30 de dezembro de 2017

Lobos interdimensionais estão a um grau de separação (no ano novo)





Da marquise do décimo terceiro andar conseguíamos contemplar a noite iluminada de Belém por riscos, explosões em verde, azul e vermelho, chumaços amarelados caindo pelo céu escuro como cachoeiras que contrastavam ora violetas, ora carmesins.
Os fogos subiam em sons agudos e se estilhaçavam no alto com estrondos ensurdecedores, embora o vento frio da noite quase toda chuvosa de horas antes tentasse com algum sucesso abafar o ruído e nos entregar a paz de uma noite e de um ano que tanto prometiam, mas que assim como os outros – tantos deles –, uma centena e milhares de vezes antes, demais prometeram e igualmente nada cumpriram.
Na sala abarrotada, alguns ainda trocavam abraços e calorosas palavras. Um terço daquelas pessoas já estava bêbado demais para me notar desviar de seus braços entrelaçados ou bêbado demais para notar que não precisei de muito esforço para ser ignorado.
Driblei cada uma com duas taças de vinho tinto na mão, fui até a sacada onde Camilla debruçava-se sobre a marquise. Ela olhava, solitária, aos fogos nos céus caindo como confetes sobre a Almirante Barroso.
- Feliz ano novo. – Eu disse, quando parei ao lado dela e a entreguei uma das taças.
- Feliz ano novo. – Retrucou com um sorriso e brindamos. – Achas que todos os nossos sonhos serão verdade e que o futuro já começou?
- Foda-se o futuro.
- E os sonhos?
- O que tem eles?
- O que achas dos sonhos? – Encorajou-me com um empurrão.
- “São a prole da mente ociosa, criada tão só de vã fantasia”.
- Uau. – Estreitou-me os olhos, falsamente seduzida.
- “Tão parca de substância como o ar”.
- Continua. – Bebericou o vinho com um olhar enviesado de sórdida ternura.
- “E mais inconstante que o vento”.
- Eu não resisto a poetas, vou pular no teu pau.
Finalmente gargalhamos. Ela aproximou-se, bebericou uma vez mais e me envolveu com um suave abraço.
- Esse truque sempre funciona. Shakespeare é fatal, sabia? – Falei com um olhar estreito, encenando postura teatral e ar poético.
- Não duvido. Ainda tem tanta novinha que cai nessas artimanhas: tu sopras uns versos e elas já estão te abrindo as pernas.
- É verdade.
- Cês dizem que vão escrever um poema pra elas e talvez até escrevam, porque rimar é fácil.
- Não é só rimar.
- Vocês fazem parecer difícil.
- É?
- Refinado.
- Quê mais?
- Blablablablá.
Tive de concordar com um sorriso.
- E aí já era.
- E aí já era.
- Isso quando vocês voltam.
- Vocês quem?
- Poetinhas. Escritores.
- Se você diz. – Dei um trago no vinho.
Os fogos ainda piscavam no céu.
- Eu digo. – Categorizou Camilla, cortante.
- Uhum.
- A primeira vez que Maria abriu a boca pra falar de ti, eu desconfiei. Era bom demais pra ser verdade.
- Não era não.
- Era sim. Então ela me contou sobre a Lúcia... – Camilla mordiscou o canto inferior do lábio, balançando a cabeça com uma risadinha meio sacana. – Lúcia era louca, mas tinha uma rabeta desgraçada, cara.
- Não era tão grande assim. – Suspirei, saudoso. – Mas era linda e ela sabia usar.
- Ela sabia usar.
E brindamos.
- Tu podias ter revidado, depois de toda aquela situação na casa dela e as coisas que ela espalhou por aí, mas não fizeste nada. Nenhum livro, nenhum poema... Nada.
- Nada.
- Por que?
- Eu não tinha perdido tudo com Lúcia, um pouco de sanidade, talvez, mas não tudo. Eu ainda tinha dinheiro pra encher a cara e ainda tinha a Carol.
- Ah, é. Maria me contou sobre essa tal Carol.
- Contou?
- Ela contou muitas coisas. Ela gostava pra caralho de ti.
- A Carol?
- Não, a Maria.
- Todas elas gostam pra caralho no início, Camilla.
- Tá se lamentando?
- Não.
- Tá se fazendo de coitadinho?
- Tô me vangloriando. – E mais vinho. – Que honra a minha de habitá-las por um tempo.
Camilla assentiu, compartilhando por um breve silêncio a sensação e o frescor do habitar de cabelos, corações, curvas e vulvas.
Pelo tempo que fosse.
- Eu sinto muito por essa Carol.
Abanei a mão.
- Pelo menos tu escreveste A casa dos lobos por causa dela. Aquele livro foi lindo.
- Tu leste?
- Li.
- Valeu.
- De nada.
Alguém bêbado veio até a sacada e nos encheu por um tempo com felicitações manjadas e uma ladainha fodida sobre Deus, bênçãos, luz e gratidão. Camilla fingiu com um dom surpreendente amar tudo aquilo, trocou cinco palavras com o sujeito e em um minuto ele já estava longe, de volta à sala.
Dissera ao cara que estava tentando transar e precisava de intimidade para me convencer.
O cara entendeu e saiu me xingando.
- Enfim. – Suspirou ela, esvaziando a taça. – Sinto muito pela Maria também, já aconteceu comigo uma dezena de vezes, cara. Tu nunca podes concorrer contra uma boceta melhor.
- Tu nunca podes concorrer contra uma boceta quando não tens uma. – Corrigi-a.
E então rimos.
Os fogos continuaram por mais alguns minutos – dez ou quinze ou sessenta. A festa continuava lá dentro e de alguma forma foi a Camilla, sussurrando no ouvido do cara que nos atormentara quando ele apareceu pela segunda vez, a convencê-lo de conseguir uma garrafa de vinho inteiramente cheia.
O jegue no cabresto levou nada mais que cinco minutos para nos trazer o San Martin.
- Uma vez – Camilla comentou, enquanto enchia nossas taças – fui a uma festa de formatura de Engenharia. Em cima do palco tinha uma engenheira recém-formada dançando com uma garrafa de Cantina da Serra nas mãos. Cara, eu fiquei na frente do palco a noite inteira apreciando aquela coisinha linda. Quis ser aquela garrafa, entende?
- Entendo. – Outro brinde, outro trago. – Conseguiste a engenheira?
- Não.
- Nem sequer tentou?
- Algumas coisas não são feitas pra se conquistar. Tu só as admira, servem de inspiração e de motivação.
- Inspiração e motivação pra quê?
- Algo melhor, eu acho.
- Tipo uma garrafa de Cantina? – Olhei o rótulo do San Martin, pensativo.
Camilla assentiu, agora com uma piscadela infalível, e retrucou:
- Tipo uma garrafa de Cantina.
Depois da sexta taça, Camilla já sorria mais e tagarelava mais. Eu falava menos porque era sempre melhor ouvi-la falar e filosofar e soltar frases prontas e reflexivas do que ouvir minhas baboseiras trágicas, no entanto eu ria e ria da mesma forma que ela.
- Então... – algum tempo depois ela soltou um arroto, daqueles discretos que sobem sem querer pela garganta e são freados ali mesmo, as bochechas inflam e a mão fechada é colocada sobre a boca – puta merda, foi mal... Então, o que eu ia dizendo é que meu pai descobriu tudo sobre aquele caso, mas a melhor parte foi a de contar pra madame que o marido dela tinha um caso com a líder da célula.
- Caralho, a líder da célula?
- Isso! Alguém rasgou a bíblia depois disso.
- Puta merda.
- Agora vai, é a tua vez, tu falas pra caralho. – Deu-me um tapinha nas costas. – Me conta uma parada bizarra.
- Eu não faço a mínima id...
- Puta merda, claro que fazes. Tu és escritor, né? Inventa alguma coisa. Não é o teu trabalho inventar?
- É o meu trabalho. – Virei a taça e a enchi de novo. Na noite fria, as minhas veias ferviam. – Existe uma possibilidade da qual eu sempre me pego pensando, principalmente quando tô bêbado pra caralho.
- Qual é?
  - E se nossa existência não passar de um produto da imaginação alheia, da imaginação de um outro alguém? Eu não sou o primeiro a pensar isso, mas então eu bebo mais e mais bêbado fico e mais fundo vou nessa possibilidade: e se não passamos da mera imaginação criativa de alguém? E se não passamos de meros personagens escritos na página de alguém em outra dimensão acima de nós?
- E se tu estiveres sendo escrito nesse exato momento? – Encorajou-me na paranoia, gesticulando com um olhar conspiracionista.
- Exato! Mas esse alguém que nos cria não sabe que está nos criando, porque talvez ele também seja criado por um ser superior tão inconsciente quanto.
- E o ciclo se repete eternamente?
- Sim!
- Puta merda, cara.
- Olha só... Existe um clássico clichê barato entre escritores: um bar é descrito, uma mesa qualquer barata num boteco de esquina nos subúrbios da cidade, seja a cidade qual for. Então todos os seus personagens sentam nessa mesa de bar e acabam se cruzando ou acabam conversando por horas e horas. Você, como escritor, tem como simples objetivo apenas fazê-los se chocar uns contra os outros. Pode ser uma barata alienígena mutante com esquizofrenia da sua série sci-fi ao lado do analista desempregado com duas famílias que discordam, ambos, da visão política da sua personagem adolescente-metida-a-intelectual do último romance piegas. Não importam os universos: todas as leis físicas são desfeitas para que se encontrem nesse bar.
- Talvez nós dois sejamos isso.
- Talvez. Mas eu duvido que alguém que tenha me feito seja tão superior assim.
- Eu também duvido disso a meu respeito. Égua, mano: sou uma sapatona com problemas psicológicos, com um gato que só faz soltar pelos pela casa e tu és um escritor fodido sempre enrabado pelas mulheres e que ainda mantém uma merda de honra nessa cidade sem amor e sem compromisso algum, tomando vinho na porra de uma festa que a gente nem sabe de quem é e olhando a porra dos fogos na Torre da RBA do outro lado da Almirante. Isso não existe, chega a ser piada.
- Chega a ser piada.
Outro brinde.
Outro trago.
Um único de vez.
Mais taças preenchidas e uma garrafa quase vazia.
- O que será que falta mais? – Camilla me questiona, segurando-me pela gola da camisa numa cena teatral. Daquela distância, eu conseguia ver as finas cicatrizes rosadas que subiam dos ombros até o pescoço e as finas linhas que ficaram na têmpora direita perdendo-se entre os cabelos castanhos da cabeça.
Quem quer que criara Camilla ou quem quer que a fez passar por tudo o que passou, em uma dimensão outra ou superior, não tinha lá muito senso de humor ou senso de piedade.
- Talvez você escreva sobre isso. Talvez você até faça outro romance sobre isso. – Sugeriu ela.
- Talvez.
- Chega de escrever romances sobre Lúcias, Caróis ou Marias.
- Ah, chega, é?
- É, porra. São só mulheres.
- Sei, são mulheres.
Camilla tentou uma vez mais abrir a boca para contra-argumentar, mas finalmente se deu por vencida e admitiu que nem mesmo ela faria aquilo. Não eram “” mulheres tanto para mim, quanto para ela. E as marcas que açoitavam a pele ainda faziam-na lembrar dos ecos constantes que suas próprias Lúcias, Caróis e Marias deixaram – mesmo que tenham sido três delas em uma só.
Camilla estava cheia assim como qualquer outro de nós, fossem por carros virados, fossem por agulhas em tornozelos, fossem por donzelas degeneradas em apuros, fossem por doses de Rivotril ou fossem por trabalhos investigativos para o pai. Fossem por suas próprias Lúcias, fossem por suas próprias Caróis ou fossem por suas próprias Marias.
Camilla estava cheia, pesada e esgotada. Camilla não tinha escapes como criar personagens fodidos em dimensões abaixo dela para aliviar demônios ou para aliviar a própria imaginação sádica e criativa.
Camilla precisava de mais, muito mais, como qualquer outro de nós.
- Quer ouvir outra coisa meio doida também?
- O quê? O quê? – Perguntou, curiosa.
- Estamos a seis pessoas ou menos de qualquer outra pessoa no mundo.
- Já ouvi falar disso.
- O que significa que tu estás a seis graus de separação do teu criador.
- Ou a seis graus de separação de uma revolução, muchacho. – Ela ergueu as duas mãos para o alto como se Belém inteira a estivesse assistindo,
mas a cidade inteira não estava.
Um desperdício.
Uma pena.
Camilla permaneceu com as mãos para o ar, a taça na esquerda, pois era canhota convicta. Os braços tão longos quanto as pernas e as pernas tão magrelas e sinuosas quanto os cabelos castanhos, esvoaçantes, lisos e hidratados, esvoaçantes como um pano amarrado a um pedaço de madeira na proa de um navio pesqueiro em alto mar.
Esvoaçantes.
Esvoaçantes.
Já passava de uma da manhã e os fogos vez ou outra continuavam, não alegóricos como há mais de uma hora, mas sempre nos momentos certos, sempre quando Camilla tinha diante dela uma Belém límpida, fria e promissora. Sempre quando Camilla vibrava um grito de guerra ou um xingamento sujo e profano.
Alguém atrás de nós bateu na porta de vidro e chamou por meu nome.
Era uma boa e nova amiga:
Kiara.
Kiara tinha um copo vazio nas mãos, pele tão natural e indigenamente bronzeada e olhos castanhos quase indo para o amendoado. Os cabelos negros estavam presos num rabo de cavalo confeccionado com algum nome que eu desconhecia, já as roupas brancas de detalhes e arrojos prateados contrastavam perfeitamente com o esmalte negro das unhas.
- Hey, soube que é aqui que tá rolando uma garrafa de vinho? – Perguntou, quase como se pedisse permissão.
- Aqui mesmo. – Abri a porta de correr e ela pôs-se ao meu lado. Apresentei Kiara a Camilla e Camilla a Kiara: – Camilla, esta é a Kiara. Ela também odeia poetas de merda metidos a comedores.
- Tu também estás de saco cheio dessas rimas bem feitas e palavrinhas bem montadas? – Inquiriu Camilla, já enchendo o copo da garota.
- Caralho, isso me dá nos nervos! – Nós três brindamos. Kiara pôs as mãos nos meus ombros e sorriu, deslumbrante: – Nada pessoal, tu até te salvas.
- “Até”. – Ergui a taça em um aceno – Muito obrigado.
- Teu amigo Bernardo tá lá dentro, rondando e fazendo as mesmas piadas escrotas e se idolatrando pelas merdas que escreve. – Kiara quase cuspiu, abanando a mão com desdém enquanto também se inclinava sobre a marquise. – Aliás, ele é o melhor escritor da cidade com aquela falsa modéstia desgraçada, só falta lamber o próprio saco quando recebe um elogio.
Camilla explodiu em gargalhadas, apontou na direção de Kiara e disse “eu venero essa garota” e Kiara, que ainda nem estava bêbada, por um instante corou sob a pele cor de jambo. As duas continuaram a concordar em outras coisas e fiz questão de encher minha taça uma vez mais, dando um beijo na cabeça de cada uma e dizendo que voltava depois.
Ambas limitaram-se a um rápido “tá ok, volta logo”, temerosas demais em perder uma o foco na outra. Sorri e comprovei que talvez, talvez, você estivesse distante somente a quatro ou cinco graus a menos do que esperava das pessoas certas.
Talvez estivesse apenas a um grau de separação do futuro que estava prestes a começar.
E talvez,
talvez,
Camilla finalmente merecesse coisas boas, orquestradas por sabe-se lá o ser – nada – superior que nos escrevia em uma dimensão acima.
Saí da sacada e fechei a porta atrás de mim. O cara que surgira há uma hora apareceu, ele estava ainda mais bêbado, ainda mais barulhento e duas vezes mais inconveniente.
- E aí, tu não vais comer a gostosa ali, caralho? Ela quer foder contigo.
Dei de ombros e apontei pras duas:
- Eu até que tentei, amigão, mas tu nunca podes concorrer contra uma boceta quando não tens uma.
- Perdeste pra uma mulher? HAHAHAHAHAHAHA. QUE PAU MOLE DO CARALHO!
Todos em volta também riram.
- Sim, né? – Beberiquei o vinho e gargalhei de volta como se não houvesse captado a chacota, balancei a cabeça e me afastei da sala.
No corredor, encontrei Bernardo.
Bernardo Galvão, o mesmo que Kiara tanto desprezara, o mesmo que escrevia besteiras demais num blog famoso na cidade, o mesmo que julgava-se o novo Gil Vicente da literatura paraense e o mesmo que sustentava com merdas e indiretas uma coluna aos domingos no Jornal de elite da cidade.
Cumprimentou-me pelo nome, com um toque de mão deveras apertado e um sorriso meio nocivo. Seja lá quem fosse o ser – nada – superior em uma dimensão acima que criara Bernardo Galvão, ele queria me enrabar muito por nos colocar na mesma festa de ano novo, no mesmo corredor e com a mesma profissão e ofício da alma.
Alguém definitivamente queria me foder.
- Como anda o grande romancista de Belém? – Ele perguntou.
- Benzaço. Como anda o grande poeta e prosador ácido das ruas mangueirenses?
- Ah, quê isso? O que é que é isso? – Ele se regozijou numa modéstia tão fraca e tão falsa que se eu o tocasse nos ombros, ela seria capaz de desmoronar; ele se regozijou tanto, mas tanto, que até mesmo esqueceu de responder à pergunta.
Ao lado de Bernardo, duas garotas de cabelos coloridos e tatuagens revolucionárias nos braços fumavam e o veneravam como beatas diante de Jesus na cruz. Eu as reconhecia dos instantes noturnos de Belém e as reconhecia de fotos conceituais em redes sociais fotográficas.
Uma delas reconheceu-me de volta, pronunciou meu nome e perguntou, interessada:
- Tu escreves também?
- É, ele escreve. Tem umas publicações por aí. – Foi Bernardo a responder por mim.
- Ah, que massa. – E então voltou a tragar o cigarro, menos indiferente que a outra que nem sequer cruzava os olhos por mim.
- Isso aí, que massa. – Respondi com um sinal de positivo na mão e dei adeus aos três, sob a desculpa que precisava ir ao banheiro.
Por sorte, ninguém me impediu.
E de fato, até tirei um pouco da água dos joelhos. Dei a descarga e senti o corpo ardendo, o suor do vinho descendo da testa e escorrendo pelo meio das costas. Joguei um pouco de água na cara e enxuguei com o papel higiênico que ainda sobrara e estava amassado sobre a pia.
O banheiro fedia a urina forte de cerveja, a bar de esquina.
Limpei a cara e dei o fora do banheiro e passei por Bernardo, que tinha a língua de uma das meninas na garganta e a língua da outra afogada em seu pescoço e as mãos dela dentro da calça.
Grande Bernardo.
Passei pelo corredor meio abarrotado de gente, andava um tanto quanto cambaleante por causa do vinho e quando dei por mim, a taça em minha mão havia desaparecido – eu não sabia se estava bêbado demais e a esquecera no banheiro ou se fora apenas um erro de seguimento de fatos cometido pelo ser (nada) superior que escrevia sobre mim e sobre seus outros (prováveis) personagens no mesmo apartamento, em pleno bairro do Marco, em Belém, justamente em uma noite de ano novo.
Fosse quem fosse...
Que maldito sadismo e que maldita falta de criatividade.
Indireta captada ou não, num piscar de olhos me vi novamente com a taça nas mãos.
- Ué? – Cocei a cabeça, meio zonzo, meio perdido, meio tocando o foda-se, meio virando todo o resto do vinho e meio que deixando a taça vazia em alguma estante de livros pelo meio do caminho.
Cruzei a sala e vi dali mesmo, na sacada, Camilla e Kiara, com taças vazias, garrafa de vinho seca, mãos apalpando os lugares certos e lábios beijando os lábios certos. Camilla merecia tanto quanto Kiara merecia.
Naquela noite, éramos todos lobos degenerados à procura de uma matilha a nos encaixar ou à procura de um Lua a venerarmos.
Saí do apartamento e desci de elevador. Lá embaixo, no saguão, duas pessoas me cumprimentaram e desejei um feliz ano novo a elas.
Cumprimentei os dois porteiros.
Cumprimentei uma pessoa na calçada.
Entrei no carro e dirigi na segunda marcha até em casa. Levei quase uma hora para chegar, porque não queria enfiar a cabeça entre o volante, não queria enfiar o para-choque contra uma pessoa ou uma cabeça alheia contra o para-brisas.
Abri a porta de casa, mas não fui recepcionado por amantes como Bernardo seria, muito menos por animais peludos com nome de lobos latinos ou nome de doenças autoimunes como Camilla seria. Não havia familiares, não havia amigos, não havia nada além do silêncio e do escuro.
O que não era necessariamente uma derrota.
Tirei a camisa, tirei os sapatos, abri o botão da calça e abri o zíper.
Desabei no sofá.
Não havia Carol, não havia Maria para me atormentar.
Não havia nada além do silêncio e do clima frio de Belém a me aconchegar.
Era primeiro de Janeiro de algum ano que já nem importava.
Virei o rosto de lado e fechei os olhos. Talvez no dia seguinte eu escrevesse sobre meus próprios personagens encontrando-se numa mesa de bar ou num apartamento em pleno ano novo.
Bem, talvez eu decidisse no dia seguinte.



  
   


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