É uma boa segunda-feira ensolarada de
Março e o sol entra pela casa de uma maneira singularmente acolhedora, dessas
que você não presencia com frequência. Talvez seja o meu humor, talvez sejam as
circunstâncias da minha vida: o ritmo de trabalho puramente feito em casa, a
conta agraciada no banco e minha vila recém-atualizada para o nível doze no joguinho
de celular. Juliette costumava dizer que aos trinta anos aquilo não deveria
mais ser uma atividade diária, mas eu não deveria levar a sério alguém que aos
trinta e dois tinha como hobbie sair pelas ruas da cidade caçando demônios de
bolso japoneses e coloridos.
Minha xícara de café fumegante expele
uma fumaça exótica, rodopiante, que sobe diante de meus olhos e na frente das
letras na tela quase me hipnotizando, abobalhando-me tão massivamente que sinto
escorrer por entre os lábios um filete de baba. Ou seria bílis?
Batuco os dedos sobre o teclado. A
caixa de texto está aberta, a resposta, há pouco enviada, mas por puro
impressionismo continuo a ler o email recebido. Sinto uma veia na testa pulsar,
agora definitivamente o filete de baba escorre... Melhor dizendo, o filete de
bílis escorre. Alguns absurdos são em demasiado abusivos para as noves e trinta
e sete de uma outrora bela manhã de segunda-feira.
O desktop fica na sala de estar. As
janelas corrediças estão abertas, o cacto que não sei o porquê ainda mantenho
vivo está radiante e por sorte não há nenhum gato andando pela casa para pedir
comida e fazer bagunça numa caixa de areia cheia de merda e mijo que eu
certamente teria preguiça de limpar. Às vezes, desconfiava ter herdado o ódio
por gatos de minha mãe, às vezes tinha certeza, mas havia algo irritante neles
que me impedia de querer amá-los. Talvez fosse a petulância, talvez fosse
aquele ar de desdém desgraçado que eu não precisava em um animal que supostamente
deveria me amar e por mim ser amado – alguns relacionamentos anteriores
problemáticos já eram mais do que suficientes para isso.
Ainda assim, a merda dos bichanos
federia tanto quanto àquele e-mail?
Pouco provável.
Sorvo uma quantidade quase irrisória
do café na minha xícara, o gosto biliar na minha boca já quase não permite que
coisa alguma toque a língua. Mais alguns segundos relendo a mensagem e eu juro
que vomitaria sobre o teclado.
- Bom dia. – Juliette diz atrás de
mim, colocando ambas as mãos sobre os meus ombros e fungando levemente o topo
da minha cabeça. Ela afaga a ponta do nariz por entre meus cabelos e eu quase,
quase faço um movimento manhoso, mas seria automático e robótico demais, sem a
menor dedicação.
Engulo em seco e viro o rosto para
encará-la. Ela ainda está descalça, apenas com a calcinha do dia anterior e os
cabelos desarrumados, o hálito meio mentolado devido ao Black verde que costuma
fumar e outras coisas mais que eventualmente foram parar na boca dela. A minha
também estaria assim, caso o café não tivesse borrado os bons sabores expelidos
pelo corpo humano feminino. Os bicos dos peitos estavam eriçados ao seu modo
natural, o que quase sempre me chamava para mais um beijo seguido de uma chupada
e para mais uma chupada seguida de lá vamos nós de novo.
- Tá tudo bem? – Ela esfregou os olhos
por sobre meus ombros. Sem os óculos e com a visão embaçada depois de acordar,
Juliette não funcionava.
- Oh, perfeito.
Ela mordiscou minha orelha com uma
risadinha desanimada e caiu para trás, jogada no sofá.
- Que que foi agora, Bernardo?
- Dá pra acreditar nisso? – Apontei
para a tela do computador.
- Me atualiza.
- Adivinha quem me enviou um email.
- O pessoal da gráfica?
- Não.
- O pessoal da editora?
- Não.
- Merda, O Editor em pessoa?
- Porra, antes fosse. – Mais café. Um
leve arroto e outro xingamento sussurrado entre as palavras. – Um ultimato
pseudo-polido pedindo para que eu apague textos ou modifique textos da porra do
meu site. Dá pra acreditar?
- O quê? De quem? – Juliette levantou-se
num instante.
- Adivinha, cacete.
- Espera. Quais textos?
- Os chutando o balde.
- Ah! Espera aí. – Ela estala os
dedos e volta para o quarto. Um segundo depois, está de volta com os óculos na
cara e novamente sobre meus ombros, debruçando-se como uma fofoqueira para ler.
- É um e-mail da sua ex louca?! –
Aquilo mal pareceu uma pergunta. Ela riu outra vez, mas um pouco mais nervosa e
indignada. Soltou alguns palavrões que muito bem poderiam ter saído da minha
boca. – Caralho, Bê. Essa mina perdeu a cabeça.
- Foi o que eu disse.
- Ela tá surtada?
- E ninguém acreditou. – Completei.
Juliette gargalhou de novo e
continuou do meu lado, dessa vez, ajoelhou-se no chão e ficou de coluna reta,
segurou o mouse e releu poucas linhas do que estava escrito.
- Espera aí, ela não ficou noiva três
dias depois que vocês se deixaram?
- Algo assim.
- Esse pessoal é rápido. – Outro
xingamento, outra rolada na página. – Então ela já não estava em paz com tudo?
- Eu pensei que sim.
- Isso faz tempo e esses textos são
antigos, o que ela quer contigo?
- Vai saber.
- E o processo que ela jogou contra
você?
- Quitei minhas dívidas com a lei,
senhora. – Dei de ombros e dei outra sorvida no café.
- Então que porra ela quer?
Nos entreolhamos, indignados. Nesse
instante, Juliette voltou ao sofá e se jogou novamente, cruzando as pernas
magras e branquelas e também os braços na altura dos peitos. Eu sabia que
apesar da risada que imediatamente fazia questão de exibir para irritar meus
nervos aos pedaços, também mantinha dentro de si uma indignação titânica que
fazia questão de manter em segredo.
- Ela fala que respeita sua liberdade
poética, mas te “pediu” para que excluísse ou até modificasse os textos.
Modificar? – Juliette pronunciou a palavra como se fosse um cuspe. Como se
fosse eu cuspindo.
- Blasfêmia. Isso é blasfêmia contra
os textos. – Risadinha nervosa.
Veia pulsando.
- Não
peça que um asno compreenda os ofícios da garça, jovem gafanhoto. – Ela
usou alguma referência que nunca fui capaz de compreender. Ou talvez fosse
puramente autoral.
- Ou que a gazela compreenda os deveres da
abelha. – Completei aleatoriamente e na sorte.
Juliette limitou-se a assentir.
É, era autoral.
- Ela te fodeu por aí, você chutou o
balde pra se defender e agora é obrigado a excluir tudo?! O que vai fazer? Os seus textos? Do seu site? – Pausas enfáticas no pronome possessivo.
- Eu já fiz.
- O que você fez?
- Respondi que apagaria.
- Porra, cê tá maluco?
- Eu só não quero mais confusão nem
problemas com a lei.
- Ela vai ter vantagem de novo sobre
ti?
- É isso ou outro processo.
Silêncio.
Tomei mais um pouco de café e encarei
uma última vez o e-mail abusivo aberto diante de mim. O mais irônico na
história inteira era o quão petulante ele conseguia ser ao tentar me dar uma
lição sobre liberdade poética e ao
mesmo tempo pedindo-me para modificar o texto, de igual modo como Hollywood
fazia com seus filmes regravados às vésperas do lançamento; o mais irônico na
história inteira era o quão petulante o e-mail conseguia ser com sua falsa
polidez e desdenhosa elegância e educação.
“Você tem sua liberdade poética, mas...
Mas...”
Nunca peça aos pombos que compreendam
as regras do xadrez.
- Você já excluiu?
- Por que acha que pareço tão
abatido?
- Por que não responde mandando ela
tomar no cu?
- Isso é com vocês, geminianos.
Juliette gargalhou e concordou.
- Por que não escreve uma resposta?
Outro texto ácido? Ninguém precisa saber que é para ela...
- Todos acham que é para ela. Principalmente
quando não é.
- E agora?
- E agora? – Rebati, mais por ironia
do que por concordar com a ideia de retribuição. Eu só queria me manter longe
de confusões e dos braços injustos da lei.
- Vai deixar desse jeito?
- Vou.
- Voltar para o trabalho e cumprir
com os prazos da editora?
- De volta ao dever de casa, sim. –
Dei de ombros, indignado, mas com o
sangue já circulando pelo cérebro.
- Ah, mas nem fodendo.
Juliette levantou do sofá e ainda com
aquele par de peitos pequenos e pontudos colocou-se ao meu lado, dessa vez em
pé, reassumindo o controle do mouse e minimizando a janela do email. Abriu uma
página simples e em branco do Word e apontou para ela com veemência.
- Você é um escritor. Escreva sobre
isso. Agora.
- Vou ganhar outro processo.
- Desde quando ficou tão cuzão?
Escreva. – E clicou, fazendo a barrinha pulsar com o mesmo ritmo de um coração
tranquilo e livre de processos, ex malucas ou caixas de entrada estupradas com
pedidos abusivos. – Escreva. Foda-se. É ficção, ninguém vai acreditar.
- Você quem pensa.
- Ninguém vai saber.
- Jura?
- Qual que é a intenção mesmo?
Um minuto de silêncio sugestivo.
E aí nós dois sorrimos, sádicos e
diabólicos, um para o outro.
Por isso eu amava o jeito que a mente
de Juliette funcionava e também amava o jeito como ela me contaminava com as
boas ideias sempre que eu dava uma de maricas.
- Então sobre o que eu escrevo?
- Você é o escritor, Bernardo. Pense.
- Humm.
- Meu Deus, cê é lento ou o quê? – E
então começou a digitar até que as palavras ganharam forma, um título.
- “OS ABSURDOS QUE
VÃO PARAR NO SEU E-MAIL?”.
- Se quiser tentar modificações no
título, esteja à vontade. A licença poética é sua. – Debochou.
Nós dois rimos.
- E sobre o que vai ser a história? –
Perguntei.
- Sobre um escritor que recebe um
e-mail da ex-namorada maluca que tá exigindo abusivamente que ele apague tudo o
que escreveu sobre ela, até as coisas verdadeiras. Mas ele não pode escrever
diretamente, então esse escritor senta e escreve sobre um escritor que recebeu
um e-mail da ex-namorada maluca.
- Convincente.
- Na verdade, eficiente, jovem
gafanhoto.
- Divinamente metalinguístico.
- Exato.
Empregou-me um beijo no topo da
cabeça e recolheu a xícara, fazendo questão de terminar o resto de café que
sobrara nela.
Olhei para trás enquanto Juliette
caminhava só de calcinha até a cozinha. Sexo entre amigos continuava sendo a
melhor pedida para se iniciar as segundas-feiras de Março, não e-mails como
aquele.
E-mails como aquele não.
Que se fodessem os e-mails como
aquele.
Mordi o lábio e comecei a escrever.