.

Trago duas novidades neste finalzinho de Outubro, data tão especial para os amantes do terror/horror.

 


A primeira é um EP de Halloween, o The Space Cow's Halloween Songs & Tunes, Vol. 2, idealizado e realizado pelo @davi_valoart e pelo @isaacmagalhaes. Sigam o Davi no Instagram, lá há publicações explicando o que é o Space Cow e a história de cada uma das faixas que o integra. Já o Isaac foi quem me fez o convite para participar este ano. O EP conta com a participação de muita gente talentosa e as faixas foram produzidas com muito afinco por essa galera. Eles me pediram algum conto curto que pudesse ser gravado, enviei alguns e o que eles escolheram foi o da Cobra Grande.

A lenda da Cobra Grande é uma história bem familiar contada aqui na região amazônica. Muitas cidades possuem a sua própria versão, por isso a versão que foi parar no EP conta a versão belenense dela.

Dizem que a gigantesca cobra adormece nos alicerces da cidade, sua extensão é quilométrica e vai da Igreja da Sé até a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré (um pouco mais de 3 km de distância/comprimento, àqueles que não conhecem). Na lenda soprada e cultivada nos ouvidos do povo paraense, há quem diga que um dia a grande cobra despertará de seu sono. E quando isso acontecer… Bom, espero que vocês se liguem lá no Spotify para saberem o resultado.

Ele vai sair à meia-noite do dia 29, então quem estiver acordado nesse horário já vai poder conferir.

O link do pré-save no Spotify está abaixo:

 

 https://distrokid.com/hyperfollow/davivaloisandisaacmagalhes/the-space-cows-halloween-songs--tunes-vol-2-for-your-spooky-melodies-needs

 



Já a segunda surpresa é um conto que preparei para o blog, afinal ando meio sumido daqui. Achei que seria legal movimentar com uma história saída do forno. O conto se chama "A Gata Preta" e será dividido em três partes. Publicarei uma parte por dia, iniciando amanhã, 29/10, às 19h, e tendo fim no domingo, noite de Halloween, 31/10.

O conto narra a história de Gilbert, um filhotinho que se vê perdido em um local desconhecido. Lá, ele encontra uma misteriosa gata preta que tem uma pergunta a fazer. Além da jornada de Gilbert em busca do que ele deseja, também seremos apresentados a José Alvarenga, um investigador que tem nas mãos um caso de assassinato um tanto quanto esquisito e praticamente insolúvel. O que Gilbert, a gata preta e José têm em comum?

Vocês vão descobrir.

A narrativa não deixa de ser uma menção honrosa a esses animais que tanto amamos, uma subversão oportuna ao preconceito que envolve os gatos pretos e, acima de tudo, uma reflexão sobre como tratamos esses bichanos.

Espero que vocês possam se distrair lendo esse conto e escutando o EP.

 

No mais, agradeço pela atenção.

E bom Halloween a todos!


F.S.

 

 

7 de agosto de 2021

Pele



O tempo passa e

Não são as rugas que me esgueiram

A pele.

São as nuvens:

Mãos

Olhos

Nós

Vergonha

Tez e cotovelos.

Só chove tristura

No céu do meu espelho.



(Felipe Santiago)

14 de maio de 2021

Post mortem



Quem se sobressai é o monstro,

É a soma de coisas ruins:

As francas falhas que foste.


Quem se sobressai 

Depois que morre o afeto

E padece o fraterno

É o monstro:


As minúcias diárias, 

As pequenas nuances,

As rachaduras invisíveis 

No meio da santidade.


No funeral da parceria

O ode não é à memória

Nem aos grandes feitos,

Senão aos defeitos:


À vida que cercava o defunto,

Ao sangue composto 

Na história do morto.


As usurárias vozes que 

Um dia perderam o pódio 

Velarão o corpo deteriorado


Ao lado de viúvas ou viúvos

Com a pústula ânsia de dizer:

"Eu era melhor",


Embora esses abutres

profanadores

Não o sejam

Nem nunca o tenham sido.


Estarão de mãos dadas,

Risadas, triunfos e Ave Marias

Para dizerem aos órfãos-amantes


Que a tonalidade e a classe

Não enganam: "a razão nos cabia!"

Embora nem tanto.


Pois dos mortos o que fica

É o que deles dizem:

Não o que nas juras,

Não o que nos laços,

Não o que nas vidas,

Não o que nos atos

Privados o foram.


Quem se sobressai é o monstro,

É o preço que o amor

Haverá de cobrar.


(Felipe Santiago)

22 de março de 2021

Tartaruga

Old French Fairy Tales by Virginia Frances Sterrett (1920)



as winter approaches

the panted turtle burrows into the mud

to avoid the harsh cold

and holiday family parties.

 

(Autor desconhecido)

 

Nesta cidade, dizia-se que  Celina era um recipiente podre, um corpo ambulante de drogas vivas. Olhavam e viam nela a figura carimbada de doces, ácidos e coisas mais. Coisas mais porque eu não entendia tanto sobre drogas como gostaria de entender para confeccionar minhas linhas ou o quanto aparentei conhecê-las tão empiricamente em outras histórias, portanto deixava a cargo dos aventureiros. Talvez, se a encontrasse por aí, quem sabe me ensinasse não com exemplos práticos, mas com toda a forma didática com a qual possuía a capacidade de esclarecer tais dúvidas de roteiros psicodélicos e melhores rotas de fuga. 

 Celina já era uma professora formada com credenciais certificadas, honras aos méritos e uma infinidade de outras parabenizações no assunto. 

Nesta cidade (e aparentemente em todas as outras), ter conhecimento e vivência da causa parece uma regalia social garbosa, detentora de um charme bobinho, transcendental e espiritualizado. Era possível conhecer uma trupe inteira de monges diplomados que entupiriam frotas de kombis lotadas, com viagens às ilhas metropolitanas em passeios com cavalos estranhos e seres fantásticos mais ainda. E quanto mais especializado na área, melhor seria seu dinamismo social.

Outro dia, sem esperar por isto, reencontrei  Celina. Algo aqui dentro fantasiava o reencontro como em uma letra de música: eu entrando em uma cafeteria e ela ali, sentada. E o resto seria como em uma letra de country-meio-blues-com-final-triste. Mas esse é o final planejado de outra narrativa em outro plano de lobos interdimensionais, aqui nem caberia citação. No entanto, foi um encontro normal de conversas normais. 

— Oi, como vai você? 

— Ah, eu vou bem — era a minha resposta automatizada. A resposta de  Celina não automatizada era um sorrisinho cabisbaixo, típico dos que se acostumaram a responder sinceramente a perguntas. 

Em seguida, vieram as notícias sobre a mãe, sobre a irmã, sobre o mergulho fundo dado pela velha e sobre o mar colorido e destoante no qual ela mesma, como filha, também mergulhara. Sentamos não em uma mesa para um café, mas para uma gelada. Celina tratou logo de acender um cigarro e me ofereceu, coisa que nenhuma de nós andava negando durante aqueles tempos. A moça divagou por mais lembranças de caminhos desastrosos dos quais acabamos nos perguntando o que merecíamos para tomá-los. Contou-me sobre a história do soco e do olho num interior do estado, um road movie decadente sobre o qual nunca se cogita um dia participar. Contou-me uma porção de histórias com aquela voz alterada que já não mais parecia com a de antes, mas literalmente a de outra mulher, porque os anos mudam nossas atitudes, nossos rastros, nossas impressões digitais e até nossas cordas vocais. O formato do rosto de  Celina mudara, mas nesse quesito até o meu. Nossos corpos estavam diferentes: os cabelos dela menos castanhos, menos jovialmente vivos, agora apenas um úmido caído, realçando a ponta das orelhas, enquanto os meus estavam mais quebradiços e grossos, um peso interno calcificado, os pés de galinha gradativamente mais agressivos e um mar grisalho cheio de ressaca batendo na orla. E tudo isso em menos de uma década desde o início daquela aventura.

— Mas acho que é assim — disse ela. — Acho que a vida é mais ou menos isso. 

— Pois é, né? — eu disse por fim, sádica por defesa, porém sorridente em meio ao peso psicológico das melancólicas conclusões não pronunciadas pela boca. 

Foi assim que  Celina também sorriu, porque não parecia ser o tipo que costumava extrair graça das desgraças, somente por não possuir o hábito. Só isso explicava o modo que o fez naquele instante com um avivamento específico nos olhos castanhos (que também andavam meio apagados) como se a possibilidade de fazê-lo se mostrasse uma experiência inédita. E o ineditismo da ocasião alegrou-a. Descobriu que podia rir das coisas tristes, tornar o peso delas menos pesado, embora voltem a nos esmagar logo em seguida, como bem costumam esmagar os bons e todos os pesos.

— Outro dia — falei, aos sorrisos — coincidentemente li algumas coisas suas…

A resposta que Celina deu, mesmo após uma década, foi a mesma de antes:

— Ah, não. Por que você fez isso? — Então se enfiava dentro do casco. Quando questionada, dizia que eu não devia ter feito aquilo, que eu não devia ter ido ali, que agora sentia-se julgada pela forma abstrata com que escrevia, porque não era boa como eu, como se eu fosse boa, como se eu fosse a melhor, como se eu não houvesse partido para os olhos do mundo inspirada no modo como ela já caminhava nele. 

— Às vezes você esquece que é boa nisso.

– Porra, não acredito. Você não devia ter feito isso, xxxxxxx.

Um fato sobre Celina era que ela ainda usava os apelidos cafonas, os apelidos perdidos de éons imemoriais. Porém quando percebeu a atitude, recolheu-se ainda mais dentro do casco, bebericou a cerveja e limpou a espuma sobre o lábio superior com as costas das mãos não do jeito tectônico e desengonçado como eu fazia, mas daquele jeito lento e discreto das tartarugas. 

De dentro do casco, ela tentou falar:

— Eu não sou tão boa quan…

E cortei:

— Eu perdi aquela forma de escrever — molhei lábios e garganta na cerveja. — Aquela forma sinestésica. A mistura das metáforas… Gostava de fazer aquilo, tipo como você ainda faz.

— Um bando de metáfora piegas.

— Que seja — dei de ombros. — É como se não houvesse mais coração nas coisas que faço por aqui. Ao contrário de ti.

— Ainda somos jovens.

— Cada dia menos — soltei, melancólica, mas agora sem sorrisos. — Cada vez não mais.

— Você ainda tem coração. Deve haver em algum lugar aí dentro, caso duvide ultimamente, xxxxxxx.

Fui tomada pelo silêncio instantâneo. Não que eu considerasse um coração jovial ainda batendo neste peito de alma tão tísica. Fraco, ele ainda estava por aqui, curvando-se às topadas que o confrontavam e entregando-se cada vez menos aos delírios de sonhos. Mais cansado que resiliente, não estava morto, mergulhava apenas em uma bradicardia solene. Apesar disso, fosse a terceira garrafa de cerveja, fossem as palavras de  Celina, fosse o apelido agora dito de maneira menos acanhada, a tartaruga mantinha-se no casco, mas lá de dentro me sorria. E estranhos galopes se avivaram.

— E o seu? No que anda o seu coração ultimamente? — Cortei, tarde, aquele constrangimento.

— Acho que em nada. 

— Como em nada?

— Em nada, sabe? — Bebericou a cerveja. Os olhos baixos, um castanho que nem mais era castanho. — Só em nada — as sobrancelhas arquearam rapidamente. Ela nunca ousou me olhar nos olhos ao responder aquilo. Se tivesse, eu conheceria o peso do nada

Ao invés disso, assim como eu, cortou o assunto, abrindo um sorriso que contemplava apenas as boca, porém não os olhos. Desviou-se dele com exemplar habilidade, dissolvendo minha preocupação naquele nada para mais tarde, quando eu deitasse na cama e disso relembrasse brevemente; desviou-se com exímia esperteza, esfarelando minhas conclusões e deixando-as mortas por meses adiante, quando eu só retornaria a elas já tarde demais.

As conversas que vieram no restante daquela noite foram de todo banais: uma leve discordância política, uma piada sobre nossas configurações astrológicas, uma atualização sobre nossos novos pets – pois o cachorro dela, Perseu, falecera há três anos – e mais quaisquer coisas pequenas que lembrarei com amargor de não insistir em questionar.

O nada de  Celina esteve evidente em cada conversa não aprofundada de detalhes omitidos, em cada grande coisa que tratava com pouco caso, como se a ascensão profissional pouquíssimo valesse comemoração ou como se a vitória de consumir cada vez menos um sem-número de doces, ácidos e coisas mais não fosse um contagiante avanço, embora sua reputação pela cidade ainda a precedesse. Um grande e desastroso nada, latente nas entrelinhas de suas frases, berrando ao fim de cada discurso vago. Ainda assim, ela permaneceu sentada naquela mesa por horas e horas, com um evidente interesse em continuar, apesar do desinteresse em falar de si mesma.

O nada esteve ali, aguardando para ser percebido. 

Não percebi.

Despedimo-nos com um abraço longo e apertado. Aqueles olhos castanhos tinham no nada de seu olhar uma mensagem que me escapou. Seria o convite que não fiz? Seria a deixa para estender a noite de conversas banais? Eu nunca soube.  Despedimo-nos como se não quiséssemos uma a presença da outra por toda a madrugada, por todo o resto da vida. Despedimo-nos com a falsa certeza de que voltaríamos a nos encontrar.

Meses depois, a notícia de sua partida me atingiu desprevenida.  Celina era uma tartaruga. Uma longeva criatura com a vida engolida por um impiedoso nada. Isolou-se no próprio casco. Já não via sentido em sair dali, pois não via sentido no mundo fora dele.  

Dentro do casco, a tartaruga adormeceu com uma alta dosagem de Alprazolam. Deitou-se no chão do próprio quarto e ali foi engolida pelo grande nada que naquele encontro deixei passar.

Nos fragmentos que me são a memória, junto aos galopes que deixaram de fazer barulho, só os ecos de uma distante conversa ainda me assolam:

 

E o seu? No que anda o seu coração ultimamente?

 

Acho que em nada. Em nada, sabe?

 

Só em nada.