10 de maio de 2024

mínimo




06/23


O passado não me assusta tanto quanto deveria, não diária nem constantemente, exceto quando

adiante miram os meus olhos, rumo ao futuro, às novas mãos amigas e aos novos universos desbravados, contatos e afetos e leitores e críticos. Acima de tudo esses últimos: desdobramentos do meu eu, não o antigo, porém o novo, este mais maduro que o de antes, menos homem que o que deveria, mais impaciente e mais seleto, mais envergonhado pelo que ontem foi pura pirraça e pelo que hoje é danoso desgosto; novas faces da minha, mitoses perfeitas do que de mais autopunitivo há de mim sobre mim.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, é só diante do futuro que ele se lança. Pois se sou a somatória de todos os meus erros, mesmo que tenham sido alguns, então ainda sou cada um deles? Em algum ponto? Um homem é aquilo que dizem dele, o que há muito disseram ou um homem ainda tem chances de ser outra coisa, qualquer coisa? Eu sou tudo aquilo, eu fui tudo aquilo ou não sou mais o que fui?

(assim bem tento, assim bem sei).

Que importa?

A verdade é só uma e a verdade é que algumas delas são imutáveis e estão lapidadas na pedra. Sob sol e chuva. Vento e vilania. A verdade é o que outros cospem. Imutável como a vida. Estática como a química de nossos corpos. Dita. Jamais desfeita. Absoluta como todo documento histórico. Alheia de futuros recortes. Alheia de alma e coração. Alheia de chances ou de imparciais recomeços.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, exceto quando bate à porta, cerca-me os círculos, expõe antigas línguas sabedoras dessa verdade. Pois o passado é presente quando insiste em arder nos confins da lembrança – e no peito daqueles e daquelas que penaram. E se arde, queima. E se queima, está aqui: produzindo ainda queimaduras mais ou menos visíveis, postas na pele ou sob ela como tatuagem.

O passado não me assusta tanto quanto deveria, só quando vem a

sombra do assombro, o futuro e provável e talvez improvável ou nem tanto assim comentário. A reminiscência, o consequente conhecimento de que, da parte de cá, nunca foi escondido, mas sempre escrachado, pois se desejam saber o que fui e quem sou, que olhem para o dia de meu pecado, a fera que fui, a fera pouco distinta que nada teve de tão diferente das outras feras e dos outros animais que diariamente topam em nossos ombros, tecem palavras levianas, empunham piadas e adagas, esmigalham corações, esfarelam cabelos e fazem das outras vidas meras lápides. Eu fui a besta enjaulada e estive a um, a dois ou a três passos de romper o cárcere. Saibam. Saibam disto. Saibam que eu sei. Saibam que eu sempre soube. Saibam que estas palavras são, antes de mais nada, primeiramente anunciadas a mim, para só então, sob a permissão do cilício, serem apontadas aos outros, ao presente-passado de outras feras que um dia, quem sabe, e com sorte, talvez tenham um futuro de autoconsciência, de reparo e de vergonha – pois é do arrependimento, da pedra atirada e da face ferida, e tão somente deles, que vêm

as boas atitudes,

as obrigações,

os deveres,

o mínimo – e nem mais este há de bastar.

 

 

19 de outubro de 2023

O dia em que fui primeiro lugar no 32º Concurso de Contos Paulo Leminski


        


        Feriado. Dia das crianças. Uma semana atrás. Eu estava prestes a tomar banho para dar um rolezinho no ITA quando veio a notícia.

Dias antes disso, recebi um e-mail meio inesperado: a divulgação dos vencedores do 32º Concurso de Contos Paulo Leminski seria naquela semana e eu estava entre os finalistas. Meses antes, deparei-me com o edital do concurso e pensei: “E se?”. Fui lá, procurei o que possuía na gaveta e encontrei aquele conto escondido, escrito para compor o “Napalm & histórias de amor”, mas que ficou de fora por destoar um pouquinho da temática central do livro. Aí fiz o que qualquer um que escreve sempre faz: relê, fica insatisfeito, começa a mexer aqui, a mexer ali, a cortar isso, a ajeitar aquilo… finalizei. Preenchi a inscrição e enviei. Era isso. O “não” eu já tinha, de qualquer forma. Você sempre tem um enfático “não” a seu favor.

Vá lá e seja teimoso.

Corta para os dias anteriores ao resultado: eu, recebendo o e-mail e sendo apossado por aquela suave expectativa atrás da orelha, até ansiedade, uma remota possibilidade de que, talvez, até dê certo. “E e se? Vai que, né?...”. Em seguida, a cena em que do nada, do nadão, assistindo à transmissão ao vivo, já desesperançoso de sequer ser escolhido para participar da coletânea, meu nome é anunciado:


“E EM PRIMEIRO LUGAR, COM O TÍTULO ‘MARIANNE’, AUTORIA DE FELIPE SANTIAGO, DE BELÉM DO PARÁ [...]”.




Na hora em que o título “Marianne” foi anunciado eu já estava no espaço. Sou meio totalmente fleumático. Fico extremamente feliz e empolgado, mas tenho dificuldades de reagir. Corporal e expressivamente mesmo. Acho que fiquei incrédulo. Não era possível. Eu? Eu? Justo eu? Sério isso? Surreal. Fiquei o restante da noite anestesiado.

O Paulo Leminski é um concurso de contos importante e de tradição, com gente do Brasil inteiro e residentes em outros países enviando as mais incríveis e bem-escritas narrativas. Anos atrás eu já havia submetido um conto, mas o bichinho era fuleiro e muito ruim, na época em que o que eu escrevia era igualmente fuleiro e muito ruim (não que eu seja um Machado hoje em dia, mas garanto que, comparado àquela época, alguma maturidade na escrita já me sonda). Foram 740 contos inscritos. Gente talentosa para um caramba. E dentre todos eles, “Marianne” foi se esgueirando e conquistando os membros da comissão julgadora a ponto de ser escolhido em primeiro lugar. Fico muito feliz por isso, porque esse é um conto cuja mensagem é valiosa e necessária. Agora estou ansioso para que o mundo o leia.

Quero agradecer a todos da organização do concurso: à prefeitura de Toledo, à equipe da Secretaria de Cultura e aos jurados que confiaram no valor dessa narrativa. Também a todos que me parabenizaram e que, de um jeito ou de outro, sempre estiveram por aqui dando forças e incentivos morais, principalmente quando tudo o que me sondava (e sonda) é a desesperança, o desânimo e a falta de fé em mim mesmo. À minha família que sempre me glorifica ao extremo - às vezes até demais,  mas não é culpa deles, é que ficam empolgados e entendo. Aos meus amigos que, muito embora tenham diminuído ao longo dos anos, continuam frequentando este reles e ainda existente blog, adquirindo ou se interessando pelas antologias das quais faço parte. E, acima de tudo, quero agradecer à Divona, por estar sempre ao meu lado, literalmente ao meu lado no momento da divulgação. A pessoa que sempre chora com as minhas pequenas, grandes e esporádicas conquistas.  

Fico sem graça de comemorar, mas eu tô bem feliz - daí a existência desse textão. É um baita de um gás para quebrar a programação normal.

Abaixo, deixo uma matéria publicada pelo Jornal do Oeste, falando sobre a 2ª Flit, em Toledo, e sobre as premiações do 32º Concurso de Contos Paulo Leminski e do 9º Concurso de Crônicas e Poesias Edy Braun, além do link da live completa ocorrida no dia.

Obrigado a todo mundo novamente.   


F.


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2ª Flit: sucesso comprova sucesso de ações de incentivo à leitura em Toledo: https://www.jornaldooeste.com.br/toledo/2a-flit-sucesso-comprova-sucesso-de-acoes-de-incentivo-a-leitura-em-toledo/


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Live com a programação do último dia da 2ª Flit:

https://www.instagram.com/reel/CyULB3Pr6I7/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==


5 de março de 2023

meus últimos 20 chegaram



 

e não vêm com sabedoria elementar nem com uma bagagem de grandes sucessos. Miséria, miséria, três vezes miséria é uma citação que não sei se existe, se parafraseei ou se inventei. Só sei que uso. Uso-a aqui porque Social Distortion cantou que misery can be a heavy load.

Veja, não uso estas referências para galantear minha imagem ou para engrandecer minha estima. Até porque, se há algo que preciso dizer ao chegar nestes últimos 20, é que estou cansado de sujeitos que muito sabem e que sobre tudo conhecem. Estou cansado dos sujeitos muito ponderados que têm opinião sobre tudo, que sobre cada assunto dispõem de informação na manga – pedantes, abarrotam as esquinas e as salas de aula e os eventos culturais e eloquentes encharcam cada canto da cidade. Estou farto. Não os suporto. Pra mim, são todos uns cagalhões intelectuais pretensiosos. Engraçado, certa vez citei isso no distante conto sobre Ariadne. Patético. Agora estou me repetindo e me autorreferenciando. À época, compactuava da opinião, mas hoje eu a compreendo melhor, porque suporto menos esses sujeitos e porque eles sempre te olham de cima, sempre supõem que você não sabe. E mesmo que eu saiba, fico farto de alertar informação. Se eles se sentem garbosos por escutarem o som de suas próprias vozes explicando o óbvio, então eu é que não impedirei vossos ímpetos de auto apreciação.

Meus últimos 20 são marcados pelo silêncio. Estou cansado. Não de viver, nada disso. Pois se o desejo me faltasse, eu seria um suicida. E se suicida eu fosse, então vocês estariam em posse de minha reles obra-prima acompanhada de minha ausência. Neste momento, entretanto, estão em posse de um desabafo acompanhado de minha mais enfadonha presença. Estou cansado mesmo é de conversar. Dos diálogos. Da necessidade de sempre ter algo a dizer sobre qualquer que seja a coisa, qualquer coisa. Sou dado a silêncios, sobretudo ao lado dos que muito sabem, dos que são exímios detentores do conhecimento do universo, os sujeitos deveras ponderados, sempre muito educados, sempre muito polidos, que falam para que você julgue que eles te estimam, quando na verdade estimam os elogios que recebem, as comparações que a eles fazem, e no fundo, no fundo mesmo, não conseguem esconder as intenções por detrás do tom de voz, do olhar. Nos últimos 20, uma coisa que não mais me escapa é o olhar. Olhares ainda entregam tudo. Coisa que nem o mais dissimulado dos pilantras consegue esconder. Aliás, pilantras dissimulados possuem o olhar mais transparente do mundo. É o que me faz desgostar deles. Sobretudo quando tentam ser ponderados.

Mas isso aqui foi um longo devaneio. Estou cansado de tanta coisa nestes últimos 20 que quase fiz disso uma lista. Perdoem-me. Não estou cansado de aprender, de descobrir, embora não tenha sede insaciável pela descoberta nem pelo aprendizado – até tal estereótipo me irrita, trinca-me os dentes. Tenho, na verdade, é preguiça. No entanto, quando ambas as coisas me batem à porta, acolho-as com extremo carinho. De referências, gosto de me encher. Recentemente, assisti meu mais novo filme favorito da vida: Chungking Express. Ainda dá pra conhecer coisas novas à margem do último dos 20. Mas sobre o filme nada tenho a falar no momento, que fique para outro texto, para outro dia. Pois isto não é um ensaio intelectualizado a respeito da agonia psicológica na jovem-sociedade-contemporânea, é apenas um

desabafo.

Pois não gosto de mim. Não gosto de quem eu sou. Sou a voz da crítica. Quem tem que gostar de mim são os outros e agradeço por haverem outros. Mas essa auto-antipatia me consome e me revolta. E quanto mais revoltado, mais enlouqueço. Quanto mais louco, mais me torno eu mesmo pra que me odeiem, pra que não gostem de mim, pra que de mim nada esperem senão risadas e piedade. Não quero ser visto pelos vossos filtros. Quero ser visto pelo meu. É autopunição. Estou me autopunindo por ser eu mesmo. Insuportável. Patético. Gozado. Pouco merecedor das poucas coisas que tenho. No último dos 20, você já sabe quem é, você já se conhece. Não há muito o que mudar. Vai se tornar o quê? Começar tudo de novo? Em uma nova cidade no interior de sua persona? Arriscar uma nova vida no subconsciente como as inverossímeis tramas hollywoodianas? Tudo isso para que, ao fim da noite, o passado te bata à porta após a mera exposição no espelho? Balela. No máximo, uma máscara. Um personagem. Um falso reflexo pra esconder o bastidor da piada, a chacota por trás da chacota. No último dos 20, você não é mais interessante, não é mais novo. Tudo o que queria ser era alguém como “Mais bicho que fruta, escrito por uma Cassiana Maranha. Queria me enxergar sob aquele filtro. Queria me ver através daquela poesia, mas temos todos

caminhos diferentes

e olhos diferentes

e visões diferentes

e retinas

e filtros

e últimos 20 diferentes.

No último dos 20, você não passa de uma prosa-pouco-poética de um Felipe-qualquer. Quem é esse? O que ele fez? O que construiu? O quanto cresceu? O que se tornou? Vai saber. A plateia urra em risadas. À sua volta, apenas a saturação. Aqueles que te amam escolheram ficar por hábito ou por que se sentem obrigados? Por favor, o questionamento é retórico. Não responda. Lentamente, estão aqui e daqui talvez partam. Se até tu te cansas de ti, é natural que os outros também o façam. Vai só te sobrar o sangue e esta jaula que te é o corpo, a casca obsoleta, sem atrativos. Nem através da beleza a futilidade existe. A futilidade seria um alento, um refúgio, o vazio dos corpos, da burrice, da mera casca bonita. Até pela beleza fui vilipendiado. E da saúde fui expulso. Os médicos chamam de suicídio passivo o que a população de terceira idade, com o tempo, escolhe fazer quando a solidão e o cansaço batem à porta. Escolhem deixar de tomar o remédio regular. Uma consulta esquecida. Um tratamento ignorado. Um fim premeditado com a sorte do certeiro acaso. Optam por, lentamente, não anunciarem as dores, deixam de se importar com o autocuidado. Certo dia, um rim que para de funcionar sem solução para a cura ou, ocasionalmente, um ataque fulminante. É isso o que estou, conscientemente, fazendo desde os 12 anos de idade, não é? Quando aquele avião-UTI atravessou uma baía para me buscar, como se minha vida valesse a pena. Quando uma criança precisou crescer ouvindo que se não fizesse isso e não comesse aquilo e não agisse dessa forma e não seguisse todos aqueles passos indicados por médico 01, 02 e 03, então conseguiria viver uma vida longa e próspera, sem pensar no rim que falharia, nos olhos que se cegariam e toda a sorte de males que uma criança não deveria escutar. Foi isso o que estivemos fazendo em todos esses anos? Ignorando e cuspindo e negligenciando esses enfadonhos conselhos de saúde? Foi isso o que fizemos? Esse suicídio passivo? Foi isso o que meu velho avô fez? Meu velho avô que até ano passado comigo compartilhava essa data e que este ano comigo não mais estará? Foi isso? Ou foi só a mais pura e imbecil teimosia masculina (em mim igualmente existente) de ignorar especialistas, tratamentos, consultas e todo aquele blablablá médico? Não o culpo por isso. Aliás, só o respeito. É preciso coragem para viver assim e lidar com as consequências. A perda. A insuficiência. A ineficiência. A ausência. As possibilidades perdidas. O terror da intubação e o assombro da cama de hospital. E o próximo dia 06 com um dos lados sozinho, sem o outro, sem o par que gostava de festas e de presentes e de bolos e de palmas e se alegrava com as ligações recebidas e disputava quem ganharia mais presentes.

Olha só, vô. Não sei quando nem como entraste neste texto, embora ele tenha propositadamente nascido por tua causa. Estas palavras escolho aqui depositar pois aqui poucos me conhecem, só algum admirador desvairado ou admiradora sem jeito que acha que sabe o que sou, quem sou, que me vê apenas através do filtro da idealização, fingindo, forçando, nada genuíno. Até isso é ofensivo, a falta de sinceridade – não que dela eu precise agora.  O curioso é que até isto aqui ficou obsoleto, este depósito mesquinho para palavras ordinárias, não lidas. Isto aqui que me era um refúgio. Uma distração para os dias ruins. Para o cansaço dos outros lugares onde todos sabem quem eu sou, como eu sou: uma pilha de frustrações, de revoltas, de chatices, de palavrões e de um amontoado de verbetes sobre os quais ninguém mais liga, ninguém dá a mínima. Até os que me conheciam se foram, estão indo. Os que ficam, são os que valem. É outra coisa que você ganha no último dos 20: caso não tenha sucesso, terá os que valem a pena. Poucos, bem poucos. Exceto, é claro, se seus olhos forem os olhos de pilantras dissimulados. Então, neste caso, estarás cercado por uma infinidade de gente. É o que chamam de sucesso no último dos 20.

Parabéns.

Qualquer dia desses até daqui vou sumir – e não se preocupem, nunca fui partidário a ameaças, já avisei no início que isto seria um desabafo, não minha reles obra-prima. Odeio, por exemplo, falsos suicidas. Eles mancham a causa. Com as pílulas, foi assim: primeiro fiz. O comunicado da tentativa fracassada veio depois. Qualquer dia desses, até daqui vou sumir – não é uma ameaça, é só uma metáfora. Com um aceno, sem um aceno ou (na pior das hipóteses) na apatia do cotidiano, na covardia da sobrevivência, na morte lamentável que é a aceitação da vida. No marasmo. Na modorra.

Chego ao último dos 20 meio aquém, meio sei lá. Dez anos atrás, meu peito clamava por amor, por romance. Agora que o tenho, meu peito clama por ser alguém, por ser alguma coisa, por ser algo melhor para merecer o que possuo, para merecê-lo, para não parecer nem ser ingrato. Porém tenho sido vacilante como as boas histórias românticas raramente nos mostram. O desânimo do eu, o desânimo de mim. O aprendizado que se esvai, os hábitos que se empilham, que te cegam, que te tornam gradativamente desinteressante, apático, sem atrativos, sem graça, o-sujeito-que-deveria-agir-que-nem-o-outro-sujeito-pois-o-outro-sujeito-é-um-sujeito-bacana – até os livros paraste de ler e até aquela veia artística deixaste morrer. É o silêncio do cansaço que te toma quando os sujeitos muito ponderados e sabedores de tudo começam a falar a falar a falar e a tomar conta do mundo e diante de ti são comparados e louvados e adorados e tudo isso de novo.

Tudo vai piorando

no último dos 20,

caso não tenhas olhos de pilantra dissimulado e caso não tenhas, ainda, alcançado sucesso e emprego e um pedaço de papel que digam palmas e parabéns,

finalmente

és alguém!

Até as nuvens na pele, por exemplo, estão piorando. Sabias? Estão no couro cabeludo, nas costas, onde meus olhos e o reflexo da vergonha não alcançam. Nos cotovelos e nas extremidades das extremidades, nos ossos dos pés e nos joanetes não crescidos. Mais que isso, nem sei como andam as retinas, que anos atrás, no auge do desespero da cegueira, até me renderam bons textos sobre kiara. Nem sei como andam os rins. Nem sei como caminha este pâncreas inútil. Ruim nascer defeituoso. Pior que isso é não saber lidar com os próprios defeitos e ter de viver a todo instante com as mazelas deste Destino piegas. Destino foi um ótimo feito. Não um dos meus favoritos, mas um dos meus mais bem tecidos.

Chego ao último dos 20 cheio de lamentos. Sem conquistas. Sem vitórias. Sem sequer a chance de produzir herdeiros – não que eu os queira, pois assim como Brás Cubas, de minha miséria tenho consciência e minha miséria não ousarei transmitir. Chego ao último dos 20 sem o único sujeito que me fazia enxergar alegria nesta data. Mas vale lembrar que, apesar das derrotas que moldam esta psique em frangalhos, foram os melhores vinte e oito anos que pude ter, e agora serão vinte e oito próximos anos esquisitos, solitários sempre nos dias 06, sem o par da dupla que adorava bolos e refrigerantes e palmas e parabéns e assoprar velas e disputar quem ganhava mais presentes. Vai ser só solitário, vô. Porém só mais um tranco no caminho, certo?

mais

um.

Que miséria de data. Que carga pesada a se carregar. Juro que esta será a última vez que sobre isto escrevo, pois será a última vez que recordarão desta data. E só para cumprir com o prazer da contradição, e só para ser essa eterna incongruência discursiva, citarei, sim, Chungking Express:

 

Na verdade, nasci às 6:00 da manhã. Então eu realmente terei 25 anos daqui a dois minutos. Em outras palavras, já passei um quarto de século neste planeta. Para celebrar esse momento histórico, decido ir correr. Me livrando do excesso de água no meu corpo. É uma sensação boa. Ao deixar a pista, eu decido me livrar do meu pager. Porque eu sei que ninguém vai me ligar hoje.

 

Mas até em Chungking Express há um desfecho satisfatório, meio minuto depois. Os desfechos satisfatórios ainda podem vir. Aliás, não são os desfechos. São as realidades boas o que me mantêm e manterão aqui pelos próximos 29 anos – os pouquíssimos amigos, o amor, o círculo e também o fodido orgulho de não ser um cagalhão intelectual pretensioso de olhar dissimulado. A tudo isso dedico um pequeno parágrafo de seisepoucas linhas, porém é o que aqui me segura. É o que faz valer a pena.

E por fim, se este texto for uma comparação, então tais palavras são como suor. Todos os escritores suam para que as lágrimas não caiam. Se todos chorassem ao invés de escreverem, seria um mundo mais triste e menos poético. Não que isto seja poesia. Não que eu seja um escritor – só um sujeito se valendo de coesão para formar alguma vil coerência. Qualquer um é capaz de escrever um texto bem alinhado e bem arrumadinho.

Até porque isso não é arte.

É só desabafo.



E só pra nunca esquecer:

parabéns, vô.

 

 

[...] 

essas mentes constipadas que buscam

sentidos mais amplos

serão despachadas com o resto

do lixo.

para fora.

se houver luz

ela o

encontrará.


(quanto mais você tenta, B.)

 

29 de novembro de 2022

Pes maledictus


 

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Menino Ney, não me decepciona

Menino Ney, vê se não faz vergonha

 

(Menino Ney, Diogo Defante)

 

 

 

Poucos frequentaram as aulas na sexta-feira. O prédio da faculdade estava vazio, apenas os funcionários da limpeza, as tias da lanchonete, o porteiro e as coordenadores do curso faziam coro à escassa multidão. Além de Caio, doze pessoas de uma turma de vinte e cinco estavam na sala. O restante estaria, pelo que ele constatou nos stories das redes sociais, agora deitado com a cabeça latejando, ingerindo água gelada ou consumindo ampolas de epocler para curar a ressaca. A cabeça de Caio ainda zumbia devido à bebedeira da noite anterior, mas não deixaria de frequentar a aula. Trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles vagabundam, era o clássico bordão do pai, naquele tom de trovejo intempestivo que ditou toda a vida de Caio e da irmã caçula desde a infância. E desse conhecimento popular o filho não contestava, pelo contrário: vivia-o com disciplina. Só assim faria jus ao nome da família e mereceria o império jurídico de renome construído pelo Dr. Otávio Diniz.

Caso estivesse com severa ressaca, em condições precárias, cabeça pulsando além do normal e estômago embrulhado, certamente não deixaria de frequentar a aula. Nisso, ao contrário dos colegas, Caio era exemplar: levava a qualificação a sério, estampava o estudante de Direito na descrição do Instagram com muito zelo, compromisso e responsabilidade, e a isso jamais deixaria de honrar. Acima de tudo, não deixaria de frequentar as aulas de sexta-feira pois eram suas favoritas.

O Dr. Jânio Vasques ministrava a disciplina de Direito Penal há 35 anos, desde que participou da criação da União das Faculdades Superiores do Pará, a UNIFASPA, instituição particular de maior renome da região amazônica. O homem, embora muitos chorões o chamassem de dinossauro, Dr. Jurássico ou velho defasado (a exemplo dos grupinhos mais progressistas), inegavelmente era um pilar vanguardista na área. Amigo pessoal do pai de Caio, além de um mentor em vida particular, era uma inspiração para o rapaz. Portanto, nenhuma aula dele ousaria faltar, nem sob a mais fulminante das ressacas pós-vitória da seleção brasileira.

Naquela manhã, o Dr. Jânio dedicou as três aulas – que, na verdade, não passavam de grandes digressões e parênteses – para falar sobre o argumentum ad hominem. Embora a cefaleia estivesse comprimindo o crânio de Caio naquela manhã, porém de maneira menos severa que imaginou, o jovem herdeiro do império Diniz não vacilou a atenção. Graças ao vazio da sala, fez questão de sentar-se na primeira cadeira, a fim de não espremer os olhos para enxergar melhor sob as lentes retangulares dos óculos. Já havia estudado a respeito de tais falácias argumentativas em disciplinas anteriores, porém nem as professoras supostamente mais especializadas nisso eram tão didáticas e competentes quanto o Dr. Jânio. Na ânsia de se fazerem profissionais e de tentarem provar algo que ao público já estava claro, as professoras perdiam a objetividade e conservavam um tom maternal irritante, naquela frequência física de som (já comprovada pela ciência) em que homens como Caio não conseguiam se concentrar por mais de cinco minutos. Ver o assunto ser abordado de forma tão contextualizada por seu mentor intelectual era de uma experiência das mais enriquecedoras.

Dr. Jânio abordou os mais contemporâneos exemplos dos ad hominem e como tais falácias se tornaram uma regra na sociedade, sobretudo com o advento das redes sociais e com a proliferação de movimentos sociais. É uma argumentação muito comum àqueles que não possuem conhecimento, polimento ou educação, disse o Dr. Jânio. Portanto, é comum vê-la acontecer frequentemente na boca do povão que não tem muita noção de nada, ele se divertiu com a própria frase, proferida pela voz metálica com cheiro de tabaco. Todos riram com ele. Citou, por exemplo, o recente debate eleitoral do segundo turno, quando o candidato Luis Inácio Lula da Silva acusou Jair Bolsonaro de ser defensor do aborto ainda na década de noventa, em detrimento de sua atual posição sobre condená-lo, tudo com o intuito de desmoralizar o adversário. Isto, explanou o Dr. Jânio, é uma variação do argumentum ad hominem, conhecida como tu quoque. No tu quoque, que em latim significa tu fizeste ou você fez, notem o quanto os grupos de esquerda a utilizam, querendo apontar hipocrisia e atacando o que o sujeito já fez ou defendeu no passado. É uma das formas mais absurdas do ad hominem. Nos debates entre os candidatos no primeiro turno, vocês lembram que muitos deles atacavam o presidente por já ter sido preso por um infeliz planejamento de ataque ao quartel ou por ter sido humilhado por ser assaltado na rua e ter a arma roubada? Os candidatos utilizaram exaustivamente esses "argumentos" para inviabilizarem a defesa dele ao armamento da população, como se todos esses erros passados o desqualificassem de defender uma proposta (e neste momento ele apontou para a frase “ARGUMENTO BEM CONSTRUÍDO E, PORTANTO, VÁLIDO” escrita no quadro) ou governar um país. A condenação que ele recebeu foi única e exclusivamente do exército, e, portanto, não jurídica, o que nunca o impediria, nem o impediu, de ingressar na vida política. Condená-lo ou desqualificá-lo por uma tentativa falha de ataque ao quartel, por um assalto que sofreu ou por supostos envolvimentos com rachadinha, não declaração de impostos ou compra de imóveis com o próprio dinheiro conquistado, enquanto usa o combate a corrupção como um dos carros justos e chefes de campanha, é um claro exemplo de argumentum ad hominem do tipo tu quoque. Compreendem? Todos balançaram a cabeça, afirmativamente, em silêncio. Compreende, Diniz? Perguntou o Dr. Jânio a Caio, referindo-se sempre ao sobrenome da família. O rapaz respondeu que sim. O professor prosseguiu.

Portanto, disse o Dr. Jânio, tenham em mente que todo argumento possui um viés. Vieses são a base sólida para que tenhamos fundamento sob nossas opiniões e para que possamos defendê-las com argumentação bem construída. Até o mais vil argumento possui um viés. Imaginem só: certa vez, frequentei um jantar de amigos onde um rapaz, desses bem espiritualistas e progressistas, refutou as opiniões de um colega porque ele havia se embasado n'A Mão Invisível de Smith. E, portanto, toda a argumentação desse colega estaria fadada à contradição porque, simplesmente, utilizava a obra em questão. Vejam, vejam... Ele exigiu a atenção da turma, enquanto riam com espanto de tamanho absurdo, já inteiramente inseridos na lógica da aula. Este é um exemplo de ad hominem por associação. Se você defende Smith, não será o seu argumento a ser refutado, nem as bases teóricas e reais que Smith tão solidamente construiu, mas a própria persona de Smith. Não importa o que Smith fez a nível acadêmico, de pouco vale a contribuição dele para a economia moderna das grandes nações. O que é refutado aqui é o próprio Smith e o fato de nosso colega ter se embasado nele. Percebem o absurdo? Gosto também de utilizar outro exemplo: há quem diga que as obras pintadas por Adolf Hitler não tenham valor artístico, portanto, criticam suas supostas noções distorcidas de cores ou de perspectiva. Vejam, vejam… critica-se a obra de Hitler não pelo valor ou pelo improvável demérito artístico dela, e sim pelo que Hitler fez durante a segunda guerra mundial. Eis um ad hominem que não refuta as bases do argumento – neste caso, a técnica artística –, mas os atos de Hitler, a pessoa de Hitler, como se tudo o que ele fez em vida estivesse fadado ao que foi cometido naquela época. Gosto de usar esse exemplo porque, hoje, nas redes sociais, muito se apontam as semelhanças de determinados governantes ou ministros a Hitler. Querem um exemplo? Um slogan ser parecido com outro. "Das Lied der Deutschen" e "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” não necessariamente faz menção, de maneira ideológica, ao movimento nazista. Isso não faz o menor sentido, é maldade e enviesamento cínico estabelecer simetrias. Esvazia-se o sentido de Brasil, como nação; esvazia-se o sentido de Deus, como protetor de um país que é 80% cristão. Isso não pode acontecer. Desfaz-se toda a retórica argumentativa, lima-se o debate, chega-se ao fracasso. Outro dia, coitado daquele rapaz, o menino da internet que é famoso, qual o nome dele? Aquele que sofreu ostracismo do próprio canal por defender que há a necessidade da criação de um partido nazista no Brasil. Vejam, neste caso, vemos mais um ad hominem por associação. Não só isso, há um ad hominem também pela pessoa que o rapaz da internet é, já que noto que os movimentos sociais de esquerda pouco concordam com ele. Percebem? O argumentum ad hominem está muito presente em nossa sociedade: ignora-se o argumento, ataca-se a pessoa. Dizem, também, que não podemos debater certos assuntos porque não possuímos "vivência nem experiência" nas situações. Há quem diga que, pelo fato de você não ser negro… preto…. Afrodescendente… Vejam, vejam, tomem cuidado com a utilização do termo, tornou-se complicada essa questão, você é culpado até pelos termos que utiliza… enfim, pelo fato de se viver bem, de se ter um conforto digno, de se conquistar o que tem através de trabalho duro e esforço próprio, por não fazer parte do homossexualismo ou por não ser mulher, você está automaticamente invalidado de tecer opiniões ou contribuições ao debate. É um absurdo, compreendem? Atacam-se as pessoas que proferem o argumento por serem brancos, não favelados, heterossexuais ou homens, ao invés de um questionamento lógico e saudável ao argumento em si. Toda a sala balançou a cabeça, concordando entre risadas absurdas e comentários de apoio. Caio, junto de mais três colegas, levantou a mão e deu início a um debate sobre o assunto, que durou quinze longos minutos e copiosamente animou o Dr. Jânio, deixando-o muito satisfeito com a absorção e a convergência discursiva por parte dos alunos.

Alongada as discussões, prosseguindo as explicações e findando-se a aula, Dr. Jânio encerrou com a típica tosse estalada de fumante inveterado (usuário de cachimbo, não de cigarro). Ele fez a chamada de maneira silenciosa, pois sabia de cor o nome dos alunos que frequentaram a aula naquela sexta-feira. Fez alguns comentários elogiando a todos eles, admirando-os pelo compromisso de darem valor ao curso, à aula e fazerem questão de estar ali mesmo com a vitória do Brasil no dia anterior. Aproveitando o assunto, ele apontou para o fundo da sala, onde geralmente as alunas progressistas costumavam se sentar. Fez uma brincadeirinha muito polida e eufêmica da qual todos riram, a respeito de copos de cerveja, ambientes insalubres, devassidão e adoração gratuita e voluptuosa a pombos jogadores de futebol. Por exemplo, ele disse, acho que hoje teríamos uma discussão muito mais acalorada e muito menos permissiva se suas colegas tivessem vindo. Ainda bem que não vieram, assim a sexta-feira termina mais tranquila, sem confusões nem comentários lá na diretoria. Sem exceções, voltaram a rir. Inclusive, vocês viram o que aconteceu com o pobre do Neymar Júnior? Esqueci de vos citar o exemplo, mas vejam mais uma vez a presença do ad hominem, principalmente entre os grupos sociais: questionam a habilidade e os posicionamentos do jogador por conta do apoio que ele ofereceu na campanha do presidente. Isto é algo muito grave. Desqualificam o rapaz e até as próprias opiniões do rapaz, criticam a liberdade de expressão do coitadinho por conta de quem ele apóia. Não há um debate saudável acerca do futebol, relega-se o esporte a outros assuntos, é distorcido o espírito esportivo e, por fim, deturpa-se tudo. Vemos pessoas com pouco conhecimento sobre o esporte tecendo longos comentários repletos de críticas, mas nunca ao esporte ou à técnica do futebol, mas sim à persona do jogador, do pobre do garotinho do Neymar Júnior. Ou seja, o que vemos aqui é um ad hominem por associação, também. O quanto querem apostar que algumas colegas de vocês estão satisfeitas e certamente ontem muito se hidrataram por conta da contusão do rapaz? Coitado.

Dessa vez, poucos concordaram. O burburinho foi notoriamente menor com aquele comentário do que com os anteriores. Caio, com a cabeça mais latejante e humor ligeiramente abalado, irritou-se com a falta de clamor que as palavras de seu mentor geraram nos colegas presentes. Poderia apostar que muitos ali, em algum nível, possuíam críticas ao menino Ney. Embora a discussão em sala de aula houvesse sido positiva, sem discordâncias nem refutações (graças à ausência das colegas libertinas que a tudo reclamavam e em tudo enxergavam problemas sociais), o simples fato da existência da realidade social o contrariava, irritava-o por lembrança automática. Imaginar que a internet estava lotada de gente sem conhecimento, ignorante e apoiadora das falácias argumentativas era um gatilho para seu stress diário.

Despediu-se do mentor com uma conversa breve. Irritadiço, sequer conseguiu desenvolver os típicos diálogos matinais com seu grande mestre. Perto da faculdade, havia uma farmácia. Caio atravessou a rua em busca de analgésicos. Comprou uma cartela mais uma água mineral. Na fila para o caixa, concentrou-se na tv ligada. Era horário de almoço e em um programa esportivo o Craque Neto, hoje comentarista, que possuía um claro posicionamento anti-bolsonarista e mimizento, igualmente irritado, tecia ferrenhas críticas a um país que em sua maioria desejava o mal ao pobre menino Ney. Os esquerdistas do “ódio do bem” enchiam a internet com comemorações pelo menino Ney sofrer e chorar com a entorse. O Craque Esquerdista Neto criticaria, também, caso tivesse coragem de apontar para o público que tanto o bajulava, os fãs de Anitta e de Beyoncé, de Pabblo e de irrelevantes fósseis como Caetano e Chico, Gil e Paulo Freire. Um público que nada acompanhava de futebol, a não ser de quatro em quatro anos, para propagar o mal, a falta de empatia e comentar sobre um esporte que sequer conhecia. Nós não ganhamos a copa do mundo sem Neymar, gritou o Craque Esquerdista Neto, Vinicius Jr.? É legal. Rodrigo é. O Raphinha é. O Richarlison é um monstro, vai ser o cara da copa, se o Brasil for pras quartas, pra semi, pra final. O Richarlison-pombo vai ser o cara! Agora, torcer pro Neymar não voltar, ô, só porque ele é Bolsonaro? Não tô nem aí pra isso! Isso é uma falta de respeito! Isso é uma falta de humanidade! Cambada de zé ruela, dos comentaristas, de quem quiser! Falta de humanidade torcer pro rapaz, coitadinho, quebrar a perna! Falta de humanidade só porque ele apoiou o presidente! Ora, vão pra'quele lugar! Gritou ao vivo o Craque Esquerdista Neto. Na fila, Caio balançou a cabeça e teceu comentários baixos, concordando com o apresentador e, acima de tudo, surpreendendo-se com a clareza dele. Até o Craque Esquerdista Neto abominava, por prática, argumentos ad hominem, enquanto a população esquerdalha afundava-se neles.

Quatro pessoas na fila concordaram e deu-se início a uma breve conversa. Apenas uma delas permaneceu canalhamente calada, um sorrisinho escondido no canto dos lábios. Aquilo esquentou as pontas dos dedos de Caio e a cefaleia deu uma pontada na lateral da testa. Se o sujeito abrisse a boca para qualquer piadinha, Caio não se controlaria. Muito orgulhosamente faria uso de seu poder argumentativo, de sua boa eloquência e de suas impecáveis dicção e retórica para colocar o antipatriota em seu devido lugar. Por sorte, nada aconteceu. O Craque Esquerdista Neto continuou a berrar – pelo menos, desta vez, berrava por uma causa justa. A fila andou. Caio pagou o analgésico e a água e voltou ao estacionamento da faculdade. Dentro do HB20, tomou um comprimido. Recostou a cabeça e fechou os olhos, cogitando se conseguiria dirigir ou se seria melhor aguardar a dor aliviar. Optando pela segunda alternativa, ele esperou. Diminuiu o brilho do celular e respondeu as mensagens pendentes que havia recebido durante aquela manhã. Ignorou os questionamentos da noiva. Respondeu com avidez aos amigos no grupo do Whatsapp. Victor, encegueirado, não parava de falar da prima de 16 anos com quem andava trepando. Era até fácil de compreender depois que compartilhou as fotos dela no grupo. Apesar disso, já estava demais. O chá havia sido pesado, o cara estava virado no fascínio. Caio mandou-o se foder, fazer alguma coisa, lavar a cueca, largar o celular e ir trabalhar naquele emprego de merda que era o de recepcionista em hospital. Em seguida, abriu as redes sociais. Todos os colegas, amigos e familiares uniam-se à causa solidária do pobre menino Ney, compartilhando orações e desejos de boa recuperação ao sempre jovem herói da nação. No entanto, o bostil era inevitável. Não demorou muito para memes aparecerem. Piadas sem graça. Comemorações que vibravam pelo pé inchado do craque da Copa, que não teve sequer tempo para mostrar sua habilidade em forma de finalizações exitosas – como se apenas marcar gols, e não sua desenvoltura em campo, seus passes de bola, seus dribles ou suas participações em jogadas, fizesse de um craque, um craque. As maldições, o coração tão pesado dos usuários, o escárnio com que tratavam a dor do menino Ney, a chacota que às lágrimas dele teciam... um absurdo... Um absurdo…

Zero empatia. Neymar não representa o espírito da seleção brasileira, tampouco o povo brasileiro, dizia Oliver César, a quem Caio conhecia desde os tempos de escola e que adorava frequentar boates coloridas na noite de Belém. Entendia muito de bolas, mas não as do futebol. Se o cara não dançasse na frente do adversário com a bola, não apanhava. Não aprendeu até hj, não aprende mais, pode apostar, comentava Cláudia Adorno, ex-namorada da época de ensino médio que muito entendia de chás regionais, sobretudo os de canela (que deveria tomar, certamente, várias vezes a cada semestre), e que nada entendia de estilo brasileiro de futebol, de dribles ou de zoar com os adversários em campo, como faziam os mestres Garrincha, Ronaldinho Gaúcho, Fenômeno, entre outros. O futebol não passava de um esporte do qual Cláudia havia descoberto há pouco menos de uma semana. O comentário dela compunha, majoritariamente, o de todas as companheiras de palpite que a respeito do jogo comentavam na internet. Eram conclusões vazias, sem aprofundamento, sem conhecimento, sem entendimento, palavras muito bem articuladas para um esporte que não demandava tanto decoro ou frescuras, mas sim habilidade, inteligência e malandragem. Caio jamais diria isso em público para evitar tanta cefaleia, mas não era esvaziada a afirmativa de que gente como Cláudia (ele se negava a utilizar o termo mulher, por impaciência de tamanha enxurrada de choro que viria a seguir) pouco e praticamente nada entendia de futebol. Assistiam para venerar a beleza dos jogadores e lançarem às suas belas pernas torneadas de muito esforço e treinamento, olhares maliciosos. Zé ruela amigo de fascista, afirmava Paulo Anderson, um primo bem distante (por sorte) e que todos sabiam ser adotado. Paulo Anderson era o suprassumo da inteligência atual: compartilhava causas muito nobres, defendia os direitos de qualquer cidadão que existisse, sobretudo as minorias mimizentas de travestis e mulheres e gordos e PCDs e pobres e bichas e bandidos e todo o bostil atual. Apesar do altíssimo intelecto, Paulo Anderson dedicava o futuro a uma profissão com remuneração ridícula, que pouco ou quase nada contribuía para o crescimento do país ou da própria vida pessoal, já que continuava sobrevivendo de kitnet em kitnet, sempre clamando por aluguéis mais baratos e desperdiçando o tempo reclamando de como o tratavam diferente por conta da cor. Caso empenhasse tamanha dedicação em lutar, ao invés de reclamar, Paulo Anderson certamente seria o primo rico, não o contrário.

A cada um deles Caio euforicamente respondeu, refutando-os de forma embasada com sua escrita bem articulada, aprendida com a ferrenha leitura do Vade Mecum de cabo a rabo e proporcionada pelos melhores professores de cursinhos de Redação belenenses, e acima de tudo, utilizando o que seu mestre Dr. Jânio o ensinou mais cedo. Questionou cada argumento, apontando as incongruências fundamentais por não criticarem a arte futebolística do menino Ney (qual Dr. Vasques mencionou sobre a técnica artística de Hitler), mas sim sua pessoa, seu posicionamento político e a administração de sua vida particular-econômica. Apontou ainda como de forma triste e degradante comemoravam a entorse no calcanhar do pequeno craque, do menino que tão orgulhosa e dignamente carregava as cores do país no uniforme. Como era, contraditório, o quanto lutavam por empatia, por amor, pela bondade e pela paz social, mas desejavam o mal a um jogador de futebol, um menino de 30 anos que tinha o mais genuíno sonho de levantar a taça do Hexa e dar alegria ao seu povo, tão sofrido pelo destino sanguíneo e tão saqueado por governantes corruptos antipatriotas.

Mas não foram esses os comentários que embrulharam o estômago de Caio. Foi a postagem da irmã mais nova, a caçula da família, a que carregava o sobrenome Diniz de maneira desonrosa e irresponsável, que trouxe a ele uma lástima tão profunda. Desde que entrara no curso de artes visuais na Federal do estado, reduzindo os longos cabelos a cores vibrantes e cortes de menino, Giovana tinha se transformado em uma pessoa transgressora, questionadora dos hábitos familiares que tão bem os criaram e apoiadora de causas absurdas, de choros mimizentos e de ideologias repugnantes. Na piada que ela fazia, com a frase EU CHORO, fotos do pé do menino Ney eram exibidas em comemoração. A entorse protuberante, o garoto-herói mancando, em lágrimas, tão entristecido e desolado por não jogar por seu país, pela sua nação, pela sua pátria. Caio sibilou um misto de raiva e desolação. Sentia a dor no próprio tornozelo, a agonia de, talvez, ver um sonho não realizado pela maldade alheia, pela torcida atroz convergindo em massa para seu azar, sua maldição, seu fracasso.

Caio não conseguiu responder de maneira embasada. O sangue subiu-lhe a cabeça e ali embaralhou os argumentos, afundou a coerência e a coesão tão pertencentes a ele. Consternado, comentou um palavrão. Dois. Três. E quatro. Mandou-a se foder, apontando o quanto ela estava louca, o quanto havia perdido a sensibilidade, o quanto era desumana com a dor alheia e o quão vil era celebrar a dor física e sentimental do outro. Pra quê? Perguntou-se Caio. Pra que isso? O estômago em rebuliço, a dor aguda na espinha, o arrepio na base do pescoço alongando-se pelos braços. E, no entanto, ele não conseguia parar de ver aquelas fotos. Era um álbum recém montado por algum usuário da internet. Na lista, havia montagens com emojis chorando, personagens de desenhos animados japoneses com irônica posição de choro, de lamento, e ao fundo o pé do menino Ney, inchado, com as inegáveis e tão belas e lindas tatuagens descendo pela canela torneada, as veias expostas no dorso do pé, o roxo já subindo pelas pontas dos dedos truncados, o dedão machucado com um nódulo escuro de sangue, em suma o hematoma crescente. Era um pé que Caio conhecia bem, tão bem, tão familiar, tão heróico e inspirador. Vê-lo em tal estado assemelhava-se ao desespero de ver o jovem menino Ney, à época ainda tão mais jovem, sofrer com a lesão causada pelo bandido do Zúñiga em 2014. Nem a derrota para a Alemanha comparou-se à aflição que uma nação de rapazes como Caio sentiu naquele ano, ao ver o pequeno herói urrando de dores no chão. Novamente, a maldição se repetia. Era doloroso. Era abissal a revolta. Era imperdoável o estado no qual haviam deixado aquele tão hermético e homérico pé.

Caio guardou o celular. As náuseas e algo mais secreto que isso reviraram o estômago e fizeram o sangue circular diferente. Ele girou a chave do carro e deu partida no motor. Dirigiu de volta para casa com um suor frio, a cefaleia ainda presente, entretanto aliviando lentamente. Ele passou por ruas e avenidas enfeitadas de verde amarelo, só que, infelizmente, apenas em função da Copa do Mundo. O verde era um atípico verde, o amarelo era um opaco amarelo e até o azul brilhava de maneira distinta que o azul original – visualmente as mesmas cores, significativamente pintando a cidade com outro objetivo. Era deprimente que tantos brasileiros comemorassem a vitória de 2x0 do Brasil sobre a Sérvia tão alheios à luta que na frente dos quartéis era travada, tão esquecida e minguada. O futebol, servido como pão e circo para aquele povo, infelizmente era utilizado de maneira a alienar a população, para fazê-la esquecer e calar a luta que insurgia nos corações mais patrióticos e verdadeiramente brasileiros. Ocultos e calados pelos gritos de gol, esqueciam-se da mazela política em que estavam entrando. Por isso, heróis nacionais como o menino Ney faziam-se tão necessários para o não esquecimento das verdadeiras e mais honrosas causas: lutar por um país livre, feliz e campeão. Por outro lado, enquanto continuassem encarando futebol e política como coisas dissociadas, jamais alcançariam o conhecimento necessário para uma melhoria justa e possível, econômica e intelectualmente. Enquanto optassem pelo erro, receberiam a miséria, a roubalheira. Os males que possuíam eram justificáveis. Infelizmente o povo merece o que passa, Caio disse a si mesmo. O povo que alega sofrer de fome e chora desigualdades inexistentes é o mesmo povo que hoje aplaude a contusão e que hoje torce pela tragédia do menino Ney por motivos fúteis.

Quando chegou em casa, a dor de cabeça já havia passado, mas não o stress. Se tivesse esbarrado com a irmã naquela tarde, travariam uma briga que todo o Verde Ville escutaria. Certamente, os vizinhos o compreenderiam. Não era desconhecida a fama de Giovana na vizinhança: as brigas que travava contra a família durantes as reuniões, as drogas pesadas que andava fumando nos corredores arredios da Federal ou o modo como sussurrava as intimidades do pai com a secretária, os problemas da mãe com o álcool (graças a Deus ela andava limpa desde que empenhara vigília semanal fronte ao 2º BIS na Almirante Barroso) ou as asneiras que blasfemava sobre Caio. Petulante, abrira mão de viver sozinha no próprio apartamento no centro da cidade ao contradizer os pais e irritá-los, escolhendo viver ao lado deles por pura birra. Até o fim daquele dia, caso ela não estivesse se propondo a uma overdose de maconha, Caio tinha certeza, ainda enfrentaria a irmã em uma torrente de xingamentos devido a audácia pouco empática de zombar da dor do menino Ney.

Dentes trincados, o herdeiro da família Diniz sequer respondeu ao cumprimento dos empregados. Respondeu de forma direta que não desceria para o almoço e ordenou que ninguém o incomodasse. Ele subiu para o quarto, trancou-se no banheiro. A cefaleia havia passado, mas o embrulho no estômago não. Tentou vomitar, não conseguiu. Sabia que não era mais o efeito de uma quase-ressaca que o atingia. Era algo bem menos físico e mais psicológico. Enfiou o dedo indicador na garganta. O refluxo não foi forte o suficiente, pois na metade do incômodo, covarde, ele retirou a mão da boca, incapaz de induzir o próprio vômito.

O que causava isso? Era a perversidade encarnada no humor maldoso das pessoas, de brasileiros que não reconheciam o talento de um jovem herói pobre e batalhador, vindo da periferia e que com tanto talento, esforço e dedicação conseguira vencer o destino e ganhara a admiração dos clubes, do Brasil, de um mundo inteiro? Caio tirou a roupa. Deixou o ar-condicionado do quarto ligado na temperatura mínima e deitou na cama, a fim de esfriar o suor frio que insistia em lhe descer a espinha. Nu, ele inspirou e respirou fundo. Tomando coragem, abriu a rede social, mas antes de procurar pelo perfil da irmã, as fotos obscenas do sofrimento do jovem Ney já abarrotavam as redes. Eram as fotos, não eram? Eram as fotos que lhe causavam tanto desconforto, que lhe faziam a sudorese tomar conta do corpo. Todos que conhecia àquela altura compartilhavam o pé inchado e roxo do menino Ney. Alguns exibiam as fotografias em forma de lamento, clamando em oração pela intercessão divina, pois só o grande Deus pode abençoar esse menino tão doce e tão humilde que injustamente vem sofrendo com as maldições e psicas de um povo tão ignorante e maldoso e sem coração e meu Deus, meu Senhor, perdoai-vos (mas nem tanto), pois eles não sabem o que fazem! O outro tsunami de fotos e publicações era acompanhado, finalmente, por chacotas e piadas. Era a maioria agora. Sim, Jesus Cristo nosso Senhor, era a maioria!

Desesperado com tamanha insanidade, observando o pé tão amado e abençoado por Deus, Caio chorou. As lágrimas caíram, incessantes, dentro do quarto. As imagens obscenas não lhe escapavam a cabeça, então, furioso, desativou a própria rede social. E depois outra. E em seguida todas elas. Pelos quinze minutos que se passaram, ele sentiu que o ar escaparia pelos pulmões, como se a garganta estivesse se fechando, embora tivesse sido um rapaz muito saudável e viril durante toda a vida, sem problemas respiratórios crônicos.

Quando as lágrimas cessaram, ele se acalmou. O ar-condicionado esfriou o quarto e o suor secou. Pouco a pouco, o ar preencheu os pulmões e o coração, aos galopes, silenciou-se ao ritmo normal. As imagens malditas, entretanto, continuavam na mente, insistentes. O leite desprezado. A obra de arte destruída. A mácula ao sagrado. A imagem em sua cabeça não poderia, desta maneira, ser profanada. Não. Recuperado, e acima de tudo determinado, Caio pegou de volta o celular. Abriu as pastas secretas de sua nuvem. Documentos > PDFs > RG e CPF > Xerox > NJR10. Na galeria da pasta, vislumbrou a mais pura personificação do sagrado masculino. Dezenas de fotos mostravam as pernas do menino Ney. As mais antigas, sem as tatuagens. As mais recentes, preenchendo os dois pilares que davam vida ao mais exímio dos artistas do futebol. Na canela esquerda, QUE DEUS ME ABENÇOE, abaixo, um 19. Na canela direita, E ME PROTEJA, abaixo, um 92. Súbito, a mão de Caio automaticamente segurou o próprio pênis em riste. Duro, ele deslizou a mão esquerda pelo celular, enquanto a direita subia e descia. Uma das pernas trazia consigo a mensagem motivadora WORK HARD. Motivado, hard, muito hard, Caio trabalhou hard.

A noiva costumava brincar que não podia reclamar do presente de Deus. Caio era duro. Firme. E forte. Nunca havia finalizado um jogo em menos de 15 minutos. Nunca. Isso era raro. E as piadinhas que sobre isso costumava fazer na internet eram nada mais que irônicas, uma provocação às demais moças para que possuíssem curiosidade e diante do assunto abordado secretamente o procurassem para constatarem o contrário. Sempre funcionava. Infalível. A noiva disso se deliciava e se orgulhava, as demais moças disso se aproveitavam.

Mas diante do sagrado masculino do menino Ney, Caio nunca durava mais que dois minutos e meio. E estava tudo bem. As necessidades de um homem são compreensíveis. Admirar o que havia de mais belo na Terra era uma necessidade física.

WORK

                                                HARD

E hard, muito hard, Caio trabalhou. Moveu as mãos para cima e para baixo. Espantou a imagem obscena do pé contundido do menino Ney, pobrezinho. Focou no pé atlético, saudável, em tempos de glória. E hard, muito very hard, ele continuou a se acariciar, a se tocar, a subir e a descer o prepúcio enquanto imaginava o pênis esfregando a cabecinha rosada pelas coxas torneadas do menino Ney, pelos joelhos arredondados e bem articulados do menino Ney, pelas canelas fortes e tatuadas do menino Ney, e, finalmente, deslizando pelos pés não inchados e herméticos do menino Ney. As plantas dos pés do menino Ney estariam agora a lhe roçar o pênis hard, um footjoob que nem a mais sortuda e próxima geração de base do Santos Futebol Clube conseguiria proporcionar. Trabalhe hard, very duro. Working. Working. Very hard. Tão hard até que não seja mais possível conter a euforia, a potência da finalização, o gol saindo pela boquinha ansiosa de comemoração, de vitória, pelo título do gozo.

Caio explodiu. Sentiu o leitinho quente lhe escorrer a pele, espremer-se entre os dedos. Imaginou que suas mãos eram a musculatura bem trabalhada das pernas do menino Ney. E o menino Ney estaria sorrindo. Sem lágrimas. Sem dores. Sem lamentos. Sem maldições. Empunhando a taça do Hexa. E o Brasil por ele estaria gritando. Venerando. O menino Ney seria, novamente, um herói.