Café preto, quente.
São oito da manhã e ainda estou de
calça e meia, ainda não liguei o ferro para passar a camiseta, tampouco pus o
sapato ou apertei o cinto. Estou atrasado há meia hora. Meia hora leva 67% do
caminho até a Universidade, é tarde demais agora. Por isso dou de ombros e
observo o café quente cair na jarra da cafeteira, divagando sobre o modo como o
cabelinho de Carl Sagan era estranho e o quanto vou demorar para ficar com as
entradas iguais às de meu pai, quanto tempo meu cabelo vai sumir da minha cara
ou quanto tempo vou levar para me tornar tão sábio quanto Carl Sagan – talvez
quando meus cabelos permanecerem intactos, certamente. Então o café cai e a
cafeteira faz um ruído estranho, porém habitual, aquele som de sucção que
esquenta a água e a suga para o próximo nível, o do coedor. Espero mais um
pouco, o café quase pronto. E penso no cabelo do Carl Sagan. Penso nas moedas
contadas na carteira e agradeço até mesmo aos deuses – inclusive ao
judaico-cristão – por eu ter conseguido algum trocado para frequentar alguns
minutos (agora perdidos) de aula.
“Gratidão”, como diriam as boas moças
descontruídas de hoje em dia que tentavam parecer zen e desprendidas, mas não conseguiam desprender-se das sórdidas
amarras do cinismo, provocação, ironia e ferrenha rivalidade. Gratidão é o novo
Eu Te Amo, alguém me disse recentemente. Comecei a rir e peguei a jarra,
enchendo minha xícara. Olho para o café lá dentro refletindo meu nariz amassado
e meus olhos inchados de cansaço existencial e 3 horas diárias de sono. Como
está meu ânimo hoje? Péssimo? Não. Então misturo o leite. Desce pela garganta e
dissolve tudo de ruim que possa haver na garganta, desce esôfago abaixo. Meus
dedos indicador e médio nem mesmo sentem a coceirinha sedutora do cigarro entre
eles. Estou bem, revigorado, olhos pesados e bocejos. Estou acordado há mais de
uma hora e há mais de uma hora está tocando Johnny Cash. On the evening train agora. Da minha cozinha, acho que os vizinhos
conseguem ouvir minha trilha sonora, é uma boa trilha sonora, admitamos. Certa
noite, enquanto acendia o cigarro e virava a gordinha garrafa de catuaba, era
Kansas que tocava. “Continue, meu flho
desobediente, haverá paz quando você tiver terminado” e então alguém
reagiu, um desses vizinhos aqui ao lado que vivem gritando e brigando e se
matando. O cara reagiu positivamente, como se surpreendido por ouvir música boa
de onde menos esperava. Desde então, sinto-o interessado, toda a noite, quando
possível, quando sento para fumar e alcançar um pingo algum de sono através da
catuaba, até sinto que o vizinho canastrão quer ouvir a minha trilha. Isso é
bom, poucas vezes me senti útil na vida, agora é uma dessas vezes. Valeu mais
do que todos os meus relacionamentos anteriores, sinto-me mais útil do que a
soma de todo o resultado deles. Ahá. O café desce pela garganta, ele está bom,
suficientemente agradável. Agora o Sr. Cash canta Wayfaring Stranger e penso: “isso aqui é vida, isso aqui é tá bom. Por
que sair de casa?”. Deito no sofá, estico as pernas e fecho os olhos. 98
músicas do Homem de Preto na playlist garantem algumas longas horas de
companhia. Quando abro os olhos, são onze da manhã e está tocando One. Música
desgraçada para desgraçar a minha desgraçada cabeça. Levanto e faço mais café,
mas agora não misturo com leite. Merda, meu ânimo mudou. Até os dedos começam a
coçar.
É quase hora do almoço, minhas
panelas estão vazias e eu só tenho moedas contadas para o transporte e um real
para o almoço, mas dormi demais. Eu sempre durmo demais. Claire havia dito que
passamos mais da metade de nossas vidas dormindo e certamente eu já mencionei
isso em outro texto. Defasado e repetitivo, porém ainda verdadeiro. Meu
estômago ronca, aparentemente apenas café não enche o bucho. Faço um estalo com
a boca e volto a deitar no sofá.
Pelo menos ainda está tocando Cash.
Quando se está tocando Cash, tudo fica um pouquinho melhor.
É como diriam aquelas mocinhas
descontruídas de hoje em dia:
gratidão.
É como vai se chamar esse texto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário