Red From Christmas, Cap. IV, All I Want For Christmas Is You.
Quando Evan caiu, tudo o
que ele ouviu foi um grito. Um grito longe e perdido, desesperado. Feminino. Não soube por quanto tempo
esteve apagado. Nessas situações, o tempo tem um jeito estranho de correr. Era
como tentar dormir ouvindo música com os fones de ouvido. Você de repente sente
o começo de uma canção e, logo em seguida, já se depara com o término dela,
como se jamais tivesse existido um meio. Ficava sempre uma lacuna, e você se
pergunta: “eu adormeci tanto assim? O que me pareceu ser uma noite inteira de
sono, foi apenas alguns trechos de música perdidos e cochilados?”. Era estranho,
e para Evan a comparação era a mesma.
Ser arremessado por um punhado de areia do mau e cair no chão. Ele sequer tivera a
sorte de ser aparado por uma pequena montanha de neve, acumulada na entrada da
garagem ou... Ou seja lá onde ele tinha caído. Tudo o que sentia era absolutamente nada. Não tinha dor, não
tinha sofrimento. Sem lágrimas, nem cheiro de sangue. Tentou se mexer, e deu
graças a Deus quando percebeu que ainda detinha o poder sobre o corpo. Talvez eu ainda não esteja tetraplégico.
Mas a visão ainda estava turva, além da sonolência. Ele fechou os olhos, abriu
e voltou a fechar. Esperou a visão se ajustar, percebendo que ainda estava na
frente de casa, mas bem afastado... Muito mais distante. Girou o rosto,
buscando um conforto. Os lábios encostaram em algo ainda mais frio: o asfalto.
Talvez estivesse no meio da rua, ou quem sabe na calçada. Fechou os olhos.
Reabriu. Enxergou Stacy nos braços de Chris. Ela se debatia, esperneava com
veemência. Fechou os olhos. Quando abriu, ela já estava ao seu lado, não, não.
Ela estava sobre ele, de joelhos no chão, acariciando-o o rosto. Seja lá como
ela tinha chegado ali, Evan tinha certeza que um segundo atrás estava sendo
segurada por Chris. É... Aquilo era como dormir com fones de ouvido. Você não sente a música passar, sem
perceber, fecha os olhos, transitando entre a sonolência e o mundo real. Aí
segundos se transformam em horas de sono ou vice versa. Como cheguei aqui? No
fim da música? Como passei... Como... Como cheguei em outra música? Como?
- Stacy? – Perguntou, ainda perdido e sonolento,
oscilando entre o desmaio e a consciência – Stacy? É você? Stacy...
- Evan, Evan... – Ela segurou o rosto dele, tocando
com a ponta dos dedos. O toque era delicado e cuidadoso, como se a qualquer
momento ele fosse rachar feito um copo de vidro – Calma, você vai ficar bem.
Você, você vai...
Lágrimas despencaram dos olhos escuros de Stacy. Ela o
segurava nos braços como uma mãe com o filho. Ele sentia suas mãos, sentia seu
calor em meio ao frio. E mais que isso, Evan sentia a neve caindo com mais
força, quase congelando as lágrimas da garota. Ele fechou outra vez os olhos,
desejando poder dormir e esquecer tudo o que tinha acontecido. Estava atordoado
e o mundo girava sem nexo ao seu redor. Quando deu por si, já estava sentado,
os braços dela o envolviam as costas e o rosto enterrado em seu ombro. Sentia o
aperto. Reabriu os olhos, achando que eles já estavam abertos – devido à vívida
sensação que o corpo da garota lhe trazia. Então reuniu forças para retribuir o
abraço. Quando forçou a visão, enxergou Chris se abaixando para pegar algo do
chão. Dentro de sua cabeça, a voz do outro gritava, as palavras estavam longe,
mas Evan pôde identificá-las. Chris gritava “a arma, a arma, a arma”, uma
dezena de vezes.
Estreitou os olhos, mais fundo, com mais força. O
assistiu agarrar o objeto no chão, correr para dentro da casa após arrombar a
porta. O sono veio outra vez. Evan
sabia que talvez estivesse à beira da morte. Não sabia quantos metros fora
arremessado, mas notou que suas pernas esticadas tocavam o limiar da calçada e
do asfalto. Não tentou calcular a distância na qual voou e se espatifou quase
no meio da rua. Afinal, os números nunca
fizeram sentido na sua cabeça. Os braços ternos de Stacy o envolveram uma
última vez, num aperto mais forte, Evan fechou os olhos, agora certo de que não
voltaria a abri-los. Sentiu o corpo leve, embora pudesse movê-lo sem dores ou
dificuldades. Desejava levantar, correr para casa e salvar a vida do pai,
tirá-lo da iminência do pesadelo profético; queria salvar Chris, porque era o
mínimo que deveria fazer, certo? O cara acabara de entrar numa tentativa que
borrara todo o seu plano de se manter longe de Krampus, num ato heroico e suicida, ele entrou na casa para salvar o
pai de Evan, ou talvez apenas o fazia por causa do livro? É, claro. Era óbvio. Chris jamais se arriscaria por alguém. Apenas
correra com a arma em punho para encontrar o livro e colocar fogo, na sua
tentativa desesperada por sobrevivência. Que
seja. Chris tinha feito o seu melhor, Evan não negaria tal verdade, e nem
muito menos estava decepcionado com a última dedução a seu respeito. Diante da
morte, ele não conseguiu nutrir raivas ou mágoas. Era tudo limpo, silencioso e
tranquilo.
Não havia agonias em morrer. Apenas paz.
VOCÊ VAI DORMIR AGORA, CRIANÇA? NÃO DURMA. NÃO DURMA. NÃO... DURMA!
Poderia ser
clichê, mas quando Evan fechou os olhos, sentiu o corpo ser tragado para um
abismo sem fundo. Uma espécie de gravidade mais intensa, sugando cada parte
sólida de seu corpo. Havia uma escuridão que o envolvia, ou talvez ele
estivesse cego. Era estranho. Talvez aquilo realmente fosse a morte, sem
delineações ou definições, um grande abismo ou espiral envoltos num breu
profundo, matutando sobre qual destino expurgar o corpo estranho: céu ou
inferno?
Também não havia
dor. Sem medo. Normal. Com paz. Um vazio. Sem nada, ausência de felicidade e
tristeza, desprovido de passado e futuro. Sem decepções ou esperanças. Pelo que
pareceu uma eternidade, Evan caiu de olhos fechados, o corpo girando num espaço
solitário e escuro. Parecia mais a lembrança de uma psicose lunática, a típica
cena de jogos psicológicos onde ao se atravessar uma porta, você se depara com
as lembranças de uma infância distorcida, entre desejos não realizados.
Deixando-se levar, o garoto não questionou o porquê da morte precoce, muito
menos revoltou-se. Ele apenas aceitou. Quando suspirou para mais uma expressão
de seu conforto e conformismo, sentiu as pernas e as costas serem puxadas por
um líquido espesso e pegajoso. Ele arregalou os olhos, logo a escuridão que
tomava conta do vazio transformou-se num cone vertical de luz fraca, típica de
um dia de inverno. Logo os braços arquejaram para cima, tentando buscar apoio
no ar, mas estava afundando mais no líquido. Sem demoras, o rosto foi coberto completamente
e volumes encheram suas narinas e a boca, atravessando a garganta sem
permissão. Os olhos arderam e uma ânsia de vômito o tomou, mas estava se
afogando numa propriedade tão densa que sequer bolhas de oxigênio escaparam-no
a boca. Evan afundou cada vez, debatendo os pés e sentindo o líquido entre os
dedos, fechando a mão como se pudesse agarrá-lo. Continuou caindo sem oxigênio,
batendo as pernas, tentando nadar para cima. Os olhos pareciam queimar, tentava
fechá-los, e mesmo isso não conseguia realizar com sucesso.
Só então pôde
fechar a boca, mas era estranho. Queria abri-la, vomitar e tossir, mas
manteve-a fechada. Moveu o corpo com sincronia, parou de debater as pernas e
mexer os braços com desordem e desespero. Concentrou-se em alguns segundos de
calmaria e posicionou o corpo num ângulo vertical, reassumiu a ordem de
movimentos e nadou para cima, usando as mãos com demasiada força. Funcionavam
como remos eficientes, já que o líquido era denso, ele o apalpava com as mãos e
empurrava para baixo, obrigando o corpo a subir. Realizou a tarefa até enxergar
a superfície se aproximando, bem como a luz que enxergara antes de afundar
totalmente. Nadou, empurrou o líquido para baixo, bateu os pés e precipitou o
tronco para cima. Quando a superfície chegou mais perto e a luz clareou, Evan
esticou a mão para cima.
Tocou algo gelado e duro.
Segurou-se no
objeto com as duas mãos e retirou o corpo. Quando pôs a cabeça para fora e
puxou o ar para respirar, percebeu que estava na banheira de sua mãe, imerso em
uma substância espessa e vermelha. Quando concluiu o que exatamente era aquilo,
o garoto gritou e pulou para fora, batendo a lateral do corpo contra o azulejo
do banheiro. O sangue dentro banheira sofreu com a precipitação do garoto, de
modo que boa parte dele caiu para fora, molhando o chão. Evan tentou recuperar
o fôlego, atordoado e desconexo, sem entender como fora parar ali; sem ao menos
compreender como uma simples banheira parecia tão funda e abrangente feito um
oceano. Ele passou as mãos pelo rosto, tentando a afastar o sangue que havia
ali. Toda sua roupa estava encharcada, o cheiro era forte e enjoativo. Outra
vez a ânsia de vomitar, mas o máximo que fez foi tossir. Estava sentado no
chão, respirando fundo, suspirando, assimilando todo o terror que passara. Foi
só então que recordou que já estava morto – isto é, com noventa porcento de
certezas.
Levantou devagar,
pois ainda havia sangue demais no chão e escorregou duas vezes antes de se
colocar de pé. O banheiro parecia incrivelmente claro e branco, o que realçava
o vermelho escarlate. Evan engoliu em seco e desejou mais do que nunca dar o
fora dali. Apressou os passos até a porta, quando a abriu e atravessou o entre ela
e o quarto, deu de frente com uma visão que não esperava encarar: ao invés do
cômodo pertencente aos pais, Evan se viu no término de uma pequena estrada de
terra, ladeada dos dois lados por uma sequência de casinhas que formavam um
longo corredor vazio, ostentado por uma fina neblina. As moradias eram antigas
e com arquitetura clássica. Evan engoliu em seco, porque automaticamente sabia
onde estava. A memória do livro veio a sua mente, e as palavras “lendas”,
“Krampus” e “São Nicolau” de repente faziam um sentido absoluto. Ele estava onde
tudo aparentemente começara, em qualquer vila europeia do século XVI ou XVII.
Aparentemente,
também era inverno, embora a neve caísse sutilmente. Um bosque extremamente
denso cercava a área de trás das casas, circundando a vila e a estrada onde
Evan estava. Ele olhou para trás, mas não podia enxergar com clareza, já que as
árvores sombrias e a neblina rasteira dificultavam a visão. Ele então decidiu
caminhar, sugado pelo mistério do lugar e fadado a descobrir a verdadeira razão
em estar ali. Atravessou a neblina. Tentou se proteger do frio, quando percebeu
algo estranho. Suas roupas eram adequadas, mas de alguma forma sentia que um
fino calor esquentava seu corpo. Também não percebeu brisa alguma afagar sua
pele. Esticou as mãos para cortar o ar, notando a ausência da baixa temperatura
nas palmas. Usou a mão direita para aproximar do rosto, inspirou fundo e,
quando soltou o oxigênio, o vapor da respiração também não saiu, embora tivesse
sentido o hálito quente na pele. Baixou o rosto e olhou para os pés, continuou
caminhando e se surpreendeu quando a neblina não parecia ser afetada nem
cortada por suas pernas. Levantou o rosto, sentindo um calafrio subir a
espinha. Apalpou o corpo para sentir que ele mesmo era real, mas não havia
dúvidas. Seu corpo era sólido, bem como o calor que sentia era vívido, e seu
hálito quente como uma xícara de café.
Evan era apenas
uma figura alheia ao ambiente, totalmente desconectada da cena, mas ainda assim
presente nela.
Continuou
caminhando. Se estava morto ou não, com certeza aquilo era um tipo de realidade
ilusória ou uma ilusão realística. A vila estava abandonada, a julgar por suas
portas abertas. Nenhuma alma viva ambientava o lugar e com certeza alguma
bizarra surpresa o espreitava ao fim da jornada. Iluminadas por lamparinas, o
interior das casas não exibia nada de anormal, ignorando o medo e a estranheza
de um garoto do século XXI caminhar por uma vila tão antiga, distante há
centenas de anos. Mas Evan sabia raciocinar, o medo que sentia não cegava suas
conclusões: se o livro tivera uma origem, então fora na mesma época daquele
lugar. Algo deveria ser visto e descoberto ali, caso contrário...
O garoto parou,
estático.
À sua frente,
como num passe de mágicas, crepitava uma fogueira alta e atraente. Outra vez a
mudança de ares se mostrava sobrenatural e paranoica, exatamente como quando saíra
do banheiro e se deparara com a vila abandonada, talvez mais um jogo sádico de
uma mente louca ou, pior ainda, de um mentor pervertido. De qualquer forma, ele
agora se via perante uma fogueira, as chamas subiam a quase dois metros de
altura, alimentadas por toras de madeira perfeitamente cilíndricas. Evan olhou
para trás, onde não existia mais uma vila, e sim um círculo fechado de árvores.
Ele estava rodeado pelo bosque, no centro de uma clareira. Mas não era esse o
detalhe que o fez estremecer. À frente da fogueira, sacos de couro mal fedidos
estavam dispostos, cheios de alguma coisa que o garoto preferiu não saber. Mas
ele já tinha visto a cena antes em seus pesadelos. No entanto, nos sonhos o
saco se debatia, e ali... O que é que estivesse lá dentro, estava morto, podre
e moribundo.
Decerto ele
sabia, mas precisava de uma prova mais concreta, uma espécie de tato insano
buscando somente a verdade que já estava clara demais para ser remexida ou mais
aberta. Aqueles sacos guardavam presentes, cujos quais provavelmente haviam
sido desejados como aqueles que o nerd desejou. Todos estavam imóveis, numa
aparência suja e arrepiante, escondendo cadavéricas surpresas para a grande
comemoração do nascimento do Senhor Jesus Cristo.
Eu preciso sair daqui, eu preciso sair daqui!
- É isto o que há
de acontecer.
Uma voz
estraçalhou os planos de Evan. Outra vez o garoto permaneceu parado, sem saber
aonde ir ou o que fazer. Procurou o portador da voz com o mesmo desespero que
olhava para os sacos. Foi aí que o viu: um menino jovem, cabelos compridos,
esqueléticos e de expressão melancólica. Estava sentado do outro lado da
fogueira, com as pernas cruzadas e costas curvadas. Ele era ruivo, os cabelos
ressecados caiam-lhe os ombros. Tinha olhos verdes – um pouco mais claros que
os de Evan, mas igualmente apagados, sem vida. Lembrava mais um zumbi, embora
realmente estivesse vivo e à beira da morte. O corpo nu revelava sérias feridas
– algumas totalmente infecionadas e necrosadas –, a genitália escondida por um
amontado de pelos embaraçados e sujos. As costelas tatuavam a pele como cordas
de um deprimido violão desgastado. Mas ele respirava, tinha forças para mover
os maxilares, despejando palavras fracas e desanimadas. Elevou as verdes
órbitas na direção de Evan. As chamas crepitavam inclinadas para o lado, talvez
ordenadas a abrir caminho para a troca de olhares dos dois.
O menino fitou
Evan com uma serenidade dramática. Havia razão no seu olhar; havia sanidade.
- É isto o que há
de acontecer.
No primeiro
momento, o rapaz não aceitou a ideia de que era com ele a quem o menino se
referia. Necessitou de alguns segundos para engolir o medo e o terror, só assim
mirando os olhos do outro com curiosidade e hesitação.
- Se continuares
com a ousadia da ganância, terás os presentes aos teus pés. Tolo eu fui, também
o ousei chamá-lo. Vinde a mim, novo amigo. Mostrar-te-ei os presentes que
recebi.
Evan deu um passo
atrás, abismado demais para aceitar o convite. Mas não ousou continuar.
- E-Eu... Eu
estou morto? – Perguntou, gaguejando e atropelando as letras.
O menino não
exprimiu reação diante da pergunta, respondendo indiferente e sugestivo:
- Queres isso?
- Quero saber se
estou morto!
- Se queres a
morte, estarás morto. Se queres a vida, terás a vida.
- Ahn?! –
Aproximou-se da fogueira, não entendendo e repudiando aquele joguinho de
xaradas. O fogo sofreu uma leve explosão, fazendo-o pular para a posição que
antes estava e obrigando-o a manter-se afastado. – Eu não estou entendendo!
Preciso saber se estou morto ou se isso é mais um sonho como todos os outros.
- Se há de ser um
sonho, por que não acordas?
Evan trincou os
dentes, apertando os punhos. Desejava uma resposta, mas tudo o que vinham eram
questionamentos.
- Isso só pode
ser um sonho! No mínimo uma ilusão! – Ele caminhou para trás, rindo nervoso.
Movias as mãos em sinal de desistência, se afastando da fogueira e todos os
sacos. Sairia dali mesmo que tivesse de atravessar aquele bosque enegrecido.
Cerdo ou tarde teria de acordar. – Eu caí, fui arremessado. Ainda estou vivo,
ainda estou... É apenas uma ilusão, outro sonho ruim...
Deu as costas e
saiu correndo, deixando pra trás todos aqueles sacos com cadáveres humanos e o
menino esquelético. À sua frente havia uma escuridão densa e inóspita,
guardando demônios que nem ele sabia que nutria. Mas era o único caminho. A
vila ficara para trás, assim como a névoa ou o oceano de sangue (aliás, ele não
estava mais sujo). Deveria se acostumar com aquele terror, já que nos últimos
dias vinha sendo atormentado pelos pesadelos vívidos. Precisava nutrir uma
porção de sangue frio e estômago forte, pois logo acordaria, estaria aos braços
de Stacy ou despertando em uma manhã agradável de Outono, dando-se conta que
tudo não passou de uma estranha alucinação durante o sono.
Quando chegou
perto de entrar na escuridão da floresta para abandonar a clareira, Evan sentiu
as costas arderem. A sensação quente logo se transformou no intenso toque da
queimadura. Ao virar o pescoço, percebeu que as costas queimavam, as roupas se
incendiavam e a carne era chamuscada. Ele gritou e caiu no chão, rolando pela
terra em desespero. Esperneou-se, tirou a camisa e a jogou para o lado, desejando
mais que tudo vê-la longe da própria pele. A roupa continuou a pegar fogo até
não mais passar de cinzas. Ele tateou as costas, contorcendo-se de dor ao
sentir a superfície da pele sensível, no entanto não havia sangue, muito menos
cheiro de churrasco. Uma leve queimadura deixara a pele branca vermelha e
rosada, em pontos distintos. Mas estava vivo. Ele continuou no chão, encarando
de longe o menino que continuava imóvel.
- Há de julgar
esta dor como ilusão? – O menino perguntou sugestivamente. – Há de julgar sendo
um sonho ruim?
Evan mordeu os
lábios, gemendo. A dor era intensa demais para ser um sonho. Caso o fosse,
então ele já teria acordado.
- Merda! Quem é
você?!
Um brilho surgiu
nos olhos do esqueleto humano. As chamas continuavam a crepitar inclinadas, os
dois se analisavam. O menino, imparcial, sem demonstrar verdadeiramente as
reais intenções; Evan, apoiando-se no chão, gemendo ao esticar a costa ou ao fazer
qualquer movimento.
- Quem é você? –
Insistiu na pergunta após perceber a mudança. – Qual seu nome?
- Nomeação não
mais importa, nem lugares, idades...
- Quem diabos é
você?!
O menino cedeu.
- Alguém como tu,
Evan.
- O quê? C-Como
assim...
- Vinde e veja.
Vinde até mim.
Evan levantou,
embora tenha levado tempo demais para isso. Tocou as costas, elas ainda ardiam,
a sensação era péssima. Mas ele continuou, obstinado demais a conseguir
respostas para todas as perguntas. Ele parou diante da fogueira, mantendo
distância dos sacos. O menino balançou a cabeça de forma negativa, sugerindo
com os olhos que o rapaz fosse ao seu lado. Evan engoliu em seco, pestanejando
feito um cego. Ignorou os medos, no entanto contornou a fogueira e percebeu
que, enquanto se mexia, ela mudava sua inclinação para manter os dois
indivíduos ao alcance um do outro, de modo a voltar ao normal (como uma fogueira
comum e sem vontade própria) no instante que o rapaz se colocou ao lado do
menino. Ainda assim, manteve distância suficiente, caso viesse a ser atacado.
Mas aí lembrou o que ocorrera na última tentativa de fuga.
- Olhai os
embrulhos, olhai todos estes presentes diante de ti. – Referia-se aos sacos com
cadáveres humanos. O menino os fitava indiferente. – Eram todos meus irmãos e
irmãs. Desejei a ganância, pedi a Krampus pertences e ouro. Hei de pousar teus
olhos sobre meu sangue morto, novo amigo. Foram todos tirados de mim,
sacrifícios realizados a contra gosto. Eu não tinha a intenção, mas estão todos
aqui, dados a mim por Ele.
Então Evan
contou: eram oito os sacos, eram oito os corpos.
- Você não
desejou a morte deles. – Não foi uma pergunta. Estava concluindo.
- Jamais
cometeria tal traição. – O menino retrucou rapidamente – Amava a todos eles.
Krampus não entendeu o pedido que lhe fiz.
- Ele se agarrou
às brechas – Evan completou – E levou ao sentido literal. Ele usou seus desejos
para...
- Cumprir com os dele.
Evan levou as
mãos ao rosto e caiu de joelhos. Tudo estava perdido, já era tarde para voltar
e consertar as coisas. No fim, ele terminaria como aquele menino, todos morreriam
e não teria salvado ninguém. A culpa era toda sua.
- Não me rebelei,
porém. – Continuou o menino – A pena que me dei foi esta: perdi-me na floresta,
assim, nesta imagem e neste corpo. Aqui fiquei desde então. Vivo ou morto, já
não é algo que eu hei de saber.
- Não se
“rebelou”? Você não lutou contra Krampus?
- Lutarias contra
o demônio, novo amigo?
- Claro! Eu
preciso acertar as coisas que fiz, tenho de voltar...
- Voltar aonde?
É claro. Eu estou morto!
- Eu morri? –
Evan encarou o menino, pela primeira vez tão próximo e determinado, como se o
medo no seu semelhante não existisse.
- Se é a morte
que queres, sim.
- Eu não quero
morrer! – Devolveu num grito. Pessoas dependiam dele. Dependiam daquele garoto
que nunca fizera nada de tão grande na vida, mas que agora tinha uma chance de
consertar os erros egoístas que construíra. Mais sangue não haveria de ser
derramado, o nerd precisava evitar. – Eu quero viver! Preciso salvar meu pai...
Não posso abandonar o Chris naquela casa e... Meu Deus, Stacy precisa de mim. Eu preciso dela!
O menino sorriu,
deveras vitorioso.
Evan arregalou os
olhos ao enxergar um traço de vida naquela face petrificada e morta. Os dois
pareciam ganhar a esperança para continuar a encarar os medos, se convencerem
da verdade para, no fim, se “rebelarem” contra Krampus.
- É a vida que
queres, novo amigo? – Questionou o menino.
Evan assentiu com
veemência.
- Vá. – Apontou
ao fogo com o queixo esquelético – Faça da sua rebelião àquela que não fiz. Ide
ao demônio e o impeça. São embrulhos demais, Evan.
- O que eu devo
fazer? – Olhou o fogo crepitar, querendo não entender a indicação feita pelo
outro.
- Pulai no fogo.
- O-O quê? Claro
que não, eu, eu...
- É o único modo para
voltares.
- Mas...
- Confies em mim.
Pulai no fogo. Sinta a dor, somente ela trará à vida que te pertencias.
- Eu não posso...
Eu não...
Você pode. Era vida que ele queria, desejava voltar para salvar as pessoas
que amava. Evan não era, nem muito menos seria, um grande herói renascido das
chamas da morte. Ele não se considerava assim. Existia ali no limite um ideal a
ser cumprido. Um homem de verdade corrigia seus erros ou, no mínimo, pagava por
eles, sozinho. Sem envolver outras pessoas, sem envolver àqueles próximos de
si. Não se tratava em ser um herói – longe disso. Tratava-se do conserto. Um
sacrifício.
Somente a dor trará à vida que te pertencias.
- Como eu termino
isso?
- Olhai, novo
amigo. – O menino sorria, pela primeira vez em toda a sua “vida” após a experiência
com o demônio, realmente em paz. Fitava a fogueira com um brilho eterno nos
olhos verdes. – É ele quem guarda a tua resposta. Olhai. E lembres: do fogo ao fogo.
Sem despedidas. Sem aviso prévio. Evan não viu o
rosto do menino outra vez, porque estava ocupado demais sendo empurrado (por
uma força invisível) em direção à fogueira. Outra vez ele caiu, sugado por um
abismo. Mas agora, havia dor e agonia. As chamas consumiram sua carne enquanto
a garganta se desgastava aos berros. O garoto se debatia enquanto caía, tentava
rodar e abanar o corpo, mas até a palma das mãos chamuscavam venenosamente.
Logo teve sua pele corroída, as células sensoriais o fizeram sentir a dor até o
fim e em momento algum sua consciência dispersou. Ele permaneceu vivo e são,
totalmente sábio de seu sofrimento enquanto as chamas derretiam pele, carne e
cozinhavam os órgãos internos. Manteve os olhos fechados, porém não por muito
tempo, já que eles também entraram para a festa da combustão. Se antes as
costas o incomodavam, agora a dor era maior. Uma simples queimação daquela vez
em nada se comparava ao incêndio ao qual seu corpo fora submetido. “Dor”
passava a ser uma explicação vaga demais, e vida... Bem, aquilo tudo era pela vida.
Do fogo ao fogo.
Assim como fora
parar naquele mundo de espaços intangíveis e manipulados, o garoto agora voltava.
A primeira vez havia sido uma espiral profunda de escuridão e imparcialidade,
um mundo totalmente neutro e desprovido de dor ou felicidade. No entanto, o
caminho de volta não era em nada parecido. A ironia presidia exatamente este
fato, embora Evan não tivesse tempo ou disposição para pensar nisso (não era
apenas o corpo físico que queimava, como também a alma e os pensamentos):
morrer era calmo e silencioso, já voltar à vida era o contrário. Viver exigia
dor e confusão, talvez por isso – por trás de toda a explicação científica e
plausível - os bebês chorassem quando retirados da barriga da mãe. Talvez
houvesse um lado espiritual que os alertava da agonia do fogo e do calor do
desespero. Viver exigia resistência, talvez o pequeno choro fosse um alerta e
um cartão de boas-vindas ao mesmo tempo. É,
talvez fosse isso.
Evan ainda caía e
gritava, sentindo o corpo se reduzindo às cinzas de uma voraz chama. A pele já
havia sido devorada, não antes de dar nascimento às milhares de bolhas que
nasciam e estouravam ao logo dos membros e do rosto. Gradativamente, o calor
atingira os nervos, corroendo os músculos, cozinhando-os usando como tempero e
solvente o próprio sangue que havia nas veias e entre as fibras. Mas não bastou
até aí. Evan permanecia consciente, gritava enquanto os dentes eram aquecidos;
a língua já não mais era apropriada para qualquer uso; os cabelos foram os
primeiros a encolher feito copo de plástico descartável. Vieram então os ossos,
ultrapassando sua solidez e queimando – enfim – a alma.
A síncope
normalmente teria ocorrido há muito, devido à grande e descomunal dor que o
organismo do garoto vinha sentido. Isso ocorreria a qualquer outro ser humano.
Era uma resposta básica do homem: proteger-se de uma agonia intensa ou
descargas emocionais gigantescas. Evan era uma exceção. Ele não perdeu os
sentidos; suas sinapses não desligaram o sistema por proteção e recuperação.
Elas continuaram ativas, cada terminação nervosa; cada célula sensorial.
Ardendo o calor do Inferno, para que o garoto entendesse o sacrifício de voltar
à vida e entender as consequências de sua escolha.
A mensagem e o
significado do fogo eram simples, demasiadamente primordiais, quase didáticos:
o fogo queimava e fazia sofrer; a dor significava vida, um alerta de que algo
ainda funcionava e de que quando há sofrimento físico e palpável, há um fluxo
vivo e persistente. Apenas isso.
Ele caiu,
despencou. Gemeu forte. Gritou e incendiou.
Queimou.
Profundamente. Literal e solidamente.
Física e
espiritualmente, Evan queimou.
Stacy ainda
soluçava quando foi jogada para trás.
Ela segurava o
corpo de Evan com os braços firmes, mas não aguentou o sobressalto que ele deu.
Ela também se assustou e pulou para trás com as mãos sobre o peito. Não se
afastou tanto do garoto, mas percebeu o terror ao qual ele estava afogado. A
expressão era de espanto – três vezes maior que à dela. Evan estava sentado no
chão com as pernas esticadas, as mãos tocavam o asfalto gélido como se nunca
tivesse sentido frio na vida – de alguma forma ele procurava se agarrar à
sensação gelada como um consolo literal e espantoso, feito um desenho animado
que procura um balde de água após engolir um punhado de pimenta. Os olhos
arregalados expressavam o medo e um alívio tenebroso, ambos misturados em um
liquidificador cujo qual era o cérebro do nerd. Ele necessitou de longos
segundos para cair na real e perceber o lugar onde estava. Olhou para o alto e
identificou o céu escuro; fechou os olhos e elevou o rosto em direção às
nuvens, para sentir as prazerosas partículas de neve que caíam e derretiam
sobre sua pele quente; respirava fundo, como alguém que acaba de escapar de um
afogamento.
A emoção maior
veio quando reabriu os olhos e enxergou Stacy ao seu lado. Sem entender, ela
foi abraçada por ele num salto, o que fez com que ambos caíssem no chão. Evan
estava sobre a garota, um sorriso largo assaltava seu rosto, e ela, da mesma
forma, embora confusa, também o fazia. Tinha certeza de que antes ele estava
morto, e o garoto também pensava assim.
Seja lá o que
tivesse acontecido, Evan sabia que o menino esquelético o ajudara. Talvez
tivesse dado um empurrão espiritual, obrigando-o a sair do corredor da morte
eterna. Talvez tenha sido uma ilusão, mas a lembrança das queimaduras e do
oceano de sangue – além do cheiro – não o dava tanta certeza do estado
ilusório. Talvez, de verdade, aquele menino de uma época distante – que também
fizera um pedido a Krampus – o tivesse ajudado a voltar para consertar as
coisas. Afinal, depois de todos os erros que Evan cometera, desistir e morrer
não eram atitudes tão dignas. As atitudes certas deviam ser escolhidas e
efetuadas. “Do fogo ao fogo” significava alguma coisa, o garoto se dispusera a descobrir
com todo o ímpeto de sua nova vida.
Se havia morrido
ou não, já não importava. As visões que tivera foram reais demais para serem
contestadas. Tudo o que mais significava naquilo eram as lições que ele deveria
aprender. E erros a corrigir – principalmente isto.
- Stacy! – Ele
falou sussurrado, parecia mais um cachorro empolgado latindo de felicidades
sobre o dono.
- Evan, você...
- Eu sei! Eu sei!
– O sorriso era estranho – É loucura, não é? Eu estive desacordado, eu tive
umas visões estranhas, parecia que...
- Evan. – Ela
chamou sua atenção, abismada e com o olhar sério – Você não ficou desacordado.
Um breve
silêncio.
- O quê? – A
expressão dele ficou nervosa, o coração acelerou mais que o normal. – Como
assim?
Ela subiu as mãos
e aplacou o rosto dele. Uma última lagrima desceu de um dos olhos, congelando
ao parar no asfalto frio. A neve continuava a cair, enchendo a rua de silêncio
e tranquilidade aparente. O garoto engoliu em seco quando a viu chorar, notando
que as órbitas escuras da garota estavam rodeadas por um avermelhado anômalo. Ela esteve chorando forte. As mãos frias
dela enchiam o espírito do nerd de paz, acolhendo-o da ardência que pensara ter
sentido. Ou será que realmente sentiu?
- Esquece. – Ela
falou fraco, retirando as mãos do rosto dele com as bochechas queimando em
desconcerto. – Eu achei que você tivesse... Depois do que aconteceu... Você
caiu aqui, então eu pensei que... Você...
- Tivesse
morrido? – Ele concluiu, pasmo.
Stacy apenas
assentiu, igualmente assustada com a ideia.
Evan esbanjou um
sorriso agradável, levantando-se e puxando-a consigo. Ele não mencionou o fato,
muito menos as imagens que vira. Ele não balbuciou sobre o menino, mas já tinha
certeza absoluta de que nada fora ilusão. Talvez aquele fosse um espírito
atormentado sobre os pedidos de natal que fez; talvez o menino, quando
mencionou o fato de “perder-se na floresta sob tal imagem e tal corpo”, nada
mais quisesse se referir à própria alma angustiada, à procura de penitência e redenção.
Ele acabara por
se dar conta do óbvio, já que a morte não era algo somente terreno e material,
mas sim espiritual. Seu corpo sofreu com a queda, sua carne e seus ossos se
desfaleceram diante da existência terrestre; sua alma, no entanto, foi obrigada
a vagar pela confusão a qual o terror de Krampus o havia submetido. Ele foi
levado a um plano mediano, para ser colocado à prova em relação a escolha que
deveria fazer: vida ou morte. Recebera a chance de voltar e terminar com os
crimes e terrores do demônio natalino e assim, quem sabe, libertar todas as
vítimas que ele já havia feito até então. Por isso foi necessário o sacrifício
do fogo; por isso todas as dores e toda a sensação infernal.
Evan precisava se sentir vivo, uma espécie de desfibrilador mítico
e espiritual.
Puseram-se de pé.
Ele olhou para a casa e lembrou que Chris ainda estava lá dentro. O tempo
terreno mal tinha transcorrido, ele sentiu que esteve naquele mundo por tempo
demais, quase uma eternidade.
- Eu preciso
entrar. – Ele a segurou firme pelos ombros.
- Não! A última
vez que fez isso, aquele monstro o atacou e você voou pelos ares. Não posso
deixar que volte lá!
Ele a ignorou,
soltando as mãos e tentando se afastar. Mas ela o segurou pela camisa com força,
agarrando-o com todas as vontades.
- Evan, por
favor, não!
- Eu preciso,
Stacy.
Tentou se soltar,
embora ela continuasse a segurá-la. Evan abaixou a cabeça, esforçando-se para
não ter de olhá-la nos olhos. Era uma espécie de tentação estranha, como se
sentisse que pudesse largar todos os seus ideais para obedecê-la e ficar ali,
ao seu lado. Mas se o fizesse, saberia que Krampus viria atrás deles, e o pior:
seu pai e Chris estariam definitivamente mortos. Apesar de Stacy ser uma
escolha irresistível e atraente sob aquela imagem frágil e vulnerável, ele
precisava correr para salvar os dois naquela casa, caso contrário o sacrifício
do fogo não teria valido a pena, e a segurança da garota não estaria 100%
garantida.
Quando ela
continuou insistindo, Evan tomou coragem e levantou o rosto, pareando ao lado
dela. Ele agarrou as mãos da garota, retirando com pressa de sua roupa, mas com
delicadeza. Ele a olhou profundamente, fitando seus olhos escuros. Não
pronunciou palavra alguma, já que não teve forçar nem raciocínio para tal
coisa. Apenas permaneceu ali, naqueles segundos que mais pareceram horas. Podia
sentir a respiração da garota saindo forte e transformando-se em vapor em meio
ao frio e à neve. Ele quis beijá-la, talvez abraçá-la tão forte a ponto de
protegê-la de todos os males. A sensação forte chegava ser tão grande, que algo
já enrolava em sua garganta, apertando e ardendo-o os olhos.
Soltou as mãos
dela, afastando seus corpos e o calor momentâneo que um proporcionava ao outro.
Se tivesse que fazer algo, então seria depois que tudo aquilo terminasse. Era a
única forma de Evan se manter vivo, como uma promessa particular; sua motivação
mais forte e concreta. Ele precisava sobreviver àquela noite.
- Fique aqui
fora. E não importa o que aconteça, não entre na casa! – Ele se afastou, correndo
e sentindo o corpo perfeitamente intacto. A única coisa que o incomodava ainda
era o buraco da maldita bala que atravessara o ombro, mas já estava se
acostumando com a dor, ela fazia parte de todo o pacote de aventuras do Natal.
- Eu vou com
você! Não me dê ordens!
- Você fica aqui!
– Ele parou, virando-se, a expressão de apelo – Nós precisamos de você aqui
fora, Stacy.
- Ah, é? E o que
eu faço? Congelo aqui fora enquanto vocês morrem...?
- Ninguém vai
morrer! – Ele suplicou – Então, por favor, você fica aqui!
Assim deu as
costas, correndo sem se importar – momentaneamente – com as lágrimas que Stacy
desabou. Cruzou todo o espaço pelo qual havia percorrido antes – por cima.
Subiu os poucos degraus da varanda e atravessou a porta que estava escancarada.
O corrimão da escada, espatifado pelo chão, já não mostrava sinais de seu pai.
Mas Evan escutava passos e sons abafados pela casa, como uma luta fervorosa.
Ele olhou para cima, duvidoso demais sobre os sons estarem vindo de lá. Então
percorreu os poucos metros de corredor que levavam à sala de estar.
Quando chegou lá,
viu o que tanto procurava. Krampus (sob as roupas de papai Noel) segurava seu
pai pelo pescoço, pressionando o homem contra a parede, tentando-o levantar na
intenção de enforcá-lo. Talvez tivesse êxito na tarefa, caso não fosse a
persistência de Chris em estar agarrado ao seu pescoço. O ex-namorado de Stacy
estava pendurado nas costas largas e gordas de Krampus, empregando uma chave de
braço e puxando o inimigo para trás, atracado ao pescoço. Chris mantinha o
rosto de lado, afundando nos ombros do papai Noel. Mantinha uma feição quase
esverdeada, tamanho era o nojo que seus olhos transbordavam. Um cheiro forte
entorpecia suas narinas, Evan sabia o quanto o monstro fedia, mas não tinha a
real noção do quão intenso aquilo poderia ser de tão perto. Era isso o que
Chris sentia. Seus braços também passavam sobre a barba da criatura gorda, os
braços mostrando todos os músculos que fizera tanta questão de conservar
durante a vida. Era ele quem impedia a morte iminente do pai de Evan.
Quando Chris o
viu parado na entrada da sala, apenas conseguiu gritar:
- Vai atrás do
livro, porra! Não fica parado aí, vai atrás dele, caralho! Vai, vai!
Evan sequer
pestanejou, apesar do impulso de salvar a vida do pai ser maior. Mas ele tinha
algo bem mais importante a fazer, já que aquilo tiraria da morte as vidas de
mais três pessoas. Girou sobre os pés e correu tropeçando de volta à escada.
Subiu com velocidade, pulando de dois em dois degraus. Foi direto ao próprio
quarto e abriu a porta aos empurros, escancarando com os ombros. Olhou em volta,
varrendo com os olhos num ritmo frenético. Onde
estava a porcaria do livro? Correu até a escrivaninha, abriu as gavetas
fazendo com que uma delas caísse no chão e espalhasse milhares de objetos sobre
o chão. Não encontrou. Correu até o
guarda-roupa, tirou os pertences e todas as vestimentas, jogando para trás e
aumentando a bagunça. Abria as gavetas em meio aos sons abafados que a luta
causava no andar de baixo. A tensão crescia intrinsicamente com a pressa.
Revirou todas as partes do móvel e nada encontrou. Sabia que o livro estava
ali, em algum lugar. Ninguém entrara no quarto, muito menos o próprio Krampus.
Evan tinha total consciência de que o desespero era o único fator a bloquear
sua memória, uma sensação válida à de tentar lembrar qual foi o almoço do mesmo
dia e não conseguir.
Houve um
estrondo. Evan pulou para o lado, levando os olhos na direção da porta. O
barulho vinha lá de baixo, alguém gritava. A voz se assemelhava com a de Chris,
mas em meio ao desespero não havia como identificar decerto. Evan deu outra
varrida pela quarto com os olhos, deparou-se diante da cama e um estalo veio à
mente. Ele correu até a mobília e se abaixou no chão, colocando a mão esquerda
sob ela e tateando. O quarto estava escuro, mas ele conseguiu encontrar – com
certa rapidez – o que tanto procurava. Quando segurou o objeto e trouxe para
si, o coração pareceu aliviar. O livro continuava ali, igualmente assustador à
primeira vez que tinha colocado os olhos sobre ele. Era de um marrom escuro,
quase negro. A capa dura lembrava um tipo de couro estranho, mas não o era
(Evan saberia). As inscrições em letras distorcidas traziam consigo um idioma
desconhecido, lembrando um alemão antigo.
- Do fogo ao
fogo! Do fogo ao fogo! – Ele repetia, frenético.
Levantou e saiu
correndo do quarto, o livro embaixo do braço com as mãos firmes. Quando cruzou
o limiar da porta, deu de cara com a surpresa que o aguardava no topo da
escada: Krampus estava parado, ofegante e sorridente. Em umas das mãos estava
sua arma, estendida como uma espada; as duas extremidades de metal armadas,
gotejando uma quantidade relativamente grande de sangue. Evan temeu a conclusão
iminente, já que o sangue não pertencia ao demônio, mas sim a uma das duas
pessoas que antes estavam no andar de baixo: Chris e seu pai. A julgar pelo
sorriso vitorioso de papai Noel, alguém estava morto. Um dos presentes acabara
de ser empacotado.
São embrulhos demais.
- O que
acha que vai fazer com esse livro, criança?
Evan deu um passo
atrás. O monstro era enorme, tanto para cima quanto para os lados. Bloqueava
toda a passagem da escada. Naquela altura, apenas uma parte do corrimão
mantinha-se intacto, já que a metade para baixo havia se partido com o impacto
que seu pai sofrera. O garoto olhou para a parte conservada e alguns
pensamentos insanos tomavam sua mente.
- Posso fazer mil
coisas. – Ele andava para trás, utilizando o semblante de medo como blefe. Não
direcionou o olhar ao corrimão, para que Krampus não entendesse seu plano. O
garoto apenas tomava distância.
- Não seja
desobediente. Dê-me o livro e tudo ficará bem, criança. Eu prometo. O Papai Noel
promete, HoHoHoHo!
Ele continuou
caminhando para trás, até sentir a parede em suas costas. Evan estava
encurralado, enquanto Krampus sequer se mexia.
Não houve mais
conversa, pois não havia diálogos a serem tecidos. Evan era apenas um humano,
enquanto papai Noel era um demônio sanguinário com fome de mortes. O livro
parecia revelar a única vulnerabilidade do monstro, por isso talvez ele tivesse
subido até ali. Mas o que teria acontecido com os outros dois? E Stacy, ainda
estaria do lado de fora obedecendo às ordens de Evan? Só havia um meio de descobrir.
O garoto tomou
impulso e correu. Ele protegeu o livro sob o braço direito, feito um jogador de
football e oferecendo o lado esquerdo como resistência, numa espécie de escudo
humano. Não era forte, tampouco provido de imensos músculos como Chris, mas ele
faria o seu melhor, utilizando das atitudes mais ridículas que pudessem
aproximá-lo da fuga. Um breve momento de hesitação passou por sua cabeça quando
viu Krampus reagir à súbita atitude. O monstro passou a correr também, na
direção de Evan. O espaço que separava os dois era mínimo, por essa razão tudo
transcorreu rápido demais: quando o garoto notou que menos de um metro o
separava de papai Noel, conseguiu se abaixar sob o braço esquerdo do monstro -
que agarrou o ar em vão e cruzou como uma bala sobre ele. Krampus se espatifou
na parede onde Evan antes estava, mas agora não havia tanta escolha ao garoto.
Seu impulso de corrida fora rápido demais para o pouco espaço, o que o
impossibilitou de diminuir a velocidade. Ele agora estava caindo pela escada,
tentando frear e se agarrando ao livro como se fosse um passaporte para a nova
vida. Rolou escada abaixo encolhido em posição fetal, a superfície fragmentada
e gradual da escada infringindo várias partes do corpo, amassando membros e
impactando os ossos; sentiu quando o supercílio esquerdo foi cortado pela quina
de um dos degraus. Ele berrou e sentiu o corpo ser cuspido para fora na metade
da escada, exatamente onde o corrimão havia quebrado.
Evan se espatifou
no chão, causando outro estrondo. Mas em momento algum ousou soltar o livro.
Sentia o sangue descer pelo rosto devido ao corte – um novo ferimento para sua
coleção atual. Comparado à queda que o vitimara à morte, aquilo não era nada.
Ele gemeu, no entanto se esforçou para levantar, agarrou-se à parede e o fez
rapidamente. Ele recordava os filmes de terror, onde as vítimas, perseguidas
pelos monstros ou assombrações, tropeçavam e levavam tempo demais para se
recuperar. Evan não contribuiria com seu nome para aquela lista de erros
fatais. Não faria parte de tal clichê
cinematográfico. Levantou com esforço e ao recobrar o equilíbrio, deparou-se
com Chris a sua frente. Ele estava ensanguentado, também apoiando-se à parede.
Um ferimento na coxa esquerda despejava toda a quantidade de sangue, uma
perfuração cilíndrica e perfeitamente delineada através da roupa e da carne.
Olhou para o livro, atônito.
- Você conseguiu!
- Onde está meu
pai? – Foi o que Evan conseguiu responder. Caminhou ainda desorientado até
colocar-se ao lado de Chris, exatamente na entrada da sala de estar.
- O livro, seu
idiota... – Chris arquejou e um punhado de sangue saiu de sua perna. Ele se
segurou na parede e despencou no chão, fraco demais para se manter de pé. –
Queima o livro... Queima o livro...
Evan se abaixou e
ficou ao lado de dele, ignorando a ordem. Pôs o objeto no chão, ao seu lado e
tocou o ferimento, colocando as mãos em cima para estancar o fluxo. Mas aquilo
não parava e a pele clara de Chris começava a ganhar uma palidez doentia. O
nerd balançou a cabeça, aflito. Precisava ajuda-lo, mas a preocupação sobre o
quê tinha acontecido ao pai ainda o instigava a sair dali; incendiar o livro
também era prioridade. Evan era apenas um, com três cartadas a dar em uma só
jogada.
- Porra! – Chris
gritou, agarrando-o pelo colarinho – Sai daqui e toca fogo na merda do livro,
você é surdo?!
- Cala a boca! –
Evan devolveu. Com as mãos ensanguentadas retirou o próprio casaco. Segurou com
as duas mãos umas as mangas e se esforçou para rasgar o tecido. Aquilo não era
tão fácil quanto nos filmes, mas teve sucesso. Arrancou a manga e passou em
volta do ferimento de Chris. Amarrou com um nó apertado e impiedoso na parte
inferior. Pegou o livro com e ajudou Chris a se levantar com o braço direito. –
Vai lá pra fora! Stacy está lá.
- O livro,
porra... Vê se não enrola...
Os dois foram
interrompidos por uma gargalhada forte que veio do topo da escada. Quando ambos
olharam na mesma direção, viram papai Noel descendo os degraus com passos
pesados. Um godzilla gordo e avermelhado fazendo o solo tremer. Evan puxou
Chris consigo, aumentando a velocidade dos passos em direção à saída. O garoto
olhou para o lado direito na direção da sala de estar e enxergou o próprio pai
no chão, se remexendo e atordoado. Parou de andar no mesmo instante, enquanto
Chris soltava uma risada irônica e nervosa.
- Achou que eu
não conseguiria salvá-lo?
Evan olhou para
trás, Krampus já descia pela metade da escada.
- Você consegue
sair sozinho? – Afastou-se de Chris, segurando o outro pelos ombros, esperando
a confirmação.
- Deixa comigo. –
Falou entre gemidos.
Não era grande a
distância que os separavam da porta. Evan apertou o livro entre o braço,
assentindo.
- Dá o fora, ele
não vai atrás de vocês. Krampus quer a mim e ao livro.
- Pirralho
maluco...
Evan não deu
atenção. Afastou-se de Chris, dando as costas. O outro saiu da casa mancando
com toda a velocidade que conseguia com a perna ferida. Papai Noel já havia
concluído toda a descida quando Evan abaixou-se ao lado do pai e ajudou a
levantá-lo. O homem ainda fez um punhado de perguntas e bravejava aos ouvidos
do filho, dizendo-o para fugir e chamar a polícia. Mal sabia ele que as autoridades
não dariam jeito algum naquele tipo de ameaça; mal sabia ele, também, que seu
filho sentia-se confiante e preparado demais para lutar contra o demônio do
natal. Talvez estivesse assim pela oportunidade que lhe fora dado ao voltar à
vida.
Os dois
levantaram e se depararam com o velho gorducho e sanguinário bloqueando a saída
da sala.
- Por que não vai
embora daqui?! – Seu pai gritou.
- Por que
ele não pode. Ele tem algo que é meu, não pode sair sem que deixe comigo. Vamos,
vamos, criança. Não seja desob...
- Que se foda
minha desobediência! – Evan gritou de volta, sem se importar em dizer o
xingamento ao lado do pai.
- Me dê o livro,
Evan! O livro!
Ele pôs a mão no
peito do pai, obrigando a ir pra trás.
- Pai?
- O que é isso,
Evan? O que... O que é tudo isso...?
- Pai, me escuta!
– Deixou o rosto de lado, sem desgrudar os olhos de Krampus. A voz e o alerta
sérios fizeram com que o pai se calasse – Me escuta! Você vai sair de casa
assim que eu correr para a cozinha.
- O quê?! Você
ficou...
- Shhh! –
Obrigou-o a falar mais baixo – Me escuta. Eu preciso queimar esse livro, é o
único jeito de dar um fim nessa
coisa. Mas eu não tenho como fazer isso com o senhor aqui dentro ou perto dele.
Você precisa sair e ligar para a polícia. Chame a ambulância, o Chris precisa
de ajuda. Vocês têm de se afastar e ficar perto de várias pessoas, quanto mais
misturados, melhor. Preciso que faça isso, pai. Dê o fora e ajude o Chris.
- E-Ele me salvou
desse...
- Monstro. – Evan
concluiu, assentindo em relação às palavras do pai – É um monstro. Eu não estou
brincando, muito menos ele. – Mencionou Krampus com o queixo. Os olhos
continuavam fixos no demônio. – Pai, você precisa confiar em mim. O Chris
salvou a sua vida, retribua.
- Mas eu não vou
te deixar aqui...
- Ah,
claro, você não vai. Você é um presente!
Quando Krampus
gritou, sua arma foi apontada na direção do peito do pai de Evan e, pela
segunda vez naquela noite, ele arremessou com imensa destreza. O garoto parecia
estar acostumado àquilo e se jogou para o lado, agarrando o corpo do pai e
obrigando os dois a caírem no chão. Dessa vez, no entanto, Evan não teve tanta sorte
e sentiu a lâmina rasgar sua costa de uma ponta à outra. Os dois se espatifaram
pela sala – já destruída. A arma de Krampus ficou presa à parede, parecendo uma
tendência repetitiva. O livro caiu, deslizando pelo chão em direção à árvore de
natal retorcida e apagada. O pai estava deitado de frente para ele,
aterrorizado por presenciar outro ataque do papai Noel e, principalmente, pela
rápida reação do filho.
Evan gemeu no
chão. Olhou para o pai, sentindo a pele das costas aberta num traço horizontal
de sangue.
- Sai daqui! Sai!
Agora! – Gritava desesperado.
Krampus veio
correndo à toda velocidade. Mas ao invés de tentar segurar o livro, ele foi
direto ao homem. Evan agiu rapidamente, outra vez. O sangue no rosto ainda
descia, devido à queda da escada; o tiro no ombro deixava aquela área
totalmente amortecida, já que o sangramento já havia cessado; a costa ardia,
mas ele foi capaz de superar mais essa dor (recordando que sobrevivera à agonia
das chamas). Evan poderia se levantar e fazer mais um esforço, pois esse era o
seu objetivo. Ele pulou sobre o livro e o prendeu à cintura na parte de trás da
calça. Rolou pelo chão na tentativa de bloquear a passagem de papai Noel,
quando enxergou um objeto reluzente e pesado sobre o chão: o revólver de Chris.
Evan esticou as mãos, a sensação da ferida nas costas ser aberta aumentou, mas
ele se esforçou, ignorando a dor. Agarrou a arma de fogo, ainda haveria três ou
quatro balas. Rodopiou no chão, parando de barriga para cima. Colocou-se no
caminho do demônio e mirou entre os olhos dele. Ele não hesitou.
Quando a bala
saiu e atingiu a testa, o imenso papai Noel desabou para trás, fazendo todo o
chão estremecer. Evan arregalou os olhos, mas por um breve instante. Então
voltou a gritar:
- Vai, pai! Dá o fora
daqui! Agora!
Ele o obedeceu,
hesitante. Saiu correndo da casa, tomando distância do corpo do monstro.
O garoto se
arrastou pelo chão, reunindo forças para levantar. Olhava com incerteza para
Krampus que parecia totalmente desfalecido, mas com certeza tal estado seria
por pouco tempo. Ele levou a mão à cintura, garantiu a segurança do livro. Então
verificou o revólver. Nunca tinha tocado em uma arma de fogo até antes daquela
noite, também parecia estar se acostumado a isso. Conferiu a munição e contou
três balas restantes. Ele respirou fundo e trotou pela sala, tomando distância
do corpo de Krampus. Cambaleou em direção à cozinha, sempre olhando para trás.
Certificou-se que o demônio não se mexia. Chegou ao compartimento da casa e
checou os armários, fazendo a mesma bagunça do quarto. Não demorou tanto pra
encontrar os fósforos.
Procurou a lata
de álcool. A ironia maior estava em ser a cozinha de sua própria casa e nem ele
mesmo saber onde estavam as coisas mais básicas. Revirou todos os armários,
sobre e sob a pia, quando encontrou o álcool. Girou o corpo e olhou em volta,
obrigou-se a correr. Passou pelo corredor eufórico. Em uma das mãos segurava o
revólver, na outra segurava os fósforos e o líquido inflamável. Atravessou se
arrastando nas paredes quando perdia o equilibro. Outra vez foi obrigado a
cruzar pela entrada da sala de estar, onde viu o maldito monstro natalino se
levantando. A bala sequer estourara seus miolos. Evan ignorou a imagem e
aumentou os passos. Passou pela porta da frente e enxergou seu pai gritando
eufórico no celular, provavelmente pedindo ajuda. Chris estava sentado na
calçada, a perna estancada, mas ainda deixando-o desorientado devido à perda de
sangue. Stacy estava o seu lado – todos juntos e agrupados, dando segurança uns
aos outros. Quando ela o viu, seus olhos brilharam; seu pai deu outro berro,
suplicando por ajuda imediata. Evan pulou os degraus da varanda e superou toda
a extensão que levava à calçada.
O garoto não
perdeu tempo fazendo perguntas ou tecendo diálogos. Trocou o livro pelo
revólver, prendendo a arma na cintura. Segurou o livro e teve um rápido momento
de reflexão. Finalmente estava terminado. A vida de duas pessoas (Mike e Kate),
pagas em função daquela brincadeirinha de mal gosto, enfim seriam justiçadas.
Evan trincou os dentes e jogou o livro na neve acumulada. Não hesitou ao abrir
a lata e espremer o líquido para fora, molhando a capa e o conteúdo do livro.
Despejou toda a quantidade existente na lata e a jogou fora, com determinação
inflamando-o os olhos. Chris e Stacy observaram a cena, igualmente vitoriosos,
sabendo que aquele seria um fim definitivo dado ao pesadelo que vinham
sofrendo.
Para Evan o
significado era bem mais profundo. Ninguém jamais viria a entender o tamanho de
sua culpa, mas o que mais o perturbava eram as lembranças de todos os
pesadelos. O cheiro vívido do sangue que inebriava seu nariz; os gritos de
terror e a visão das inúmeras mortes. O encontro com o menino também estava
incluindo em tais memórias, bem como o castigo e sacrifício das chamas. Por
mais que tal noite viesse a ser lembrada com temor por seu pai, Chris e Stacy,
para Evan, teria um significado bem maior, que jamais seria compreendido.
Talvez fosse sua punição ter de carregar o peso das lembranças ruins e da
sensação da morte atormentando-o todas as noites pelos próximos anos de sua
vida; assim como a sensação concreta do fogo, fazendo-o entender o real
significado da vida. Ele acendeu o fósforo e viu a pequena quantidade de fogo
acender a ponta avermelhada do palito. A identificação pessoal de Evan era
intensa, pois conhecia o fogo melhor do que ninguém, e agora, seu amigo papai
Noel deveria sentir o mesmo.
Krampus cruzou a
porta com a arma colorida de sangue na mão direita. Ele berrou, mostrando sua
fúria. Todos ali se assustaram, com exceção de Evan, que trocou um olhar
iminente com o demônio. Papai Noel perdeu a voz quando viu a minúscula forma de
calor com o garoto. Esticou a mão para tentar impedir de fazê-lo aquilo, mas já
era tarde. O monstro berrou suplicante, uma vez mais. Evan jogou o fósforo.
Quando a
combustão iniciou, queimando a capa e encolhendo as folhas, todos os olhares
presentes – exceto do monstro – se iluminaram com chamas que iam além das
físicas. Uma fagulha crescente de esperança ganhava vida em seus peitos. Mesmo
o pai de Chris que não sabia o porquê de incendiar o livro, também se entregava
ao clima congênito do momento. O fogo crescia e crepitava nas páginas, soltando
fracos estalos, como se queimasse a mais pura das madeiras. O gelo ao redor
derretia e deslizava pela calçada, caindo na vala e se perdendo no caminho de
esgoto mais próximo. Já Evan mordia os lábios, com os punhos fechados ele
encarava o livro. Observou as folhas se converterem em pequenos pedaços de brasa,
misturando-se à neve que caía. O fogo era mais forte, naquele momento. Nada
poderia vencê-lo.
O garoto olhou
para Krampus. O monstro continuava parado, de braço esticado, perplexo com a
cena. Pouco a pouco o fogo consumia o livro, juntamente com o feitiço que dera
início àquele pesadelo de natal. Ele queimou, incendiou, exatamente como quando
tinha levado Evan de volta à vida. Os segundos se arrastaram, todos olhavam
esperançosos e apreensivos.
Dez segundos.
Vinte. Trinta segundos. Quarenta e cinco. Um minuto.
Chris abriu a
boca, fraco e pálido. Suas mãos tremiam. Olhou para Evan e engoliu em seco.
- E-Evan...
Evan... Pirralho maluco...
O pai do garoto e
Stacy estavam igualmente assustados.
O fogo havia
consumido todo o livro, reduzindo-o a um amontado de brasa.
Evan soltou a
caixa de fósforos, deixando-os se espalharem pelo chão frio. Seus olhos fitavam
a criatura em pé na porta de sua casa. Era um homem gordo e alto, vestindo
roupas vermelhas e portando uma barba longa e encardida que escondia um
grisalho branco feito a neve. Seu nome era Krampus, mais conhecido como Papai
Noel. E mais importante que isso:
- Eu sei... – O
garoto respondeu com a voz fraca – Ele
ainda está vivo.
Chris atirou-se
sobre os fósforos. Pegou três ou quatro deles e acendeu na lateral da caixa. Os
palitos brilharam, ele os lançou no livro já queimado, mas as chamas não
cresceram. O monstro continuava ali, de pé, soltando uma risadinha gutural e
sádica, divertindo-se com o teatrinho desfarelado que aquelas crianças faziam.
Nada o deteria. Outro livro poderia ser escrito em uma nova língua e com o
mesmo feitiço que, na próxima temporada, seria recitado por uma nova criança
carente e desiludida. Evan não era o primeiro, tampouco seria o último. O
próprio Krampus dar-se-ia ao trabalho de talhar um novo livro confeccionado com
a carcaça de um dos tantos embrulhos que guardava para si. Na próxima estação e
no próximo natal, o ritual se repetiria. Às vezes isso não acontecia e o
feitiço caía no esquecimento por anos, levando Krampus a uma existência de
tédio e desprovida de sangue, mas cedo ou tarde uma criança fervorosa sempre
fazia o pedido. Era isso o que movimentava a tradição cristã do Natal. Era isso o que alimentava o demônio.
- Não pode ser,
não pode ser! Isso é impossível...
Chris se
arrastava sobre a neve enquanto Evan e seu pai tentavam puxá-lo. Stacy outra
vez entrara em um estado perplexo para fazer qualquer coisa. Krampus começou a
andar com um ar vitorioso, divertindo-se demais com o plano falho daquelas
pessoas. É claro que a risada escondia apenas a irritação por ver sua criança
obediente descumprir o acordo ao tentar por fim – com fogo – nos pedidos que
fizera. Aquilo era um compromisso do qual humano algum havia escapado, durante
toda a existência do demônio. Não seria Evan a primeira criança a se dar bem na
tentativa de voltar atrás. Pessoalmente, Papai Noel estava demasiadamente
decepcionado com aquele garoto – que antes lhe parecia tão admirável e
disciplinado. Agora, no entanto, ele mereceria todo o castigo por ter queimado
o pequeno e disfarçado pacto. Seja lá o que tivera ocorrido para voltar à vida,
Krampus se esforçaria para levar o garoto aos campos obscuros da morte; além
disso, colocaria todos que se aproximassem em seus sacos de couro. Quando a
comemoração pelo nascimento da criança sagrada terminasse, o demônio
abandonaria outro livro pelo mundo, permitindo que suas promessas fossem
disseminadas através dos anos terrenos que estariam por vir. Enquanto
aguardasse por novos pedidos, estaria se divertindo com suas novas crianças –
infringindo seus corpos, degustando de seus órgãos, rompendo suas inocências e
bebendo do sangue.
- Levanta! – Evan
puxou o outro pelo braço com a ajuda do pai.
- Eu chamei
ajuda, eles já devem estar chegando.
- Não! Nós temos
que sair daqui!
- Não!
Evan assistiu
Krampus se aproximar demais. Chris ainda resistia no chão, seu pai já desistia
da ideia e o puxava pela camisa, obrigando-o a deixar o garoto com a perna
ferida ali. Mas o nerd não fugiria, não mais. Puxou o revólver da cintura e
apontou na direção da cabeça do papai Noel. Afastou-se de forma grosseira do
pai, tomando distância de Chris e de Stacy. Krampus ficou parado, observava o
cano do revólver. Ainda continuava a sorrir.
- É a mim que
você quer. Deixo-os fora disso.
- Não é mais
um pedido que eu possa atender, sinto muito, criança. Eles fazem parte do menú que
a mim foi requisitado, todos os três. Você não ser uma criança sincera, mas eu
sou o Papai Noel, e como tal, cumpro com minhas promessas, hohohoho.
- E quem disse
que foi um pedido? – Evan balbuciou com as mãos tremendo.
A insulta foi o
estopim para o bom velhinho que inclinou-se em uma posição de ataque e avançou
na direção de Chris. Agarrou o garoto pela perna machucada e o levantou no ar,
arremessando-o para o lado. O rapaz parecia um fantoche inanimado nas mãos de
Krampus, indo parar num amontoado de neve. Por sorte sua queda foi amortecida,
mas não menos aliviada. Ele saiu rolando como uma bolinha de neve trotando de
um desfiladeiro; girou de diversas formas, arrastando o rosto pela superfície
gelada. Quando o corpo finalmente entrou em inércia, com a barriga para cima,
Chris segurou a perna e sentiu que ela não estava mais no lugar – não
literalmente, já que havia deslocado bem na altura do fêmur. Foi quando começou
a berrar e cuspir palavrões entre as lágrimas de dor.
Um “hohohoho”
novamente ecoou pelo ambiente. Evan apertou as mãos entre o revólver, mas ambos
sabiam – tanto agressor quanto vítima – que o disparo não teria efeito algum.
Krampus aproveitou-se da oportunidade para ameaçar um salto sobre o pai de
Evan, mas quando dobrou os joelhos para fazê-lo, foi interrompido por uma
sonoridade irritante que anunciou-se a uma quadra dali. Ele olhou naquela
direção e se deteve quando as sirenes o impediram de atacar outra vez. Então
caminhou para trás, mantendo-se na defensiva. Evan seguiu o olhar de Krampus e
enxergou luzes azuis e vermelhas piscando ao fundo da rua e da noite deserta. Chris
permanecia gritando, berrando a mais profunda dor – garotos como ele não
conheciam o real significado de resistência e sacrifício, o que levou Evan a
pensar se ele aguentaria queimar na fogueira da vida.
O demônio fez uso
da arma outra vez, cortando o ar horizontalmente na altura da cabeça de Evan em
uma jogada de baseball sangrenta, na qual Strikes não eram permitidos – quantas tentativas de acabar com a raça
daquela criança já tinham falhado, em uma só noite? Evan foi mais esperto e
seus reflexos instantaneamente acionados. As duas pontas de metal na
extremidade cilíndrica passaram a poucos centímetros da bochecha do nerd, ele
cambaleou para trás e apoiou as costas no carro.
- Chega de
brincadeiras! Estou farto e você vai pagar pela desobediência. Você é o próximo,
Evan! Eu vou te castigar!
Aos ouvidos de
Evan, as palavras eram extremamente cafonas, mas igualmente perigosas e
amedrontadoras. Respirou forte e ofegante com imensas lufadas de vapor
escapando entre os lábios, a arma tremendo e ousando disparar outro tiro. Sentiu
o veículo ganhar vida e o motor cortar o som das palavras de Krampus. Quando o
garoto olhou em volta, não encontrou Stacy, dando-se conta de que fora ela quem
acabava de dar partida no carro. Também procurou o pai e ele ainda estava ao
seu lado, perplexo e sem reações aparentes. As luzes vermelhas juntamente com
as sirenes se aproximaram. Pela primeira vez naquela noite, Evan pôde enxergar
um traço de dúvida nos olhos de Krampus, como se medisse quais as ações mais
sensatas – ou psicopatas – a serem tomadas.
A ambulância
dobrou a rua e todos olharam para o veículo. O garoto deu um empurrão no pai e
apontou na direção de Chris.
- Fica com ele,
pai! Acompanhe-o até o hospital e, eu
estou implorando, não fique sozinho!
Esteja sempre perto de alguém, quanto mais pessoas em um lugar, menores
serão as chances de Krampus aparecer!
A buzina do carro
berrou, ecoando por toda a rua. O monstro observava ao diálogo, bufando e
acuado pelo som das sirenes, lembrando um gato assustado. O garoto olhou para o
veículo e enxergou Stacy acenando com desespero. Ela persistia pressionando a
buzina. Krampus levou as mãos aos ouvidos e deu alguns passos para trás,
atordoado pelo agudo som do carro e pelos gritos da ambulância.
- Mas e você,
Evan? – O pai insistiu na pergunta.
- Entra no carro!
– A menina implorou.
- O que você vai
fazer?! – Continuou.
- Não fuja,
criança! É uma ordem! Não fuja!
- Pelo amor de
Deus, entra na merda desse carro agora!
Evan também
estava atordoado, olhando para diversas as direções. Continuou apontando na
direção de Chris e deu outro empurrão no próprio pai, fazendo tropeçar sobre a
neve.
- Me obedece,
pai! Vai, vai! Agora!
A ambulância
chegou mais perto, já diminuindo a velocidade. Evan viu o pai correr sobre a
neve totalmente relutante, olhava para trás com a dor de deixar o único filho
para trás, mas certo de que era a única coisa a se fazer. Aquela era a primeira
vez que coisas tão grandes eram confiadas ao garoto, foi aí que ele se deu
conta disso. As pessoas ao seu redor pareciam acreditar nele com uma fé
desmedida e kamikaze.
Vendo o pai
obedecendo suas súplicas, Evan não hesitou em abrir a porta do carona e pular
para dentro do carro. Stacy arrancou no mesmo instante, cantando pneus sobre o
asfalto ligeiramente congelado. Evan abaixou o vidro e pôs a cabeça para fora,
olhando a cena de terror que Stacy e ele acabavam de abandonar. Mesmo com o
carro ganhando distância, ele pôde ver a ambulância estacionar barulhenta
diante de sua casa com alguns paramédicos descendo e correndo em direção ao seu
pai e a Chris. Ironicamente, alguns vizinhos começavam a mostrar os rostos,
saindo das portas e casas, curiosos em saber qual a razão de tanta confusão –
eles nunca estavam presentes quando realmente se precisava. Ele pôde respirar
aliviado, enfim por saber que uma parte do terror havia chegado ao fim. A
atitude que o demônio assumiu lhe soou estranha, mas totalmente benéfica: o
berrar das sirenes chamava a atenção, o que parecia incomodá-lo. Logo Evan
concluiu o quanto mesmo um monstro apreciava discrição. Caso estivesse ao redor
de muitas pessoas, Krampus não poderia agir. Talvez dependesse de certo número
de curiosos, o que fez lembrar que ele não se incomodara em matar Mike na
frente de sua família. “Eram poucas
pessoas comparadas à quantidade de vizinhos, curiosos, paramédicos e policiais
que tomariam o lugar”, se pensasse assim, Evan poderia tranquilizar-se
mais, pois as vidas de Chris e de seu pai já estavam salvas. Agora só falta
mais uma: Stacy.
Uma sombra gorda
e grande insistia acompanhá-los ao longo da rua, atravessando os jardins de
casas e arrebentando tudo o que havia pelo caminho (caixas de correio, enfeites
de natal, bonecos de neve, pequenas cercas e algumas varandas). Movia-se com
destreza e habilidade, sustentando nas mãos um objeto longo e mortal; era um
borrão avermelhado contrastando na neve branca. Deixava para trás um rastro bem
fraco de sangue, vindo de todos os ataques que fizera até então. Evan trincou
os dentes e voltou para dentro do carro, segurando-se firme enquanto Stacy
pisava no acelerador, rompendo todos os limites de velocidade e desenhando
curvas fechadas e perigosas. Em dados momentos ela subia as calçadas, também
destruindo uma porção de coisas à frente e esparramando latas de lixo pelos
gramados cheios de neve e pelo meio da rua. Evan fechou a janela. Gemeu ao
sentir o corte nas costas, mal se lembrava dos ferimentos, como se a dor física
fosse apenas um empecilho irrelevante.
- Ele está atrás
de nós, não é? – Ela perguntou nervosa e com os olhos escuros vidrados à
frente.
O garoto não
respondeu.
- Ele está atrás
de nós?? – Berrou, exigindo uma resposta.
Outra vez, Evan
não respondeu para impedir que o nervosismo da garota aumentasse. Do jeito que
ela dirigia, ele começava a temer por uma morte através de acidente ao invés
das mãos de Krampus. O carro derrapou novamente pelo asfalto, entrou em uma
curva e seguiu em linha reta.
- Por Deus! Você
sabe dirigir?!
Ela o olhou e
finalmente abriu um sorriso divertido, parecendo a Stacy livre de demônios
antigos que ele sempre conheceu. A expressão se desfez rapidamente e ela voltou
ao desespero de antes, mostrando-se confusa e abalada por rir em uma situação
daquelas.
- Estou fazendo o
meu melhor, droga! – Gritou.
Evan olhou pelo
retrovisor ao seu lado, já não conseguindo avistar sinais de Krampus. Olhou
para o revólver em sua mão e sentiu um peso deveras esmagador. Não era correto
uma pessoa como ele utilizar determinado tipo de arma, mesmo que isso
protegesse a vida das pessoas que estavam perto, na atual situação. Stacy
percebeu o devaneio do garoto, já se tranquilizando. Também olhou pelo espelho
retrovisor e nada viu.
- O que vamos
fazer? – Forçou a voz para obrigar a trazê-lo de volta dos amargos pensamentos.
Isso servia para ela também.
- Eu não sei. –
Ele suspirou, abalado por uma coisa que pareceu incomodá-lo naquela pergunta –
Você não deveria vir comigo, nem ficar perto de mim. Por que não dirige até o
hospital e fica em segurança, também?
- Como você pode
saber disso? – Questionou, a voz embargada e trêmula – Como pode concluir que
seu pai e Chris estarão a salvo?
- É só um palpite
forte. Você viu a reação dele. –
Olhou pelo retrovisor novamente – Krampus não se atreveria a...
- Que porra,
Evan?! – Ela o cortou, olhando-o com indignação – Você está falando como Chris.
Com a mesma certeza que o fogo dele “queima tudo”. Não adiantou tanto, não
foi?! Seu lindo papai Noel ainda está vivo. Sabe-se lá se podemos matá-lo. Eu
só quero que você tivesse um pouco menos de calma! – Ela enxugou uma lágrima
com as costas das mãos.
- Desculpe...
- Cala a boca. –
Exigiu, evitando olhar para o garoto – Eu juro que você morreu. Juro que o vi
morrer e depois...
“Seja lá o que tenha acontecido, você voltou
assim: confiante e determinado, totalmente indiferente”, Evan completou
mentalmente, já que Stacy não conseguiu terminar. O abalo da memória era imenso
demais para fazê-la concluir a frase. Ele não mencionara o fato de toda sua
viagem onírica e estava decidido a não compartilhar com ninguém, mas era verdade
que o modo como deveria tratar as coisas mudara desde sua “volta”. Havia um
Evan antes e depois daquelas visões: o primeiro sempre estivera fugindo, de
certo modo; o segundo desejava correr a um fim solucionável, onde mais sangue
não seria derramado.
- Você tocou fogo
na merda do livro e nada aconteceu! – Ela continuou, dirigindo em meio às ruas
quase desertas e esbranquiçadas.
Do fogo ao fogo.
- Talvez... – Ele
colocou uma mão na cabeça como alguém que tenta aliviar uma enxaqueca – Talvez Chris
não estivesse errado.
Abriu um olhar
claro, um tanto entusiasmado. As ideias começaram a se juntar na cabeça num
plano muito fácil e simples, clareando as soluções postas à sua frente. Quem
sabe o plano de ataque desde o começo estivesse certo, mas apenas fora
executado no lugar e no alvo errado? Chris poderia ser um amontoado de músculos
e um crápula humano, mas naquela noite de véspera de Natal, ele conseguira sua
redenção de forma impecável. A ideia do fogo, inicialmente, partira dele, e
mais tarde todo seu sacrifício foi o que salvou o pai de Evan. Sejam as quase
póstumas visões do garoto reais ou não, havia um sentido muito explicativo por
trás dela, como se seu subconsciente estivesse falando diretamente por trás da
imagem de uma antiga vítima de Krampus. A sugestão de Chris talvez fosse o
elemento que fizera surgir a solução entregue pelo menino ruivo, assim servindo
de catalisador para as conclusões óbvias: o
fogo queima tudo, incendiar o livro significava apenas eliminar o feitiço e não
o executor dos pedidos.
- Do que você tá
falando? – Ela fez uma curva, rodando pela cidade mantendo o carro sempre em
movimento. Já havia reduzido a velocidade.
Era uma chance
que deveria ser testada. Ele não entraria em detalhes sobre como concluíra tal
hipótese.
- Eu queimei
apenas o livro, o que significa que consegui dar fim apenas na história contada
e no feitiço que... eu sei lá, no
feitiço que invocou Krampus. Stacy, eu queimei apenas o livro e as palavras das
quais ele trazia consigo. Mas eu já havia pronunciado e já havia feito os
pedidos.
- Ele disse que
você não poderia fugir e nem desfazer o que desejou. – Ela pareceu entender, mesmo
com um semblante duvidoso. – Mas o que isso significa?
- Significa que
há uma chance de...
Evan não
finalizou as palavras.
Um forte impacto
acometeu o veículo, fazendo com que Stacy gritasse devido ao susto. O carro
derrapou para a direita, subindo a calçada e depois seguindo a um cruzamento. O
semáforo estava fechado para a passagem deles, mas por sorte pareciam ser os
únicos a dirigir por ali. Ironia ou não, a cidade estava estranhamente deserta
naquela noite. O veículo atravessou a encruzilhada de asfalto, derrapando e
rodopiando como um peão de criança. Os dois seguravam onde podiam; a garota
gritava desesperada, sem muita experiência diante do volante. Também não sabia
o que causara o impacto, mas as batidas ressoavam através do automóvel.
Quando o carro
finalmente parou, atravessado horizontalmente na travessa – agora de frente
para a rua que antes cortava o cruzamento do qual Stacy dirigia -, os impactos
se intensificaram. Os dois ainda se recuperavam do susto ao perceberam que os
estrondos fortes vinham da parte superior do veículo, havendo alguém lá em cima
que pisoteava a lataria na intenção de perfurá-la com os golpes.
- Acelera!
Acelera! – Evan gritou, apontando para frente.
Stacy não hesitou
e enfiou os dois pés no acelerador, arrastando o atrito dos pneus pela
superfície gelada da pista. Os sons ecoavam por onde passavam – tanto pneus
cantando quanto o ataque do bom velhinho -, provavelmente chamando a atenção de
famílias que aguardavam em suas casas a chegada do natal. O carro cruzava ruas
e cruzamentos feito uma bala, o que provavelmente não daria tempo às pessoas de
ver o que realmente acontecia. Mas Evan imaginava uma cena muito transparente
em sua cabeça: um papai Noel grande e bizarro sobre o carro, batendo sua arma
feito um martelo de 100 kg. Os impactos continuavam. Tanto ele como Stacy deslizaram
nos bancos, diminuindo seus corpos e mantendo as cabeças abaixo do nível
normal. A lataria começava a ser amassada para o lado de dentro, as batidas
frenéticas tinham um ritmo intenso. Krampus não cansaria até romper o metal e
puxar a primeira pessoa que a abertura permitisse.
O caminho
começava a afunilar diante de Stacy e um canteiro central se aproximava. Atrás
dele, um conjunto de árvores desnudas de folhas e compensada com enfeites e
brilhos, piscavam e dançavam através da escuridão noturna; a neve que caía do
céu, também atingida pelas luzes, pareciam confetes coloridos agitando uma
festa macabra com poucos convidados. A entrada de um estacionamento se abria
por onde a rua afunilava, havia também um caminho que cortava horizontalmente o
término do canteiro central, indicando que eles acabavam de chegar ao fim da
rua e, pior que isso, que a curva era fechada e estreita demais. Evan arregalou
os olhos. Não tinham outra escolha a não ser passar direto pela entrada do
estacionamento – o espaço à frente era todo cercado por um muro alto, com
exceção da abertura livre. Ali ficava o bosque denso da cidade.
- Ah meu Deus! –
Stacy gritou. O desespero começando a subir por suas mãos trêmulas. O carro
ziguezagueava pela rua, mostrando a indecisão da garota sobre seguir pelo
estacionamento a céu aberto ou fazer a curva que, provavelmente, os faria
capotar ou se chocar direto contra o muro alto do bosque.
Não havia outra
saída a julgar pela velocidade do carro.
- Vai direto! –
Evan gritou.
Aquela era a
única saída. Stacy controlou o volante e passou pela entrada.
O espaço aberto
era extenso, oferecendo vagas – de ambos os lados – para no mínimo cinquenta
carros. O muro circundava todo o bosque que, além de agir como entretenimento
na cidade, também sustentava a responsabilidade como uma área de preservação
ambiental, já que ali não era uma capital grande ou importante. As vagas dos
carros distribuíam-se em linha reta – uma à frente da entrada dos diversos
caminhos através do bosque e a outra sob os mantos da sombra do muro. No final
do amplo espaço, uma construção servia como o ponto de monitoramento central
dos guardas e da administração, além de manter uma enfermaria e um mapa do
bosque. Depois do pequeno prédio, apenas a imensidão de árvores retorcidas e
nuas obscureciam o ambiente. Ele era o ponto final e provavelmente não havia
ninguém de serviço àquela noite. Sem pessoas por perto, Krampus estaria livre
para atacar e completaria seu sonho de Natal. Evan praguejou por não dirigir o
carro, graças a Stacy os dois acabaram de parar num ambiente desprovido de
vidas ou testemunhas. Entraram
literalmente na arena do demônio.
O carro passou
pelo estacionamento em direção ao prédio. A garota não precisou de ordens para
pisar no freio, apesar de estarem no mínimo duzentos metros distantes da
construção. O veículo deslizou por algum tempo antes de parar bem no centro, os
dois passageiros com olhos arregalados e ofegantes. As batidas continuaram no
teto do carro até que uma abertura foi feita. Evan olhou para cima e enxergou
uma mão deformada – gorda e com garras afiadas – rasgar a lataria e puxá-la
como folha de papel. Stacy entrou em desespero e bruscamente engatou a ré,
fazendo com que Krampus rolasse para frente e se segurasse sobre o capô. Agora
os dois encaravam um rosto três vezes mais assustador, sob uma pele acinzentada
– ou talvez fosse apenas a noite escura. Os olhos pareciam mais vermelhos, a
gosma preta caía através dos vapores de ar que saíam pela boca e pelo nariz. A
arma estava presa à cintura pelo cinto, lembrando a espada assassina de um
samurai gordo e pervertido. Enquanto a garota gritava e dirigia o carro (ela
sequer olhava para trás, já estava de olhos fechados para não ter de encarar o
monstro), papai Noel cravava uma das mãos sobre a lateral do veículo para
segurar o próprio corpo e a outra para socar a vidraça. O punho fechado descia
com força, formando um círculo no vidro e ramificando pequenas e crescentes
rachaduras através do centro dos golpes. Evan assistia a tudo sem saber o que
fazer. As marteladas com a mão ficavam mais intensas, a vidraça já embaçava e
não resistiria por tanto tempo.
- Meu Deus! –
Stacy acelerava, guiando o carro de ré em direção ao muro.
O garoto olhou
para trás e espantou-se quando viu a barreira de tijolos se aproximar. Foi
quando não teve outra escolha a não ser puxar o freio de mão e obrigar o carro
a parar outra vez, agora mais estupidamente que antes. Krampus foi jogado para
frente, mas conseguiu se segurar a ponto de não ser projetado em direção ao chão.
Ele olhou para os dois passageiros do carro e cravou a outra mão sobre a
lataria, arrastou os pés e ignorou a vidraça quase totalmente destruída,
voltando rapidamente para cima, engatinhando como uma aranha gorda e ligeira.
Com o veículo inerte, outro ataque começou: papai Noel projetava o braço para o
interior do carro pela abertura que havia feito. Sua mão suja e monstruosa
agarrou o rosto de Stacy, encaixando perfeitamente a ponto de abafar seus
gritos; puxou-a para cima, ela se debateu e agarrou o braço dele na vã
tentativa de liberdade. A abertura feita cabia apenas o braço do monstro, mas
ele tentava puxá-la mesmo assim, e a obrigaria a passar pelo buraco, espremida
e esmagada - Evan não quis imaginar a cena. A única coisa que oferecia
resistência diante do ataque do demônio era o fato do corpo da garota estar
preso ao cinto de segurança, o que a impedia de ser puxada para cima
violentamente. Por outro lado, as tentativas não deixavam de ser menos macabras:
Stacy ainda esperneava com os pés sem sucesso tentando alcançar o pedal do
acelerador.
Evan então puxou
o revólver e encostou o cano da arma na altura da abertura, pressionando-o
contra o ombro do demônio. Ele girou o rosto de lado para se proteger e fez o
disparo. Uma rajada de sangue inundou o interior do veículo e o monstro
despejou um grito que ecoou por toda a noite de inverno. O aperto sobre o rosto
da garota se desfez e ele retirou o braço, gemendo de dor e surpreendido pelo
ataque, embora permanecesse sobre o carro. Stacy arquejava, procurando oxigênio
para os pulmões e extasiada pelo odor que a palma da mão de Krampus continha. O
garoto desprendeu o cinto de segurava que prendia seu corpo e o de Stacy a
tempo de ver a mão de Krampus – agora a esquerda – projetar-se novamente
através da abertura. Assim, ele se abaixou e obrigou Stacy a fazer o mesmo,
esticou o braço e abriu a porta que ficava ao lado dela.
- Sai do carro! –
Ele falou fraco e abafado, de modo que apenas ela escutasse.
- Eu não posso,
eu...
Evan não
aguentaria mais teimosias que pusessem a vida dela em risco, afinal ele estava
lutando para recompor as falhas adolescentes e infantis que havia cometido ao
ler aquele livro e invocar o demônio do natal. Foi quando desistiu da ideia de
tentar convencê-la com palavras e a empurrou para fora, fazendo com que Stacy
caísse de lado sobre o chão. A atitude foi um tanto quanto bruta, mas
totalmente necessária. Ela o olhou confusa e perplexa, sem entender os planos
dele.
Papai Noel ouviu
o som abafado de um corpo caindo e viu Stacy sobre o chão. Seja lá qual fosse o
plano do nerd, tinha acabado de proporcionar outra vítima ao monstro. Quando o
demônio decidiu desistir do ataque e puxar a mão de volta, Evan saltou sobre o
banco do motorista e agarrou-se a ele, envolvendo todo o corpo ao braço da
criatura. Os dois tentaram lutar: Krampus puxava o próprio braço e o garoto
empregava todo o peso do corpo para impedi-lo. Nos segundos que a lutava
progrediu, Stacy se afastou, arrastando-se encolhida pelo chão, abismada pela
cena que assistia. A porta continuava aberta, Evan viu a garota distante e
aparentemente segura. Engoliu em seco e fechou os olhos, manteve o braço do
monstro preso a si com o lado esquerdo do corpo, desfez o freio de mão e
engatou a primeira marcha com a mão direita, dando movimento ao carro. Manteve
o veículo em linha reta sem encostar-se ao volante, pisando fundo no acelerador
e forçando Krampus a permanecer preso pela abertura que ele mesmo fizera.
Evan agora sentia
o fedor que a criatura exalava. Cheirava a carne podre, sangue e banheiro de
restaurante à beira de estrada. Manteve-se firme, prendendo a respiração ao
máximo, sentindo o vento frio entrar pela porta que logo se fechou
automaticamente devido ao movimento progressivo do veículo. Ele ganhou
velocidade, alcançando os 30 km/h. Krampus debatia-se, tentando dobrar o braço
e usando o cotovelo para golpear o garoto. Mas a luta seguiu frenética, nenhum
dos lados se dava por vencido. Evan passou a segunda marcha e, ao enxergar a
proximidade do prédio à frente do carro, usou a mão livre para novamente passar
o cinto de segurança em volta do corpo. Ao prendê-lo, sentiu-se fadado a fazer
um segundo sacrifício àquela noite: não pela sua própria vida, como atirar-se
ao fogo; o que estava prestes a fazer, agora, era pelo bem de todas as pessoas
a quem tinha causado aquele problema, como uma forma de perdão aos que haviam
sobrevivido e redenção aos que perderam a vida – Mike e Kate.
O carro
ultrapassou os 60 km/h quando Evan decidiu que era hora de soltá-lo. Mas o
plano agora definia-se perfeitamente em sua cabeça: o garoto tirou o pé do acelerador
e pisou no freio, ao fazê-lo, também soltou o braço de Krampus. O monstro foi
jogado para frente devido à parada e deslizou sobre o capô. Estavam a
pouquíssimos metros da parede de concreto do pequeno prédio, quando o motorista
voltou a pressionar com todo o ímpeto o pedal do acelerador. Papai Noel
deslizou sobre a lataria do motor tentando agarrar-se com as unhas, conseguiu
prendê-las sobre o capô, de modo que suas pernas foram sugadas e arrastadas
para baixo. Manteve-se firme, gritando e praguejando o garoto. Quando o veículo
ganhou velocidade suficiente, Evan tirou as mãos do volante e protegeu o rosto.
Veio o impacto.
A força do choque
fez com que a frente do veículo fosse esmagada contra o prédio. A velocidade
não foi grande a ponto de fazê-lo atravessar a parede, de modo que ao bater, a
traseira do automóvel subiu alguns metros acima e depois desabou sobre o chão.
O som do impacto ecoou pelo bosque duas vezes mais forte que os gritos de
Krampus ecoaram há poucos segundos, ao levar um tiro no braço. O para-brisa –
antes já danificado – se espatifou instantaneamente, espirrando fragmentos
sobre o rosto de Evan e pelos antebraços que usava como proteção. O airbag foi
ativado, aliviando a violência. Na realidade, o motor do carro, no momento do
choque, funcionou como uma sanfona, absorvendo grande parte da força. E, claro,
havia Ele, o monstro que tentara se segurar: Papai Noel foi totalmente esmagado
da cintura para baixo, já que seu tronco estivera o tempo todo sobre o capô.
Stacy observou à
cena sem acreditar no que seus olhos viam. Levantou-se atordoada, reunindo
forças nas pernas e no peito para continuar. Tudo o que enxergava era a carcaça
de um carro colidido à parede, inteiramente imprensado e destruído. Uma fina
fumaça saía do motor; alguns pneus retorcidos continuavam a girar, perdendo
pouco a pouco a rotação enquanto o silêncio da noite voltava a afogar os
personagens do acidente. Stacy balbuciava o nome de Evan como uma oração,
implorando a Deus que ele estivesse vivo. Ainda não conseguia entender o motivo
de tal sacrifício e o porquê ele parecera determinado demais a por um fim
naquilo, mesmo que sua vida fosse oferecida como moeda de troca. Aproximou-se
lentamente, cruzando em estado de choque todo o espaço do estacionamento que o
carro atravessou. O que mais a afligia era a ausência de qualquer ruído;
qualquer gemido seria o suficiente, desde que fosse Evan a sinalizar um sopro
de vida. Caminhou, arrastou-se. Quanto mais próximo chegava, mais o desespero
ganhava forças. Por duas vezes ela julgara tê-lo perdido naquela tão fatídica e
estranha véspera de Natal: primeiro fora o tiro de Chris e depois... Depois
fora o modo como aterrissou no chão, após o golpe do monstro.
De repente, o
pedido da garota pareceu ser atendido: houve um gemido, seguido de algum palavrão
fraco.
Evan abriu os
olhos, sentindo dores por todo o corpo. O pescoço doía, precisando de massagem
por no mínimo um mês inteiro. Ele conseguiu mexer os braços, começando os
movimentos pela ponta dos dedos. Estavam caídos e necessitou erguê-los para
retirar o airbag da cara. As articulações queimavam, embora o corpo estivesse
adormecido e dolorido ao mesmo tempo. Sentia que a pele dos braços também ardia
em vários pontos diferentes, sentindo frágeis filetes de sangue escorrendo dos
pequenos e diversos cortes. Pestanejou
por alguns segundos, tentando recobrar a visão embaçada. O para-brisa não
estava mais lá, apenas uma imensa abertura separava a cabine do motorista do
capô onde Papai Noel estava de bruços com o rosto pra baixo. O demônio sequer
se mexia, também imprensado contra a parede. Evan duvidava se aquilo poderia
dar fim na criatura. Decidiu então soltar o cinto de seguranças – sim, as
propagandas eram sinceras quando diziam que o equipamento poderia salvar vidas
-, deixou a cabeça descansada no apoio do banco e respirou fundo, mal
acreditando na insanidade de seus atos.
- Evan?
Ele virou para
olhar na direção da voz. Stacy estava a poucos metros dali, olhando-o
incrédula.
O garoto sorriu e
abriu os lábios para responder, quando tentou fazê-lo, uma imensa mão
precipitou-se sobre a lateral direita de seu rosto e rasgou-o com as afiadas
unhas, desenhando riscos da testa até o maxilar. Apesar de não tão profundos, a
pele se desfez e deu lugar a quatro rastros progressivos e crescentes de
sangue. Evan berrou e levou as mãos ao rosto, sentindo-as ensanguentadas. Stacy
deu um pulo pra trás, igualmente aterrorizada. Krampus voltou a se debater,
movendo apenas a cabeça e os braços como um animal descontrolado, também
gritava e ousava outros ataques, mas Evan esticou as costas para longe das mãos
da criatura, ficando protegido por apenas três ou cinco centímetros. Ainda
segurando o rosto martirizado, ele procurou o regulador do assento e forçou o
corpo para trás, fazendo com que o banco se afastasse das investidas do
demônio. Papai Noel não conseguia se esticar além da posição que estava, apenas
o para-choque e a parede do prédio eram os elementos que o mantinham ali. De
sua garganta saía um chiado estranho, quase animalesco, os olhos se intensificavam
no vermelho e da boca um ar moribundo era exalado. Evan, totalmente desesperado
sem saber se era o sangue que prejudicava a visão direita ou se o olho havia
pulado fora. Sentia a ardência na pele e os cortes salientes em alto relevo. O
sangue não era tão intenso como o corte no supercílio ou a bala no ombro, mas o
fato de ter a face desfigurada e ter sido cegado pelas garras do demônio o
afligia a níveis dantescos. Enxugou o sangue e sentiu o coração se tranquilizar
– um pouco – ao notar que conseguia enxergar. Olhou paras os lados, tentando se
esquivar dos ataques mais fervorosos e deu de cara com o revólver de Chris,
cintilante e um pouco abaixo do banco do carona.
Stacy começou a
gritar para que Evan saísse o quanto antes dali e arriscou se aproximar, mas
por ordens do garoto, ela voltou. O veículo balançava devido às movimentações
de Krampus e o bom velhinho agora não parecia tão bom assim: roupas rasgadas,
pele dos braços à mostra, exibindo uma tonalidade anômala e acinzentada,
totalmente enrugada e cheia de feridas e cicatrizes; decerto o rosto se
deformava a cada segundo, como se a imagem humana fosse apenas uma máscara
física para esconder sua verdadeira forma; os cabelos encardidos e grisalhos
estavam maiores, bem como a barba; os dentes afiados e pontiagudos trincavam
com um som agudo, lembrando trituradores de lixo metálico dentro de fábricas.
Viu quando Evan esticou-se sobre o banco do carona, tentou esticar as mãos, mas
não obteve êxito. Foi aí que o monstro pareceu se lembrar da arma presa à
cintura. Retirou a bengala e com um movimento rápido de mão ativou as duas
lâminas na ponta. Esticou-se para cravar um dos lados na costa de Evan, mas foi
interrompido pelo grito de aviso da garota, que fez garoto se virar no mesmo
segundo. Antes que Krampus pudesse açoitá-lo com a bengala, Evan já tinha
girado sobre o banco e apontou o revólver em sua direção. Atingiu-o com um tiro
que passou raspando a lateral do rosto, próximo ao olho esquerdo, massacrando
também parte da orelha. O monstro ainda sentia dor, desistindo do ataque e
recolhendo a mão com a arma. Esperneou com outro grito, Evan estava ofegante,
sem acreditar no que acabara de fazer.
Aproveitando o
momento de dor da criatura, ele saiu pelo lado da porta mais próxima,
jogando-se ao chão. Pelas contas, havia somente um tiro. Arrastou-se para longe
do carro, inalou um cheiro forte deslizando pelo solo gélido, notando que a
gasolina caía no chão com um gotejar contínuo e crescente. As pernas fracas
vacilavam nas tentativas em se manter de pé. Pouco a pouco, ganhou distância do
carro e do papai Noel. Stacy correu até ele e ajoelhou, pondo as mãos no seu
rosto, sem saber como reagir diante de tamanha brutalidade. Mas o garoto nerd
não choramingou ou reclamou, fitou-a com um olhar de alívio e sorriu.
Krampus
continuava gritando, tentando empurrar o carro e sair dali.
- Eu preciso de
ajuda... – Sussurrou com a voz fraca.
- Não, não, não!
Você fica aqui. Vamos chamar a polícia!
- Não vai
adiantar, pelo menos não esse tipo de
ajuda. – Apoiou-se nos ombros dela e se levantou. Pôs-se de pé com dificuldade,
sem saber como ainda conseguia ficar vivo. – Me deixa, por favor.
Foi o pedido mais sincero às vésperas de Natal.
Stacy percebeu
então que não poderia impedi-lo. Ela esteve fugindo a noite toda, enquanto ele
fizera exatamente o contrário. Via em seus olhos verdes uma responsabilidade
latente em resolver o que tinha começado. Desde o momento em que se submetera
ao ridículo ao tentar avisar Chris e Mike; desde o momento em que contara a ela
toda sua história maluca sobre pesadelos e profecias (o modo como descrevera
perfeitamente o dia em que Stacy descobrira em qual vagina Chris andava
enfiando o pau); o jeito que se sacrificara, levantando da queda, superando um
tiro e todos aqueles ferimentos adversos. Se precisava morrer fazendo aquilo,
Stacy percebeu que Evan iria até o fim. Por esse motivo ela apenas assentiu e o
viu caminhar de volta ao carro, dando a volta pelo outro lado.
Ele parou ao lado
do motor, Krampus movendo a bengala como uma espada amadora, já não tendo toda
a habilidade de antes, lembrando um fracassado implorando para vencer e
descrente da própria derrota. O garoto olhou o revólver entre as mãos, pôs o
tambor para fora e confirmou a contagem de balas: apenas uma. Suspirou e
encarou o demônio. A partir daí, a atitude que tomou surpreendeu até mesmo o
monstro: guardou a arma na cintura e subiu sobre o carro, esquivando-se das
tentativas de ataque falhas do demônio. Como papai Noel estava de peito para
baixo, não conseguia mover o pescoço ou os braços para tentar um ataque, o
máximo que pôde fazer foi continuar se debatendo, descrente sobre a submissão
que sofria perante sua mais desobediente
criança. Evan respirou fundo, mantendo as pernas afastadas e entre elas, o
tronco gordo e largo de Krampus. Ele inclinou as costas para baixo com
dificuldades, sentindo dores agudas em umas cinco regiões e, num rápido mover
de mãos, tomou a bengala sem que o próprio papai Noel esperasse ou resistisse.
Pela primeira – e
última - vez, o nerd segurava aquela arma que tanto estivera em seus pesadelos
como uma tormenta sem fim. Sustentou o objeto, totalmente vislumbrado com a
demanda de força que emanava para seu corpo. Seus olhos poderiam ter brilhado
e, por uma fração de segundos, a ganância pelo poder supremo e sobrenatural
talvez tivesse cruzado seu caráter e infectado de forma fatal. No entanto, Evan
nutria dentro de si um compromisso, selado desde que seu corpo físico e sua
alma intangível foram, juntos, engolidos pelo fogo. A justiça por todas as centenas
de pessoas que fizeram seus pedidos antes dele, agora estava em suas mãos, bem
como a vingança por todos os “presentes” que foram parar naqueles sacos
imundos. Relembrou quando o rosto indiferente do menino ruivo ganhou um traço
de vida.
Girou as mãos
através do prolongamento da arma, movendo em direções diferentes e para lados
internos (a mão direita para o lado esquerdo e a mão esquerda para o lado
direito). A arma trincou e os dois metais na extremidade sumiram, voltando para
o interior da bengala. O funcionamento era simples e nada de sobrenatural havia
nisso. Krampus ouviu o som das lâminas e se debateu. Ainda enrolou um dos
braços em um dos pés de Evan, mas o garoto não perdeu o controle, tampouco
sentiu-se ameaçado. Ergueu a arma cilíndrica e moveu as mãos no sentido
contrário, fazendo com que as lâminas se revelassem novamente. Ele sorriu com o
canto dos lábios. Girou uma vez mais e fez que elas se escondessem, Papai Noel
então se debateu pela última vez. O garoto desceu a bengala com força,
enfiando-a pelas costas de Krampus e sentindo-a ultrapassar algum órgão de
funcionamento vital; o sangue começou a transbordar, o demônio pronunciava
palavras desconexas, tentando movimentar os braços e se afogando no próprio
sangue e dor. Mas não estava terminado: ele tinha a arma entre as mãos,
sentindo a palpitação do órgão ecoar pela extremidade da bengala. Suas lâminas
estavam guardadas.
Evan disse
entredentes, determinado:
- Feliz Natal, Papai Noel!
Ele girou as mãos
no sentido aberto, acionando os dois metais e fazendo com que eles saltassem
para fora. Quando o barulho metálico – que se assemelhava ao impacto de uma
espada na outra – ecoou abafado dentro do corpo de Krampus, Evan sentiu que
algo ali dentro havia estourado, rasgando – ao que parecia – o coração do
demônio de dentro para fora. A criatura suspirou mais profundamente e parou de
se debater.
O nerd retirou as
mãos da arma, respirando fundo. A bengala estava cravada de pé e fixa no corpo
do demônio. Quando deu por si, Stacy o olhava não com uma expressão de terror,
mas de orgulho – porque se ela fosse inflamada pelo sentimento de coragem e
estivesse em seu lugar, faria a mesma coisa. Ela sorriu para ele, agora
realmente crédula de que o pesadelo tinha chegado ao fim. Ela se aproximou e
estendeu a mão, ajudando-o a descer do capô. Os dois se afastaram do carro, o
garoto se sustentando nos ombros dela.
Evan então parou.
Algo ainda o incomodava.
- O que foi? –
Perguntou confusa, temendo pela expressão perdida pairando no rosto do rapaz.
Ele a olhou
fundo, mas distante demais do mundo em que habitavam. Ao voltar à realidade, virou
de costas, obrigando-a a fazer o mesmo. Ficaram diante do carro. Evan enxergou
um líquido crescente derramado sob as rodas traseiras. Retirou o revólver da
cintura e engatilhou, mirando naquela direção.
- “Do fogo ao fogo”.
Atirou.
A bala riscou o
chão e acendeu o líquido inflamável, dando vida às chamas que teriam um
significado diferente na vida daquele garoto a partir dali. O fogo cresceu e
ganhou volume. Os dois adolescentes se afastaram o suficiente para ter assento
vip diante do espetáculo. Sentaram-se no chão, próximos ao muro, assistiram de
longe as chamas consumirem o carro e, consequentemente, o corpo de Krampus.
Daquela vez o monstro não reagiu, tampouco pareceu incomodado com o calor. Aos
poucos o cheiro de carne queimada infestou o ambiente, mas já não parecia tão
incômodo assim. A bengala derreteu pouco a pouco, caindo de lado quando o
cadáver do monstro já havia fritado. Três explosões seguiram, espalhando
faíscas dançantes que se misturavam à neve que caía do céu escuro. Logo, aquilo
mais parecia uma lembrança a Evan: pela primeira vez na vida, ele soube que nem
sempre a dor ou agonia são coisas ruins; de vez em quando, são elas que o
acordam e o relembram que ainda há motivos para viver. A dor significava vida.
- Eu espero que o
seguro cubra isso. – Ele comentou, fraco e sorridente, ao ouvido de Stacy.
A garota sorriu
tranquila e divertida. Aconchegou-se ao corpo dele, tentando mantê-lo aquecido.
Ao longe, os sons
de sirenes já rompiam o limiar de suas audições, sinalizando que não ficariam
tanto tempo ali e que logo estariam em um hospital, comemorando o fato de
permanecerem vivos em pleno Natal.
Stacy suspirou
fundo, olhando-o com dúvida.
- Evan?
- Sim?
Ela pestanejou,
mas prosseguiu:
- O quê
exatamente você pediu quando leu aquele livro?
Ele fechou os
olhos, embaraçado por ter de responder àquilo.
- Achei que já
tivesse ficado claro.
- Mais ou menos.
– Continuava a fitá-lo – Mas quero ouvir claramente de você. Diz.
- Isso é uma
ordem? – Reabriu os olhos, ironizando.
- Não. É o meu pedido.
O garoto
suspirou, dando de ombros e sentindo a dor do tiro; o arder do corte na costa,
os arranhões pelo rosto, mais o ferimento no supercílio. Como ainda estou vivo?!
- Eu pedi... –
Ele começou a fitá-la, sabendo que era o mínimo que devia a ela, agora – Eu
pedi você. Pedi você como presente de Natal.
Ela o encarou
sério.
- E por isso olha
o que aconteceu!
- Eu sei.
Desculpa...
Stacy começou a
rir, divertindo-se com a cara de culpado que ele assumiu.
- Bem... – Ela
concluiu, aproximando e pareando o rosto ao dele, aproximou seus lábios. Sentiram
a respiração um do outro aquecendo o que sobrara do frio cortante daquele
natal. – No final, acho que deu tudo certo: você ganhou o seu presente. Feliz Natal, Evan.
Eles não sabiam,
mas o último minuto do dia vinte e quatro de dezembro acabara de terminar.
Era meia noite, era natal.
Os dois se
beijaram.
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