Quando atravessei a rua naquela noite de
carnaval, soube de antemão que seria minha última. O espetáculo começava a se
desenhar diante de mim como um rabisco azul de uma criança sem coordenação,
onde a obra de arte, dali a pouco, estaria completamente finalizada. A única
diferença, imaginei com ironia, era a cor da tinta: não azul, porém vermelho.
Escarlate.
O bloquinho de rua rompia as ruelas do
centro. Bêbados vagavam felizes, gritando, fazendo arruaça ou procurando cantos
para esvaziarem a bexiga. A pegação
rolava solta: almas e corpos livres, bocas e línguas compartilhadas repetidas ou
aleatórias vezes; jovens moças em seus grupos de outras jovens moças,
divertindo-se ou fugindo de predadores; garotões ricos e cheios de si, numa
empreitada cruel diante daquelas que meramente enxergavam como caça. A típica
imagem do carnaval de rua de minha humilde e úmida cidade.
Em meio à agitação, eu trombava no meio dos
transeuntes embriagados. Minhas pernas comandavam meus instintos, meus instintos
guiavam minha vida. Suspirei fundo dentro do calor humano. Senti o aroma da
cerveja azeda misturada ao suor. Algo foi jogado acima de nossas cabeças,
espirrou e secou em nossos ombros. Mais bebida alcoólica, presumi.
Continuei atravessando o pequeno riacho de pecados em direção aos braços que me
chamavam.
Ela estava lá.
Apenas um vestido preto de alças finas cobria seu corpo. Os seios naturais e
delicados – embora pequenos e frágeis através de seus contornos milimétrica e
perfeitamente arredondados – mantinham-se sem sutiã, já que os mamilos eriçados
espetavam o decote da roupa. Os longos braços e pernas não transpiravam, apenas
conservavam o mesmo brilho, quase tão brilhante como glitter, porém tão opaco,
tão vivo e tão morto. O vestido terminava pouco acima dos joelhos, destacando
as pernas de uma brancura extremamente mórbida e excitante – eu já sentia algo
crescer no meio de minhas pernas.
Na ponta dos dedos, as unhas pintadas numa
cor vermelha combinavam com a imensidão de seus olhos – literalmente com a
mesma tonalidade. O rosto era comprido e magro, o que realçava a beleza
peculiar, exótica. A boca entreaberta emitia um som tão suave e crepuscular que
eu conseguia ouvir somente nos confins de minha cabeça. Eu a escutava
perfeitamente, apesar de toda a barulheira do bloco. Ela não movia os lábios,
tampouco a língua, mas eu tinha certeza que estava me chamando. Sua voz ecoava
em meus ouvidos. Um chamado mortífero e sanguinário que apenas eu conseguia
ouvir. Um chamado do qual eu não fugiria – mesmo prevendo meu mísero futuro
naquela noite.
Aproximei-me. Ela se afastou. Parecia não
tocar o chão no momento que caminhou de costas em direção à rua deserta e
transversal que cortava a folia. Levitando sobre o solo, percebi que também
estava descalça e, por uma mínima fração de tempo, tive a confusa impressão de que
a ponta de seus dedos e calcanhares não se assemelhavam aos de uma mulher
comum, mas aos de um animal de rapina. Os pés eram esqueléticos demais e embora
contrastassem com sua graça imperial, não deixavam de me parecer atraentes e
belos. Algo cresceu dentro de mim, ardeu o fogo de mil fornalhas e refletiu-se
uma vez mais entre minhas pernas. Eu já estava excitado ao extremo e pouco me
importei sobre o que outros pensariam – era carnaval, afinal, e por aquelas
bandas da cidade ninguém se importava. Eu não estava numa condição normal de
autocontrole. Seguia para minha própria morte; seria dilacerado feito carne
moída e ainda assim, levado pela voz feminina em minha cabeça, não retrocederia.
Eu precisava vê-la.
Tocá-la.
Nada mais importava.
Finalmente a mulher deu as costas para mim
e seguiu pela penumbra da ruela. Abandonamos toda a agitação e adentramos um
território deserto e particular, onde somente nós seríamos os protagonistas. Eu
segui seu ritmo, devagar e cauteloso, como uma relação sexual secreta e adúltera.
Sem gemidos, sem gritos, apenas sussurros e trincar de dentes. Foi nesse
instante que ela parou. Obedeci aos seus comandos e também cessei os passos,
analisando-a da cabeça aos pés. Os longos cabelos negros caíam até os quadris,
combinando com as curvas das pernas e da bunda. Eu poderia gozar naquele
momento. Era um tesão sobrenatural e assustador. Totalmente demoníaco e sombrio.
Eu queria seu corpo. E ela, minha vida.
Suas magras e alvas mãos percorreram o
próprio ombro em direção às alças do vestido e com a ponta dos dedos afastou a
roupa de modo a deixá-lo cair no chão. Seus pés então caminharam mais à frente
e depois para o lado, onde recostou as costas em um dos muros da rua. As mãos
deslizaram pelos braços, contemplaram a cintura e encaminharam-se ao meio das
pernas. Os dedos começaram a se movimentar. Para dentro e para fora, num
frenesi hipnótico. Um baixo arfar escapou da boca, novamente ecoando apenas em
minha cabeça. Pude visualizar todo seu corpo, agora despido. As pontas dos
peitos mil vezes mais eriçadas apontando para mim, furiosas.
Ela me chamou:
– Venha.
Sem pensar duas vezes, fui.
Encurralei-a na parede, apoiando-me nos
antebraços. Sua mão esquerda saiu da vagina enquanto a outra permaneceu com os
movimentos. Então a mulher afagou-me o rosto e abriu os olhos para me fitar,
mas não abandonou a expressão de prazer erótico.
– Tu me queres? – Ela perguntou num
sussurro. Agora sim movia os lábios, mas a voz ainda reverberava dentro de mim.
– Quero.
– O quanto me queres?
– Com toda a minha vida.
Ela não sorriu com a resposta. Apenas gemeu
e contorceu o corpo num leve movimento orgástico.
– Cuidado com o que pedes – alertou-me.
– Tanto faz.
Sem mais dizer, entramos num silêncio
prazeroso. Ela retirou a mão direita do meio das pernas e, com as duas, passeou
pelo meu peito e desceu em direção à barriga. Continuou o caminho até alcançar
minha calça, onde desabotoou e abriu o zíper. No mesmo instante a peça caiu, e
sem se surpreender, ela tocou o volume ali embaixo. Meu corpo ardeu. A alma
queimou. Aquele era o próprio Inferno que eu clamaria para queimar por toda a
eternidade. Era tudo o que eu queria.
A mulher começou a me acariciar. Leve.
Delicadamente. Sem preocupações. Sem pressa. Então aproximou nossos corpos e
como um gato esguio roçou-se em mim preguiçosamente. Arrastou a vagina sobre
meu quadril, provocando e soltando gemidos tão baixos quanto o som do vento
numa noite abafada. Ela sabia como fazer aquilo. Sabia como domar e atrair.
Física e psicologicamente.
– Tu gostas de mim? – Voltou a perguntar. A
voz, manhosa feito uma criança; perigosa e traiçoeira como o demônio.
– Sim – respondi prontamente. Algo me
impulsionava à resposta rápida e automática. Não era eu quem respondia por
conta própria. Era... Era...
– Tu gostas muito de mim.
– Isso.
– E é meu corpo que terás. Estou certa?
– Estás.
Novamente o silêncio. Ela esfregou o corpo
outra vez. Subindo e descendo, sem que de fato algo se concretizasse.
E então colou a boca na pele de meu pescoço. Roçou a ponta do nariz, inalou meu
cheiro humano e cravou a ponta dos dentes. A dor não demorou a vir. A ardência
parecia álcool molhando uma ferida, mas também se misturava ao fervor do
deleite. Senti um líquido espesso descer meu corpo num filete único, mas depois
se transformando em dois, três e quatro, em seguida num rio inteiro.
Fechei os olhos. Senti sua vagina. Senti
dor. Senti medo – medo de morrer; medo do que ela era e, acima de tudo, medo de
perdê-la e nunca mais voltar a encontrá-la. Eu precisava da mulher. Precisava
de sua companhia. Estava apavorado, mas cobiçava sua presença.
Foi quando o som veio: algo se partindo, um
esguicho forte e exagerado. Salpicado, gotas, confetes. Ela afastou o rosto de meu pescoço e enfim pude ver seus
olhos vermelhos fitando os meus. Sua boca transbordava um líquido tom de vinho.
Filetes de carne e veias estavam entre os dentes. O sorriso não era malévolo e
sim contido, prazeroso. Ela mastigou seja lá o que fosse aquilo, enquanto senti
meu corpo perder as forças. Ela engoliu. Sugou a própria língua e moveu o
quadril sobre o meu – já estava atracada ao meu corpo, literalmente em meu
colo. Chegou mais perto de mim e roubou-me um beijo. Senti sua língua na minha.
O gosto metálico. Pedaços de carne e pele – minha carne, minha pele. A língua
afiada e pontuda passeando pelo céu da minha boca, roçando meus dentes. Não
tardou até ela morder um pedaço do meu lábio inferior. Mordeu forte. Amassou.
Apertou e arrancou. Gemi de dor, mas a dor me dava prazer. Senti o sangue
descer. E lá se foi outro pedaço de meu corpo. Ela afastou a cabeça e mastigou
com prazer. Mastigou. Engoliu e lambeu os contornos do próprio lábio. Eu sorri.
Ela também sorriu. Voltou a me beijar. Sugou o sangue que transbordava do
pedaço que me fora triturado. Eu gemi de prazer. Ela fez “shhhiu”. Obedeci.
Outra vez, nossas bocas estavam unidas num
beijo animalesco. Ela me sugava, chupava minha língua e finalmente...
Finalmente também a arrancou, mastigando cada pedaço como se fosse o último do
bolo – porém não a cereja, não ainda. Eu não senti a dor, não dessa vez. Alguém
em mim ganhou força. Dilatou-se e excitou-se um pouco mais. Senti o meio de
suas pernas molhado – numa mistura de gozo com o sangue que escorria por nossos
corpos. No momento que ela terminou de apreciar minha língua, voltou à boca na
direção da minha e sugou todo o sangue que não parava de transbordar.
Fechei os olhos e me permiti ser levado
novamente. Uma vez mais. Ela continuou
por mais três ou duzentos minutos. Roçando nossos corpos e bebendo todo o
sangue de minhas veias e artérias. O sorriso, alucinado, continuou em meu rosto:
carimbado no que quer que me restasse de alma.
No fim, entreguei-me àquele oceano vermelho
e profundo de orgasmo.
Ao longe, uma velha marchinha de carnaval
preenchia o vazio das ruelas. Pouco a pouco, ela se perdia.
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