Foi num final de setembro ou num início de outubro de uma
vida há muito distante. Foi uma prova profundamente temida de uma alma
profundamente amedrontadora – cabelos curtos, loiros e cinzentos pela idade,
roupas bem postas e classe evidente. Ela sempre dizia que possuía anos de
experiência, décadas de sala de aula, e por isso não permitiria leviandades
como celulares durante a aula ou preguiça para a leitura de seus textos tão
severamente indicados. Poucas vezes sorria, e quando o fazia, era de uma
indiferença tamanha, pois ao final de rápida piada, você saberia: não haveria
nenhum tipo de empatia para com o público. Até as brincadeiras eram contidas e
extremamente profissionais – tão logo você estaria de volta ao seu lugar,
sentado naquela cadeira para absorver a análise sistematizada de um Mallarmé ou
de um Baudelaire.
Voltando à prova, aquela época foi uma estranha época de
provações que certamente não foram vencidas. Foram, aliás, magistralmente
fracassadas. Para a primeira prova, naquele final de setembro ou início de
outubro, alguém certamente mergulhou em todos os textos teóricos e poemas
analisados, durante um, dois, três ou vários dias inteiros de um curto final de
semana. Alguém certamente mergulhou com vigor, porque a honra e a sorte naquela
época não andavam muito claras ou tão isentas de culpa. Tudo o que havia de ser
feito, esse alguém o fez. E era certo de que conseguiria – como bem sempre
conseguira até então, apesar da elementar preguiça e desleixado desdém por tudo
o mais.
Aquela alma profundamente amedrontadora distribuiu as
provas. E das duas questões longas e discursivamente muito bem elaboradas que exigiu,
ambas eram especificamente pautadas em um texto teórico que aquele alguém
sequer sabia que existia. Falha épica, dano fatal. Maldita desgraça. Aquele
alguém riu, riu porque se fosse culpa certificada, ele aceitaria; riu porque
fizera de tudo para entender tantas análises de Mallarmé, de Baudalaire ou de
quaisquer outros simbolistas que ali foram cobrados – um Augusto dos Anjos,
talvez? Esse alguém nem mais lembra. Não lembra sequer do teórico específico
pela questão cobrada.
Lembra-se, contudo, da sensação: do silêncio na sala de
aula, do lugar onde estivera sentado (o segundo ou talvez o primeiro da fila).
Lembra-se de não poder fazer nada, embora muito soubesse sobre dos Anjos, de
Mallarmé e de Baudalaire conforme suas próprias análises ou conforme as
análises de todos os outros que houvera lido, exceto daquele específico que nem
mais lembra o nome. Lembra-se igualmente dos olhos indiferentes e carrascos
daquela alma profundamente amedrontadora como se soubessem de antemão sua
ineficácia e despreparo, como se fosse um inútil, como se sempre fosse um
desastre naquele que foi, em dois anos, seu primeiro tropeço na Literatura.
Nada podia fazer a não ser devolvê-la em branco, sem justificativas, sem choramingos, era de um destino hilário e de uma má sorte cômica. Antes de selar a piada e de nunca mais voltar àquelas aulas pelos próximos mais de dois anos, escreveu uma lauda inteira
no borrão de sua folha com a única alternativa que lhe restou, com a única
saída que lhe veio à mente. Ali nasceu Jordana, baseada nas manchinhas dos
ombros de alguma outra professora de alguma outra literatura de alguma outra
portuguesa por quem tanto estivera encantado na época. Jordana nasceu dos
devaneios aleatórios sobre uma mulher academicamente inteligente a quem
tanto admirava. Jordana fora uma invenção de sua alma meio desleixadamente sem
amor naquela época: criou-a do nada, inventou-a do nada e deu a ela uma vida
que transcendeu por muito tempo as páginas que teceu ao longo de meses à
frente. Pouco a pouco além daquelas linhas, Jordana ganhou morada nas ruas da Campina,
e Jordana ganhou as manchinhas dos ombros graças a descendência do pai, o velho marinheiro pilantra, que o adorava como quase-genro, e da risada estrambólica e deliciosa da
quase-sogra, professora e recitadora de Drummond, que igualmente o adorava não-se-sabe-o-porquê. Jordana ganhou
idade, ganhou apreço pela arquitetura e Jordana ganhou também até uma origem
real de pedagoga, que no fundo não era tão real assim (porque ao contrário do
que todos os que pousam nestas linhas imaginam, pouco ou nada daqui é real).
Eis o segredo.
Diga que até as coisas mais realisticamente inventadas têm
um cerne na realidade aqui fora. Dê uma origem falsa e chame-a de verdadeira,
chame-a de verdadeira nas entrelinhas, nos mais imperfeitos e sutis detalhes.
Engane o público e ele terá a certeza de que indiretamente suas invenções
possuem um pé na sua tão banal e tão monótona realidade. Engane o público até
mesmo quando ele julga que estaria você em uma época de aventuras profanas e
dores conturbadas.
Engane o público até a próxima vez quando, anos e anos
depois, esse alguém encontrar novamente aquela alma profundamente amedrontadora. Aquela mesma alma profundamente amedrontadora
que continuará com suas roupas bem postas, com seus cabelos loiros de um cinzento
da idade, com suas mais de quatro décadas de sala de aula e sua infinidade de
romances brasileiros e de seus incontáveis textos teóricos a respeito dessas
obras. Encontre-a de novo (e com a agradável certeza e comprovação de que ela
não lembra de sua passagem durante aquela vida tão desastrosa e passada). Pois
esta é a segunda primeira-chance desse alguém, e por sorte, a última primeira-segunda.
Desta vez, talvez esse alguém possua seus calos – um no
calcanhar feito por um Mário de Andrade ou uma leve escoriação feita por outras
leituras não-findadas de um Dalcídio ou de um Machado. Mas calos suportáveis,
calos que tão logo passarão, diferente daqueles calos que o tomavam o corpo
naquele ano distante (calos que não o permitiram seguir em frente; calos que
mais tarde corroeram suas retinas e até impediram-no, neurologicamente, de
andar).
Mas todos os calos passam.
Todos os calos, quando necessários para uma próxima jornada, haverão de passar.
Ganhe aquela alma profundamente amedrontadora por causa de um
texto, em seguida de outro e depois de outro. E esse alguém perceberá que até a
mais amedrontadora das almas temidas supera seus calos, revelando-se uma novalguém como qualquer outra, longe dos
mantos pelos quais era coberta através das histórias alheias. E esse alguém
perceberá nela uma alma, tantas e tantas décadas depois, ainda encantada pelas
prosas e poesias, não só por Mallarmé, Baudalaire ou dos Anjos, mas pelas
tensões criadas pelos Barretos, pelos Euclides, pelas Clarices, pelos Machados
e pelas mágicas tecidas por um Guimarães Rosa. E esse alguém receberá um sutil
elogio aqui e um sutil elogio ali daquela outrora alma profundamente
amedrontadora.
– Não fizeste porque é perfeccionismo teu, não é?
Talvez seja essa a pergunta retórica que mais ficará na
mente desse alguém, ao vir seguida de uma voz leve, pacífica, permeada de
segundas chances.
Pelos tantos anos que virão à frente, talvez seja isso que
fique. Pelos tantos anos que virão à frente, depois que todos os maiores e
menores calos tiverem passado, talvez seja isso.
Porque a escrita dá voltas – tem ela suas fases ruins e
boas, mas todas igualmente reveladores em seu potencial criativo. Naquela
época, por delírio criativo ou por pura carência, foi Jordana e sua jornada
regada a pura ficção.
E Jordana veio e partiu – como um calo.
Hoje, foi um alento.
Alento de saber que fases ruins vêm, porém são superadas
com uma excelência que não importa estar colocada em um sistema ou em uma
tabela num pedaço de papel. O que vale, de verdade, é a excelência pessoal
diante de todos aqueles calos vencidos.
E eles foram.
E eles serão.
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