Minha cabeça rodava levemente quando
ela se aproximou de mim, na calçada. Um leve chuvisco caía e observei-a
atravessar a rua com passos rápidos, animada e agitada demais, com a garrafa de
Skol Sense na mão. Traguei meu cigarro e confesso que olhei para cima, na
direção da lâmpada do poste, com uma patética atitude de quem se mostra
indiferente. Eu não fazia a mínima ideia do porquê ela havia atravessado, já
que desse lado da rua estava só eu e os chuviscos. Sua sapatilha era de um
verde claro, quase branco, daquelas tonalidades que certamente tinham um nome,
mas só as mulheres eram capazes de definir – as aulas de semântica e pragmática
serviram-me, pelo menos, para comprovar a histórica conclusão de que homens não
eram lá muito bons com cores. A calça jeans escura de cintura alta e a camisa
vermelha de botões, com as mangas até os pulsos, realçavam as mãos de pele
clara. Os cabelos eram loiros e caíam lisos pelas costas.
Pouco se importou com o chuvisco e
veio até o meu lado. Afastei-me para que a fumaça não fosse até ela.
- Tão novinho e já fuma?
- Quê?
- Tão novinho e já tá fumando.
- Ah. – E ri, meio indiferente,
embora algo gritasse dentro de mim. Por. Que. Está. Falando. Comigo? – É, moça,
acontece.
Talvez eu tivesse até mais idade que
ela, embora nossos corpos não aparentassem. A nível de embriaguez, era ela quem
mostrava-se desde cedo mais animada e propensa a dancinhas com a amiga e os
cinco homens que as rodeavam.
O que está fazendo aqui?
Continuei fumando e talvez por
irritante desconcerto, segurei a alça da mochila com a outra mão.
- Até que horas vocês vão ficar por
aqui? – Ela perguntou, sorrindo demais.
Julguei ser o efeito do álcool.
Aliás, loira alguma em sã consciência atravessaria a rua para falar comigo,
senão fosse o efeito do álcool. Era o preço das duas caipirinhas e das
infinitas Senses, imaginei.
- Estamos quase indo. – Sorri de
volta, menos indiferente e mais espontâneo, igualmente levado pelo efeito do
álcool que fazia minha cabeça rodar.
- O que tu e teu amigo fazem aqui?
- Enchendo a cara, moça. Alguém tem
que sextar depois da semana fodida.
Ela gargalhou brevemente, escandalosa
demais.
- Vocês estudam?
- Sim, senhora. Ele faz cinema –
apontei na direção do meu bom e velho amigo, que ficou sozinho com o copo de
cerveja quando atravessei para foder a garganta – e tá quase se formando.
- E tu?
- Letras português. – Mordi o lábio,
pensando na minha atual situação. – Longe demais pra aguentar, perto demais pra
desistir. Por isso eu encho a cara.
- Ahhh, que bonitinhos!
- É, o cineasta e o escritor fodido.
- Mas quem faz letras não vira
professor?
- A gente tem que quebrar as regras,
moça.
E então ela riu e me estendeu a mão.
- XXXXXXX, prazer.
- Ah, prazer, XXXXXXX. Felipe.
- Me diz duas coisas? – Ela olhou no
relógio caro que tinha no pulso.
- Claro.
- O que tu costumas escrever? Poesias?
- Poesias? – “Poemas”, poderia eu tê-la corrigido sorrateiramente, sem que
necessariamente percebesse. Era um hábito escroto que os acadêmicos de
literatura, metidos a sabichões, geralmente tinham e que me irritavam a ponto
de matar cada um deles mentalmente, todo dia útil da semana, mas por sorte eu não
era um babaquinha sabichão e peçonhento da literatura. – Ah, não, não. Não é
pra tanto, isso é pros fortes.
- Escreve o quê?
- Contos sobre amor e morte, crônicas
de dor, sofrimento, chifres e acidez desgraçada.
- Uaaaaau – ela fez, mostrando alegre
interesse. – Como é que funciona isso?
- É uma maldição fodida, XXXXXXX. Nem
queira saber. – Mais um trago, dei alguns petelecos para as cinzas caírem.
- Tá, então se eu te pedisse pra
escrever sobre... sobre... – E olhou em volta, expressando um esforço mental
que não era de todo verdadeiro. Ela tinha as sobrancelhas grossas que
sobressaltavam bem o castanho dos olhos. Mordi o lábio com um sorriso de ponta
enquanto a esperava concluir. Quando encontrou o que procurava, voltou a me
olhar com um fervor que, sim, eu voltava a me convencer: era efeito do álcool.
Loira alguma atravessaria a rua ou me olharia com aquele fervor se não fosse o
álcool. – Sobre mim. O que seria preciso?
- Ah. – E gargalhei da mesma forma
que ela fizera há um instante. Duas cachaças de Jambu e quatro cervejas e minha
cabeça já rodava justificavelmente. – Depende, XXXXXXX. Tu queres a resposta
habitual ou a resposta verdadeira?
- Quero as duas!
Nós rimos. Ela insistiu:
- Qual é a habitual?
- A habitual é que pra eu escrever
sobre ti e sobre como atravessaste a rua pra, aparentemente, só falar comigo...
Comigo, logo comigo... A resposta
habitual seria “um beijo”. Eu precisaria de um beijo teu pra escrever.
- Tu usas sempre essa resposta?
- Ah, é a habitual. Não que funcione
sempre.
- Sei!
Nós rimos. Ela insistiu novamente:
- E qual é a verdadeira?
- A verdadeira?
- É, qual que é?
Do outro lado da rua, agora bebendo a
quinta cerveja, meu amigo quase-inteiramente-cineasta mal parecia acreditar que
a loira falava comigo. Atrás dele, eu via a amiga dela rindo e os caras em
volta segurando copos de cervejas sem entender nada.
Nem mesmo eu entendia porra nenhuma
do que acontecia.
- A verdadeira é que eu só preciso de
um momento apenas, um único momento que valha a pena e que desperte qualquer
coisa em mim, desde um sentimento mais idiota e romântico, até um de escárnio
por causa do tiozinho que tá em volta de vocês duas desde cedo, mas não
consegue desenvolver papo algum porque aquele bonitão ali tá em um assunto
muito interessante com a tua amiga. O tiozinho é engraçado, ele é meio careca e
penteia o cabelo pra frente e...
A loira começou a rir. Na realidade,
ela gargalhava, mas agora não pelo efeito do álcool, e sim porque o cabelinho
do tio era verdadeiramente digno de risada ou o modo como ele travava sempre na
hora de avançar e no fim acabava ali, em volta, parado e concordando com o
andamento das conversas alheias que não era capaz de penetrar.
- Ou eu precisaria do momento em que
tu começaste a me olhar quando eu cheguei ali e fiquei me perguntando se aquela
porra era verdade. – Balancei os ombros, fatídico.
- Poxa, tu precisas de um pouco mais
de confian...
- Todo mundo fala isso. – Estalei os
lábios. – Mas o que faria uma loira como tu, olhar pra um cara como eu?
- Ahhh, para!
- Parei. – Dei um peteleco na bagana
de cigarro.
- Eu atravessei a rua, não
atravessei?
- É verdade.
- Então!
Nós rimos. Dessa vez, eu continuei:
- Agora me diz, XXXXXXX. Qual era a
segunda coisa que tinhas pra me perguntar?
- Ah, tá. A segunda coisa era: eu te
olhei a noite inteira, garoto. Por que não fizeste nada?
- Quer saber a resposta habitual ou a
verdadeira? – Tirei outro cigarro do bolso e pus na boca, rindo.
Ela riu e sinalizou com os dois dedos
que mais uma vez, queria ambas.
- A habitual é que eu sou um frouxo,
e dessa vez sempre funciona. Todas concordam. – Acendi o cigarro, traguei
suavemente e deixei a fumaça escapar devagar entre os lábios. – A verdadeira é
que, veja bem, vocês são três mulheres. Tu estiveste com a tua amiga a noite
inteira enquanto o bonitão conversava com ela e os outros quatros circulavam tu
e a outra. – Ela prestava atenção com um sorrisinho de claro interesse.
Balançava a cabeça positivamente enquanto eu apontava para o outro lado da rua
e me sentia mal por ter abandonado meu bom amigo. – Esse, em si, já é um grande
bloqueio. Na pior das hipóteses, eu sairia dali com um não gigante e seria uma
piada para os tios e o bonitão. Acredite, de piadas eu já ando meio saturado. –
Outro trago, outra risada. – E tem o Walter.
- Como sabe o nome dele?! –
Questionou, espantada.
- Prestei atenção em algum momento
que chamaste o nome dele. O Walter. Tipo,
vocês estão todos bem vestidos e o Walter tá de uniforme. Eu diria que saíram
da firma ou, sei lá, são funcionários públicos...?
- Uau, bela observação. – Bateu
palminhas, animada.
- Firma?
- Funcionários públicos.
- Tá, beleza, viu? – Dei uma
piscadela vitoriosa. – O Walter é um senhor de quase meia-idade que parece
ainda ter tudo em cima e te circulou a noite inteira. Certo, vocês
provavelmente são colegas de trabalho, mas estão bebendo, tu estavas animada
demais e ele interessado demais. O Walter parece ter grana o suficiente pra
pegar um táxi de volta pra casa, meu amigo e eu ali... voltaremos logo, por
causa do ônibus.
- Tá me chamando de interesseira? – A
voz vacilou.
- To falando sobre estabilidade e
aparente maturidade. – Frisei, categórico. – Meu amigo e eu somos uns moleques
comparados ao Walter, que esteve a noite inteira ao teu redor. Walter é vivido,
aparentemente maduro, funcionário público e... Eu sei lá, eu certamente
escolheria ele ao invés de um universitário fodido com cara de criança. – Outro
trago e sorri, franco. – Você não parece o tipo de mulher que...
- Que...?
- Que atravessaria a rua por um cara
como eu.
- Ah, não?
- Não.
Mas ela atravessou, palerma.
- Fui um idiota, né?
- Pra cacete.
Ao invés de virar e dar o fora dali,
ela permaneceu de pé, olhando-me como se aquele fosse meu último oportuno momento
de redenção. Peguei o recado. Eu ficava mais esperto com um pouco de álcool nas
veias, talvez fizesse aflorar minha lua em Capricórnio.
- Mas pelo menos foi a resposta
verdadeira, não a habitual. Fui sincero, desculpa. – Soltei a fumaça devagar. –
É só que entre um homem e um menino, tu parecias o tipo que escolheria o homem.
- E vou escolher. É com o Walter que
vou voltar agora à noite. – Ergueu as sobrancelhas, sugestiva e desafiadora.
Era provocação naqueles olhos castanhos? – Mas por algum motivo idiota, seu
babaca, eu atravessei a rua. Não se tocou disso?
- Me toquei. – Assenti, meio risonho.
– Posso fazer uma pergunta, agora?
- Vai lá.
- Por que atravessou a rua?
- Porque eu já vou embora com a porra
do homem maduro do Walter, mas queria vir aqui antes. Babaca.
- É o que todas dizem, moça.
Aí ela finalmente riu. Com um longo
suspiro que denunciou a falsa carranca que queria manter, olhou para o relógio
caro no pulso e me perguntou:
- Eu te dei um momento marcante pra
escrever alguma coisa?
- Com toda a certeza. Mais que um
momento.
- Melhor que um beijo?
- Eu não colocaria dessa forma, pera
lá.
Nós rimos, ela inclinou o rosto e
ordenou meio baixinho:
- Anota meu número.
- Sim, senhora. – Obedeci
prontamente, anotando o número dela e quase não acreditando na merda inteira.
- E escreve sobre isso.
- Sobre tu?
- É, é. Sobre o tal momento que eu te
dei, quero ver se é tão bom assim.
- Não mesmo, mas eu vou tentar. Quer
que seja triste, doído, ácido ou...?
- Só seja legal e tenta ser menos
babaca, babaquinha. – Gargalhou. – Hoje eu volto com o homem maduro, mas amanhã
eu espero que tu fales comigo.
- E aí a gente conversa sobre aquela
outra resposta?
- Qual?
- A resposta habitual. A do beijo.
- A gente vê isso daí.
- Sim, senhora.
Ela sorriu, mas nenhum de nós
arriscou um aperto de mão, abraço ou troca de beijos nas bochechas.
- Vou escrever e fazer que pareça
mentira, só um texto idiota. Nem teu nome vou revelar. – Fiz uma pequena
continência.
- Só escreve!
Ela continuou a rir com aquela
gargalhada sincera sob efeito de álcool. Acenou na minha direção com um
tchauzinho animado. Todos eles foram embora: o tiozinho do cabelo engraçado, o
cara bonitão e o Walter ao lado dela, ambos em um táxi rumo a sabe-se lá aonde
iriam.
Não dei asas à imaginação.
Acendi outro cigarro e voltei na
direção do meu parceiro quase-inteiramente-cineasta. Ele bateu no meu ombro e
sorriu, empolgado demais com o rumo dos fatos. Nove anos depois, parecíamos
ainda aqueles dois nerds adolescentes que não acreditavam nas pequenas e
improváveis circunstâncias que a vida nos pregava.
Bebemos a última cerveja e descemos,
zonzos, a Manoel Barata numa chuvosa sexta-feira à noite em direção à Doca.
Passamos por travestis nas esquinas e contamos com a sorte de não encontramos
nossos queridos amigos malacos que brotavam sempre sorrateiramente das sombras.
Então chegamos vivos à Doca. Ele apanhou um ônibus, já eu parei no Batistão e
enchi o bucho de hambúguer, Coca-Cola zero e um prato gigantesco de babatas
fritas. Talvez naquele momento XXXXXXX estivesse se divertindo ou talvez Walter
nem fosse lá tão maduro ou interessante assim, mas de qualquer forma, enquanto
mastigava, eu estava rindo.
No dia seguinte, fiz o combinado.
Enviei uma mensagem.
“Oioi, moça”, eu disse.
“Oiii, babaca”, ela respondeu.
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