Red From Christmas, Capítulo II, Here Comes Santa Claus
A
arma ainda estava firmemente posta na mão direita de Stacy. Um fraco zumbido
saía dela, indicando que estava ligada e poderia ser usada a qualquer momento.
No entanto, isso não assustava Evan de forma alguma, já que no fundo ele sabia
que a garota nutria uma pequena disposição para ouvir o que ele tinha a dizer e,
caso este não fosse o caso, a distância que estavam daria tempo suficiente para
ele fugir.
Eu não sou um louco, afinal.
Estavam
em silêncio, ele perdurava há longos
minutos. Os olhos de Stacy não paravam, pulavam de um canto ao outro enquanto
repassava cada palavra de Evan por sua cabeça. Ele a tinha dito cada detalhe
sobre os pesadelos que tivera nos dias anteriores, ela conseguia ver – sem
explicação aparente, como uma ligação existente entre os dois capaz de fazê-la
enxergar através dos olhos dele – tudo o que havia narrado com perfeição: cada
gota de sangue esparramada no chão, todos os três corpos ceifados e a sala de
estar da casa dele, com o indivíduo diante de Evan como uma sentença iminente
de morte.
Alheio
a isso, o fato de estar intrinsecamente ligada a Evan a assustava bastante.
Chegou a cogitar se aquilo apenas não era fruto do afeto que mantinha por ele,
pela admiração e identificação. Talvez fosse isso que não a fez correr e que
afastava o medo que deveria sentir por toda a história, mantendo-a ali, diante
dele, ouvindo a tudo com espanto e incredulidade – mesmo que o bom senso fosse
teimoso para ficar por muito tempo, pois havia grande parte da garota que ansiava
em acreditar nele. No mais, Stacy apenas lutava contra a própria razão e a
ideia em admitir que o garoto pelo qual - tinha quase certeza – sentia-se
atraída, estava afogado em uma loucura fantasiosa que o levara a um extremo
preocupante.
“Um monstro, entrando pela chaminé de sua
casa e atacando um membro de sua família e outras duas pessoas que você tanto
odeia, trazendo-lhe um “presente” vivo e misterioso, dentro de um saco de couro...”. Tudo o que restava era uma análise
de Evan, sobre a consequência de sentimentos reprimidos contra pessoas que o
atormentam de formas físicas e/ou psicológicas.
-
Stacy. Você... – Evan quebrou o silêncio, embora sua voz delatasse toda a
grandiosidade da hesitação que havia nele.
Ela
não respondeu. Apenas sinalizou com mais ênfase para que ele parasse, usando a
mão que estava livre. Seus olhos atormentados e confusos o fitavam com
intensidade, com uma espécie de terror e medo.
Ela
suspirou fundo e o fitou com clemência.
-
Evan... São apenas pesadelos. Eu sei que são perturbadores. Por Deus! Até eu
mesma fiquei assustada com tudo isso, por que você não ficaria? Eu te entendo, e
muito perfeitamente. Mas você precisa enxergar a verdade: são apenas pesadelos,
pesadelos horrorosos e persistentes, muito provavelmente foram causados pelo livro
que você leu. Não precisa ficar tão conturbado assim, se você passar a enxergar
que foram apenas pesadelos e nada mais que isso, então...
-
Não. – Ele a interrompeu num tom fraco.
Evan
estava convencido do contrário, disso ela não poderia duvidar. A calma com que
ele falou, o jeito como a olhava – atordoado, com medo e aparentemente racional,
o que contrastava com a essência das palavras. Stacy percebia que ainda havia o
garoto que ela sempre conheceu por trás daqueles olhos. Toda a essência
verdadeira e sinceridade ainda estavam ali, totalmente vivas sob a aparente
loucura que o tomava.
Ela
ficava cada vez mais confusa sobre o quê acreditar. Desejava do fundo de toda a
sua alma confiar em cada palavra proferida por aquele Evan que tanto a fazia
bem. Por isso utilizava o pouco de razão que lhe restava para tentar
convencê-la do contrário.
-
Stacy...
-
Hum?
-
Lembra quando mencionei que os pesadelos eram meio que... Proféticos?
-
Também quer que eu acredite que Deus anda conversando com você por e-mails?
Ela
riu. Stacy ficava linda sob aquelas sobrancelhas grossas e olhos penetrantes. Demasiadamente linda.
O
Evan que ela conhecia ainda estava ali. E sem um motivo definido, ele também
sorriu.
-
Desculpe. – Ela disse. – O que você iria dizer sobre esses tais pesadelos
proféticos?
-
Eu acho que não comecei direito com você.
-
Como assim?
-
Eu não comecei desde o início ou como e nem o porquê desses pesadelos terem
começado.
Ela
ergueu as sobrancelhas.
-
Quer dizer agora que tudo isso teve um motivo?
-
Aham. – respondeu derrotado.
Stacy
balançou a cabeça como alguém que tenta se recuperar de um tombo. Pareceu
cogitar por alguns segundos sabe-se lá o quê, apertou um botão da arma que a
fez zumbir mais forte e encaminhou-se até a cama, sentando-se na beira dela.
Posicionou a arma com a mão esticada na direção de Evan e fitou-o mais
profundamente.
Ele
notou um traço de confiança nos olhos da garota e sentiu uma pequena faísca de
alegria surgir, já que ela parecia realmente dar um voto de confiança.
-
Muito bem, Evan... Se você quer a minha ajuda, minha confiança e também impedir
a suposta “morte” de algumas pessoas, sugiro que comece a contar essa história
desde o início. Você precisa de mim? – Levantou os ombros e os deixou cair,
fatídica e irônica – Ótimo! Porque eu preciso confiar em você – apontou a arma
na direção dele, determinada -, caso não queira levar algumas centenas volts bem no meio do peito. Vai, começa.
Ele
assentiu, desanimado.
- Eu tinha acabado de receber a
nota do teste de matemática: um “D” bem grande, rabiscado em vermelho parecendo
sangue - às vezes acho que o Sr. Kevinson faz isso de propósito. Não que os
outros dias também não tenham sido uma merda, mas aquele em especial, foi ainda
pior. Algumas horas antes, Chris me encontrou no banheiro. Você já sabe o que rolou: algumas sessões de pancadaria gratuita.
Não que eu também não esteja acostumado, mas tudo coincidiu de rolar em uma só
manhã. Tive que voltar para casa com a nota entalada na garganta e dores pelo
corpo. Mal esperei o sinal tocar pra sair da sala correndo; precisei ignorar as
várias propostas que meu pai fez de me buscar, mas eu não queria aquilo. Por
alguma razão, tudo o que poderia me acalmar seriam algumas horas sozinho e
longe de todo aquele maldito pesadelo que se repetia todos os santos dias.
Voltei a pé, e sinceramente acho que contornei alguns quarteirões e alonguei o
caminho de volta, tudo para que Chris e Mike não me vissem por aí. Tive sorte –
poucas vezes isso me acontece. Cheguei em casa e sequer olhei na cara da minha
mãe, nada pessoal, sabe? Só não
queria ter de encará-la e dizer que o dia tinha sido ótimo ou admitir meu
frequente bom desempenho em matemática.
“Juro que tentei
dormir, porque fechar os olhos fingir que nada acontecia sempre é a melhor
opção; não ter a responsabilidade de sair da cama ou acordar: eu precisava
disso, pregar os olhos e tentar sonhar. Mas
a sorte já não estava comigo. Talvez não tenha colocado merda alguma no
estômago nesse dia, como se a falta de sono também tivesse se transformado na
falta de fome. Revirei pela cama. Pensei e gastei meus neurônios. Essa é a pior
das atividades, sabia? Pensar demais
nunca é benéfico, vai por mim. Mas não importava o que eu pensava, os passos
da minha cabeça só tomavam um rumo. Eram como a porra de replays sobre tudo que acontecera naquele dia. Lembrava do teste e
de como poderia resolver aquelas contas que mais pareciam um dialeto antigo –
aliás, porque aquela merda é sempre tão fácil aos professores? E acima de tudo,
eu repassava a surra que levara de Chris, imaginando milhares de maneiras de
ter escapado ou revidado. – Ele suspirou, reunindo ar para continuar falando.
Lembrava desse dia em específico com extremo realismo, os sentimentos pareciam
voltar a tomá-lo. Sorriu em direção à ela e sorriu, derrotado – Não me julgue
por isso, palavras otimista podem funcionar com muitos, menos comigo. É um saco
ficar assim e... Sei lá”.
-
Relaxa. – Ela respondeu. A voz era compreensiva e demonstrava sinais de
admiração. Talvez o entendesse naquele sentido – Eu posso ignorar seu lado
depressivo, não é algo que eu repudie tanto. Confie em mim.
-
Err... O-Obrigado.
-
Só continua.
- Eu queria mudar aquilo. Quantas
vezes você já se olhou no espelho e tentou mudar o que vê? Mas não o lado de
fora, e sim o de dentro. – Respirou fundo e chegou a rir, irônico. Reassumiu um
novo tom, deixando a auto piedade para trás – Desisti da fracassada ideia de
dormir. Sentei na frente do computador e fiquei longas horas sem fazer nada,
com os pensamentos ainda em mente quando encontrei o livro.
-
Este livro? – Ela perguntou desdenhosa, apontando na direção do livro que
estava sobre a cama.
-
Sim, esse livro. – Evan assentiu. – O site era confiável e o título do livro me
chamou a atenção. Olha só pra isso. – Indicou com o queixo, apontando para o
livro. Por um tempo os dois analisaram o objeto: era uma coisa feia e bruta,
sem o menor traço de delicadeza ou refinação. Era grosso em função da textura e
grossura das páginas amareladas, fedia a mofo e mais alguma coisa desagradável.
Havia apenas um título estranho (em outro idioma), sem menções a autores ou
editoras - Qual é, Stacy, vai me dizer que de vez em quando você não se sente
atraída por um lance misterioso e bizarro?
-
É. Tem razão. A propósito, ainda estou aqui diante de você, não é? – Pestanejou
e sorriu, embora houvesse um medo escondido atrás da boa aparência.
Evan,
porém, não entendeu o que ela quis dizer com aquilo e ignorou com relutância após
ela gesticular para que continuasse.
-
O.K. Resolvi comprar o livro. E dois dias depois ele chegou. Imediatamente eu o
li, e preciso lhe confessar: a história é fantástica. Quero dizer, apesar de
passar de uma lenda de um folclore sensacional, eu não podia deixar de ler aquilo,
era irrefutavelmente interessante e envolvente, e contrastava totalmente com
tudo o que acreditamos hoje em dia. Mas, como tudo tem seu lado negativo, esse
livro também tem o seu: os últimos capítulos eram patéticos demais para se
acreditar. Era como um livro de receitas que lhe ensina a fórmula secreta de
cura contra o câncer com apenas duas pitadas de pimenta em um copo com água.
Patético! Quem acreditaria? Chegava a ser hilário. Eu fechei o livro, tamanha
era a idiotice e o larguei em um canto qualquer.
“No entanto... Resolvei
pegá-lo de volta para dar uma olhada nos últimos capítulos, outra vez.. Por
favor, Stacy, entenda que eu não fiz aquilo porque simplesmente estava
acreditando, mas o fiz por uma simples atitude de desprezo e sarcasmo pela vida”.
-
Espera um pouco. – Ela o interrompeu e esticou o outro braço para segurar o
livro. Ela passou os olhos sobre a capa dele com certo medo e repulsa,
abrindo-o imediatamente para se livrar daquela imagem.
Evan
mordeu os lábios ao perceber que ela o folheou rapidamente pelo início e diminui
a velocidade ao chegar ao final. Nesse momento, passou a observar as últimas
páginas do livro com mais atenção, de modo que esqueceu que havia uma arma na
outra mão e o porquê dela estar lá. Ele sabia que se precisasse fazer alguma
coisa para impedi-la, retirar a arma de sua mão ou sair correndo pela porta,
aquele seria o instante perfeito. Mas essas não eram suas intenções e ele
queria que Stacy soubesse da verdade, e faria tudo o que estivesse num nível
aceitável e correto para que aquilo acontecesse.
O
resultado não foi exatamente o que Evan queria, embora ele já estivesse ciente
disso.
Stacy
movia os olhos incredulamente, havia também em seu rosto um traço forte de
desprezo. Era como um crítico renomado que assistia a um filme idiota. Ela
segurou o livro com força, exatamente onde sabia que Evan havia mencionado e o
ergueu para ele.
Ele
sacudiu os ombros, um certo desconcerto era notório em seu rosto, mas não
deixou de assentir sobre o livro. Era exatamente ali, exatamente naquela página
que Stacy o mostrava, onde ele havia feito o que dera início a todos os seus
pesadelos.
Evan
tentou se explicar, mas Stacy o mandou parar e colocou o livro de volta sobre a
cama. Estava visivelmente irritada com tudo aquilo, principalmente pelo fato de
que ele tentara explicar toda aquela bobagem com uma bobagem maior ainda.
Aquilo a estava dando nos nervos, já que se sentia uma idiota por tentar
acreditar em toda aquela maldita história fantasiosa que apenas crianças
poderiam cair.
-
O.K. Quer que eu acredite, agora, que você fez uma cartinha, endereçou para o
fim do mundo e fez seu pedido tão aclamado? Hein?
Evan
coçou o cabelo e balançou a cabeça intensa e negativamente. Pareceu bufar de um
jeito fraco.
-
Qual é? Acha que eu estava acreditando em uma coisa dessas? Eu acabei de falar
que essa era a parte idiota do livro.
-
Mas você não achou tão idiota nesse seu estado “depressivo e revoltado”, não é?
-
É claro que achei, Stacy. É claro que achei.
-
Eu não posso acreditar que você ainda esteja insistindo nisso tudo, Evan. Eu
vou embora, e espero que você se cuide.
-
Stacy! – Ele gritou. E, de súbito, Stacy ficou petrificada. – Eu quero que você
me escute, me deixa terminar pelo menos de contar a porcaria de toda essa
história “louca e fantasiosa”?
Ela
não respondeu, apenas assentiu, ainda chocada com o grito.
-
Eu vou resumir. – Ele lançou um sorriso agradecido, irônico e meio impaciente.
– Como eu ia dizendo, eu nunca acreditei nessas coisas do livro. Mas naquele
dia... Eu não sei o que me deu. Resolvi abrir no último capítulo e tentei agir
de um jeito arrogante. Ou melhor, eu agi de um jeito arrogante. Agora, isso
pouco importa. O fato é que lendo cada palavra que tem aí, fiz tudo o que livro
e pedi o que eu mais desejava. Mas... Droga! Eu acho que pedi demais, e tudo o
que pedi realmente parece estar prestes a se realizar.
-
Vai se ferrar, Evan! Vai se ferrar!
Dito
isso, Stacy levantou num salto rápido e inesperado da cama, e correu porta à
fora. Evan não pensou duas vezes antes de segui-la no mesmo ritmo de corrida, e
não teve tantas dificuldades para alcançá-la antes que pudesse chegar ao topo
da escada. Ele a agarrou pela cintura, erguendo-a do chão de modo que Stacy
passou a espernear em todas as direções. Evan hesitou em segurá-la com mais
firmeza quando percebeu que ela se lembrou da arma que tinha na mãos, e girou o
corpo, jogando-a com todo o cuidado possível no chão. Stacy ainda tentou
golpeá-lo com a arma, mas ela passou a poucos centímetros do rosto de Evan
antes de ser arremessada contra a parede e se espatifar no exato momento em que
ali bateu.
Evan
deu alguns passos para trás, assustado com tudo aquilo e quase perdeu o
equilíbrio no topo da escada, precisando se segurar no corrimão para impedir a
própria queda. Ele respirava ofegante – mais pelo susto do que por outra coisa
-, e estava visivelmente mais abalado do que Stacy, que engatinhou para o canto
da parede e ficou o observando com um medo irreparável.
Tentando
se recuperar do susto, ele caminhou cautelosamente na frente dela e sentou com
as pernas cruzadas. As mãos sinalizavam que nada iria fazer. Evan puxou
oxigênio e falou:
-
Aquela merda é real, Stacy. A porcaria daquele livro é real. Droga, eu sei o
quanto parece idiota, mas a comparação é perfeita: um livro misterioso, que
ensina como você pode conseguir o que quer apenas pronunciando palavras de uma
língua desconhecida. E eu fiz, é claro que nunca acreditei nessa baboseira, mas
fiz por pura diversão. Eu pedi exatamente tudo
o que mais desejo, e no dia seguinte... BANG! Começo a ter esses malditos
pesadelos. Eu não deveria acreditar nisso, eram apenas pesadelos, é lógico! Eu
não me espantei no início. Eram apenas pesadelos, certo? Mas eles começaram a
se tornar mais do que reais.
-
Sai de perto de mim... – A voz trêmula e falha começava a anunciar um choro
inevitável.
Evan
não se deu por vencido. Estava determinado a continuar.
-
Comecei a ter sonhos proféticos. Sei lá, um lance muito parecido com
premonições, sabe? Tipo Final Destination.
– Ele passou as costas da mão pela testa suada. Soltou uma risadinha
desprezível, deixando claro o quanto estava sendo patético. – Mas, é claro, a
morte não veio aqui para cobrar a minha vida. É sério, Stacy... Cada mínimo
detalhe que acontecia no meu dia, eu havia sonhado à noite. Fatos como
escorregar e quase cair na neve; ou uma xícara de café que caía da minha mão
pela manhã... É doidera, não é? Mas, realmente tudo acontecia. Na verdade,
essas coisas aconteciam e eu pouco me importava, já estava ficando assustado,
mas comecei a ignorar. Até o dia em que tive um pesadelo sobre... Sobre você e
o Chris.
Stacy
não conseguia dizer mais nada. Ainda ofegava no canto da parede, mas seus olhos
pareceram realmente se interessar pelas últimas palavras de Evan.
-
Eu sei o porquê da briga que vocês tiveram hoje. Também sei que você vem tendo
essas brigas há semanas, sei a razão delas.
-
Cala a boca seu maldito maluco de merda!
Evan
lamentou por aquilo. Baixou o rosto numa expressão de tristeza, mas compreendia
as razões que a levavam a dizer tais coisas.
-
Você lembra que há cinco dias, exatamente aqui em frente de casa... Eu quase
fui atropelado pelo Chris? – ele perguntou, erguendo o rosto de volta para
olhá-la nos olhos. Mencionava um fato que realmente tinha acontecido, torcendo
para que Stacy também lembrasse.
-
O-O quê você está falando? – Ela conseguiu dizer, embora estivesse convencida
do louco que tinha diante de si.
-
Há cinco dias. Você estava no carro com Chris. Estavam discutindo, discutindo
sério. Ele não olhava para frente, quando se deu conta, eu estava bem no meio
da rua. Mas eu pulei para o lado e quando ele freou, o carro derrapou para o
lado contrário e...
-
O que isso tem haver?! – Ela estava gritando agora. O turbilhão de sentimentos
se misturava e começava a nutrir mais raiva de Evan, já que ele usava
acontecimentos reais sobre ela para justificar suas loucuras.
-
Você lembra?
-
Você ficou louco! Deixa eu ir embora!
-
Você lembra? – Repetiu.
-
Eu quero sair daqui! Por favor!
Evan
negou aquele pedido. Novamente, baixou o rosto e levantou-se até a escada, onde
se sentou no último degrau e ficou de costas para ela.
-
Naquele dia – ele começou, falando num tom mais forte – eu tive outro pesadelo.
Não o da sala de estar e dos corpos. Tive esses tipos de pesadelos proféticos
ou sei lá como devem ser chamados. Eu via você e o Chris, no quarto dele.
Estavam brigando, você parecia gritar, na mão direita segurava o celular dele.
Também gritava um nome repetidas vezes, e ele negava, parecia agir
ironicamente, tirava sarro da sua cara, sorria e mandava você se acalmar. Mas
você não parava, Stacy. Eu não conseguia ouvir tudo o que diziam, suas vozes
pareciam ecos distantes que de vez em quando eu conseguia escutar, embora com
muita dificuldade. – Ele parou, apenas por um breve instante e virou o pescoço
para olhar na direção de Stacy. Espantou-se com o que viu, mas logo se
recuperou já que aquela imagem já estava totalmente definida e esperada em sua
mente: ela abraçava os joelhos, e apertava fortemente os braços. Algumas
lágrimas já desciam de seu rosto e os olhos estavam indescritivelmente
arregalados. A boca, entreaberta devido ao choro e ao espanto, evidenciava toda
a agonia que sentia. – Desculpe, desculpe, desculpe! – Ele retirou o olhar dela
e fitou o chão. – Sei que não deveria dizer isso. Também sei o quanto isso é
horrível, até parece que eu estava espionando os dois. Mas... Vamos Stacy, você
sabe que isso é impossível. Você quer detalhes? Vou prová-la que não estive
espionando, também posso provar que eu não estava lá. Eu jamais faria tal
coisa, eu juro! Eu juro! – ele parou, mais uma vez. Ficou em silêncio enquanto
ouvia o choro de Stacy. Tentou olhá-la novamente, mas impediu a si mesmo. –
Eram exatamente 16h49min. Por que eu sei? Ainda lembro o relógio digital
marcando esse horário sobre a cômoda no quarto de Chris. Eu lembro que no
segundo seguinte, você arremessou o celular dele no chão, mas não quebrou. Em
seguida ele parou de rir, parou de ironizar e até de falar. Caminhou até o
celular e jogou-o sobre a cama, depois foi até sua direção e te segurou pelo
pulso, nenhum dos dois falou coisa alguma depois disso. Ele te levou até o
carro, estava furioso, a puxava pelo braço com agressividade e batia todas as
portas pelas quais passava. Ele te obrigou a entrar no carro, e você entrou.
Lembro de seu rosto, Stacy. Você sentia medo, espanto, ódio, desolação,
tristeza, arrependimento. Suas mãos tremiam mais do que tremem agora. Sabe o
motivo de eu ter odiado o que vi hoje e ter desejado matar o Chris de tanta
surra? Porque eu já tinha visto aquilo antes, doeu bastante, e hoje pela
manhã... Bem, ver aquilo de novo não é muito legal.
“Vocês
estavam no carro, e ele arrancou. Você sentiu medo, porque não sabia o que ele
pretendia fazer em seguida, ou o que aconteceria com o carro já que ele dirigia
feito um bêbado furioso. Você sentiu medo de morrer, consequentemente, tinha
vontade de acabar com a raça dele ali mesmo, porém, mais uma vez, sentiu medo,
já que sabia o quanto aquilo era perigoso. Suas mãos tremiam. Você lutou
bastante para não chorar, e conseguiu. Não queria chorar na frente dele, isso
te humilharia e seria apenas outro motivo para ele vangloriar-se da merda do
próprio orgulho. Ele seguiu dirigindo da mesma forma descontrolada, você passou
o cinto de segurança em volta do corpo e Chris percebeu, ele gargalhou da sua
cara e você o mandou à merda. Ele não respondeu, apenas pisou mais fundo no
acelerador e seu medo aumentou, Stacy. Era tudo tão visível em seu rosto. Também
sentia o carro derrapar sobre o asfalto congelado, isso apenas piorava seu
pavor”.
“E
então... então um forte alívio surgiu quando você percebeu que já estavam
dobrando a rua de sua casa. Ele te xingou em seguida, dizendo que você estava
louca e que levara tudo longe demais. Estava apenas fantasiando coisas sobre ocasiões
que não existiam. Você respondeu, e, novamente, vocês iniciaram a mesma
discussão. Chris está mentindo, eu sei disso, Stacy. Não é preciso ser um
grande gênio para notar. Eu sei o porquê vocês estavam brigando, bem como sei
que ninguém mais além de vocês dois sabem dessa história. Ou melhor, o lance, o
verdadeiro lance que está ocorrendo não foi espalhado no colégio, muito menos
pela cidade inteira. Tirando eu, apenas quatro pessoas sabem disso, Stacy. E
isso é óbvio: você, Chris, Mike e... Bem, você sabe quem. A verdade é: eu sei porque brigaram, apenas sei através desse
pesadelo, onde eu parecia estar lá, embora o estivesse tendo horas antes da
discussão acontecer. Eu vi, eu vi Stacy. Presenciei tudo, e não porque eu quis,
mas, simplesmente, porquê aconteceu, e porque tudo isso envolvia a minha vida”.
-
S-Sua vida?
Evan
sobressaltou-se com a voz de Stacy. Mal conseguia acreditar que ela estava
prestando atenção nele, embora todas as suas esperanças de que aquilo
acontecesse fossem mínimas e quase inexistentes. Notou que a voz dela assumia
um tom mais perturbador – pelo fato de que doía bastante, numa forma
inexplicável, quando Evan a via naquelas situações de tristeza e pavor -, tal
como de uma pessoa à beira da morte e que acaba de ser torturada. Ele também
queria chorar junto com ela, tomar todas as agonias que ela sentia. Sentia
vontade de rasgar a própria pele, já que sabia que a culpa era somente dele por
colocá-la naquela situação.
Mas ela fez parte disso tudo desde o
momento em que li aquele maldito livro, não é?
-
É, minha vida. Eu sonhei com tudo o que aconteceu... Ou... Sei lá, com o que
aconteceria. Antes desse pesadelo, como eu disse, tive outros e tentei por
vezes ignorá-los. Notei que era mesmo verdade, e cheguei a achar que estava
ficando louco. Acredite, eu estava entrando em colapso, até que... Até que eu
tive esse pesadelo envolvendo você.
-
E a “sua vida”. – Ela completou, com o mesmo tom de voz afetado.
-
Aham. E-Eu... Eu tive esse pesadelo, e todos esses detalhes. Preciso que confie
no que estou dizendo...
-
Apenas continue, mas que merda!
-
Tá bem... – Evan levou as mãos até o rosto, segurou-o firme por algum tempo e
só continuou a falar quando retirou as mãos. – Como eu ia dizendo, vocês dois
voltaram a ter aquela mesma discussão. Já estavam em nossa rua quando... Quando
eu atravessei a rua. Nos últimos dias eu não tenho dormido exatamente para não
tê-los...
-
Chega desse papo sentimental, Evan. Apenas conte o resto!
Ele
calou-se no mesmo instante em que foi interrompido e percebeu o quanto estava
agindo de forma idiota. Balançou a cabeça em reprovação à sua atitude e
imediatamente continuou.
-
Vocês estavam discutindo, nenhum dos dois prestava atenção no caminho, tinham esquecido
isso, tinham motivos mais relevantes para fazê-lo. Foi então que eu atravessei
a rua, e o Chris não teve sequer o tempo de frear. Aliás, nenhum dos dois viu o
que tinham atropelado. Eu sentia a dor tomando conta do meu corpo, Stacy. Era
um sonho, geralmente quando se morre nos sonhos você acorda. Mas eu me lembro
de sentir a dor. Fiquei imóvel ali no chão, na verdade, mergulhado em uma pilha
de neve na calçada. Devo ter ido parar a metros de distância. Sentia a agonia,
o sangue saindo do meu corpo, quente, contrastando com a superfície gelada em
que eu fora aterrissar. Vocês dois vieram correndo em minha direção, seus
rostos estavam sobre mim, lembro dos gritos e a correria pela vizinhança. Então
eu apaguei, e quando dei por mim, estava ofegante sobre a cama, dando conta de
que fora mais um daqueles pesadelos estranhos. E... E foi isso. – Ele se
levantou e caminhou para o lado da escada, mantendo um espaço consideravelmente
longe do topo. – Pode ir agora, Stacy. Isso era tudo o que eu tinha a falar.
Tudo o que eu...
-
Se são pesadelos “proféticos”, você não deveria estar morto agora? Ou, pelo
menos, ter sido atropelado?
-
Sim, deveria.
-
E então, por que não...? – Ela se calou, dando-se conta por fim.
-
Eu já sabia que iria acontecer. Eu soube no último segundo quando vi o carro do
Chris vindo em minha direção. Eu não acreditei naquele pesadelo durante o dia
inteiro, mas quando percebi de quem era aquele carro, quem o dirigia e que
vocês dois estavam travando uma discussão lá dentro... Foi aí que eu me dei
conta da verdade. Eu seria atropelado exatamente como o pesadelo havia mostrado,
aí pulei para o lado. E aqui estou eu.
Ela
ficou em silêncio. Olhava para ele totalmente confusa. Gaguejou algumas vezes
antes de conseguir falar:
-
Como eu vou acreditar em você? Você poderia muito bem ter estado naquele quarto
quando...
-
Impossível. – Evan a cortou. – Acha mesmo que eu teria tempo suficiente de
chegar em casa a tempo? Hum? Principalmente na velocidade em que o Chris veio
dirigindo até aqui?
-
Mas, mas...
-
Você viu, Stacy. Era impossível.
Ela
gaguejou novamente. As mãos estavam fechadas, bem como os olhos agora. Algo
dentro dela dizia que não deveria acreditar naquela história, mas... Mas, como
ela não poderia acreditar quando Evan havia dito exatamente tudo o que acontecera
naquele dia entre ela e Chris, quando ninguém mais sabia?
-
Fácil... – Ela tentou começar, sentiu a voz falhar e demorou um pouco até
conseguir recuperar a voz – O Chris te contou tudo! Ou o Mike, o maldito
amiguinho dele. Ele contou tudo a você, Evan! Um dos dois, ou os dois! Eles
contaram...
-
Acha mesmo que sou amigo deles a esse ponto? – apontou para os hematomas e
ferimentos que havia em seu rosto.
Stacy
vacilou com aquilo. Tentou dizer mais algumas coisas, mas desistiu, dando-se
conta de que havia perdido para Evan. Por mais que aquela história toda fosse
maluca, desmiolada ou sem sentido, ele tinha toda a razão. Isso apenas a
deixava cada vez mais espantada e atordoada. Não queria admitir, já que isso a
tornaria a mais louca da rua, mas... Sim, ela não podia negar que após toda
aquela história do “pesadelo profético”, grande parte de sua razão passava a
acreditar em Evan. Todos aqueles detalhes sobre a discussão que tivera com
Chris... O Celular jogado ao chão... Os momentos em que ele a segurara pelo
punho e a arrastara até o carro... O momento em que ele acelerou, fazendo-a
colocar o cinto de segurança... Cada instante em que ele a xingava e ria da
cara dela... Tudo, exatamente tudo fazia sentido e era contado nos mínimos
detalhes com uma extrema perfeição.
Ela
levantou e caminhou hesitante até a escada. Ao chegar no topo, olhou para Evan
e limpou as lágrimas no rosto.
-
Eu não sei com o quê você me contaminou. Não acredito que vou dizer isso,
mas... É, eu acho que acredito em você. Eu
acho. Isso não garante nada. Tudo o que você disse... Que droga, Evan! O
quê que está acontecendo, hein?
-
Desculpe. – Involuntariamente ele se aproximou e a envolveu entre os braços.
Decerto a pegou de surpresa, mas Stacy nada fez em relação àquilo. Os dois
trocaram olhares por alguns segundos e Evan pôs os lábios na testa dela,
dando-lhe um beijo intenso, demorado, carinhoso e protetor. Em seguida desfez o
abraço e se afastou. – Eu não queria ter de envolvê-la nisso mas...
-
Esquece. – Ela respondeu, vacilante. – Eu só preciso pensar sobre tudo isso, tá
legal?
-
Sim.
-
Certo. Err, é... Você ainda é louco. Eu só quero sair daqui.
- Você tem seus motivos. Não a culpo por isso.
Ela
assentiu.
-
Já está na hora.
-
Ok.
-
Ei, eu... Eu juro que não vou chamar a polícia nem coisa do tipo, e também...
Ah, que droga, Evan! Maldita história maluca. Eu só preciso pensar, tenho que
ir...
-
Aham. Obrigado. – Ele sorriu com o canto dos lábios, feliz por saber que ela
enfim acreditava nele e principalmente por ter sido maleável tão rapidamente -
uma característica ruim num momento conveniente. – Acrescentou.
Stacy
desceu os degraus lentamente. Mostrava o quanto estava abalada com tudo aquilo,
principalmente agora que passava a acreditar, mas ainda tinha dúvidas. Talvez
fossem os 10% de hesitação dentro dela, mas enquanto eles existissem, tão cedo
não ficaria em paz. Já estava no meio dos degraus quando resolveu pôr um fim
naquilo tudo, girou o corpo e fitou Evan, ainda parado lá em cima.
-
Pode me responder uma coisa? – Perguntou com a voz fraca e tensa.
-
Claro.
-
Se você sabe sobre todos os detalhes daquele dia, então... Pode me dizer qual o
número que estava no celular do Chris enquanto eu o segurava?
Evan
assentiu, muito hesitantemente. Ela notou que por algum motivo ele não gostaria
de ter de responder aquilo, e isso a fez sorrir por dentro. “Uau. Ele se preocupa tanto comigo que...
Quer me poupar dessa lembrança?”. Pensou consigo mesma, embora soubesse que
era algo bobo e desnecessário para se pensar naquele momento. Era impossível.
Sentiu-se encantada, mesmo depois de tudo o que havia acontecido. Evan tinha
uma razão lógica e meiga ao não querer responder aquela pergunta, isso porque
ele não fazia ideia do quanto Stacy não estava mais abalada com aquilo. Dane-se Chris e a maldita garota dele, eu
realmente não me importo, quando eu tenho o
Evan-maluco-fantioso-e-crente-em-desejos-misteriosos-de-um-livro-misterioso que
se preocupa comigo.
- Evan, por favor, diga. Isso não vai me fazer mal algum. É a última
forma para me fazer confiar plenamente em você.
Houve
outro segundo de hesitação, mas então ele tomou coragem e falou:
-
Havia um número e um nome no celular que você segurava: 497-9582, Kate.
Stacy
ficou paralisada. Agora acreditava incondicionalmente em tudo o que Evan
contara. A riqueza dos detalhes... E a exatidão com que pronunciara o número, e
ainda por cima o nome... Ela iria ficar louca, sem dúvida alguma, mas confiaria
em Evan. Mesmo que isso custasse sua sanidade perfeita e seu futuro brilhante.
Também acreditaria nele porque – era um motivo idiota, típico de adolescentes
eufóricas e apaixonadas – sentia nele algo do qual poderia se agarrar com força,
sem medo e hesitação. Afinal, o louco que há algum tempo julgava ser um
psicopata delirante, agora se tornara o garoto pelo qual tinha a certeza de
sentir-se atraída e admirada. Culpava-se por nunca tê-lo percebido antes,
apenas em um momento de pura loucura como o que acabava de passar.
-
E-Eu... Preciso ir, Evan. Pode me dar um tempo? Tenho que pensar em tudo isso.
-
Tudo bem, Stacy. Mas...
-
Mas...?
-
Você acredita em mim, agora?
Ela
suspirou profundamente, lançando-o o sorriso mais sincero e tímido que era
capaz de transmitir.
-
Que droga, Evan. É uma loucura tremenda, mas sim. Eu acredito em você.
Evan
sorriu de volta, e Stacy desceu as escadas rumo à porta.
***
Mike
acabava de sair do banheiro em seu quarto com uma revista entre as mãos. O
rosto suado e o sorriso sádico indicavam o tamanho de seu prazer. Ele jogou a
revista para baixo da cama e se olhou no pedaço de espelho que ainda sobrara na
porta do quarto. Limpou o rosto e gritou um “já to indo”, em resposta aos
berros que sua mãe dava para que ele descesse e fosse jantar.
Ele
odiava a maldita família cristã que tinha. Praticamente todos os dias – isso
quando não estava fora ou não conseguia fugir – tinha que cumprir aquele ritual
de agradecimento na mesa. Se pudesse, comeria pelos cantos da casa apenas na
intenção de evitar aquela ladainha ritualística e patética. Se deveria
agradecer a alguém pela comida que tinha, esse alguém deveria ser os donos das
grandes fábricas, os fazendeiros e todo o resto. Limpou o rosto novamente, por
medidas de garantia e saiu do quarto, batendo a porta com força – motivo pelo
qual grande parte do espelho que havia ali, não existia mais. Passou pelo
corredor em direção à escada com passos pesados, na intenção de mostrar à mãe o
quanto ele estava ansioso por mais um jantar em família. Desceu as escadas e
caminhou até a sala de jantar, onde se deparou com os pais e a irmã de treze
anos, todos os três puritanos que ainda levavam o papo de “família feliz” a
sério, bem como o dia seguinte, do qual enchiam a casa com aqueles malditos
enfeites natalinos e a árvore que ocupava grande parte da sala de estar. Sua
mãe o mandou sentar, com um olhar de repreensão no rosto. Ele obedeceu, embora tudo
o que queria fosse responder algo na cara dela, ou até mesmo sair quebrando
todas aquelas porcarias que havia pela casa e todo aquele jantar idiota.
Quebrar...
Sentou-se,
mas agora todos olhavam para ele com estranheza. Mike estava sorrindo consigo mesmo,
parecia divertir-se com algum pensamento misterioso que absolutamente ninguém
naquela sala fora capaz de questionar. E, de fato, ele sorria por ter sido
acometido por uma lembrança magnífica: a surra que havia dado em Evan, mais
cedo.
Lembrava
que aquele nerd maluco aparecera do nada, diante dele e de Chris, implorando
para que ouvissem uma história que tinha a dizer sobre estarem correndo perigo.
Obviamente, os dois riram e combinaram através de um olhar cínico que
prestariam atenção no que Evan tinha a dizer, e que deveria ser breve antes que
se arrependessem. Decerto, Chris poderia aguentar toda aquela baboseira que
ouviu, de modo que ao terminar, começou a zombar da cara de Evan. Ele sorria e
gargalhava, batia os pés no chão com diversão após ter escutado todo aquele
papo. Mas o mesmo não acontecia com Mike. Aquilo era mais que um insulto, eles
estavam sendo tratados como dois idiotas ao dar ouvidos àquele nerd maluco.
Mike não aguentaria ser caçoado, ninguém jamais tirou brincadeiras tão idiotas
com ele, não ia ser naquele momento que Evan o faria.
Perdeu o controle. Não foi capaz de dizer nada, sua única
reação depois de tudo aquilo foi transferir um golpe no rosto de Evan,
fazendo-o cair para trás, estatelado como diarreia. Chris se calou no mesmo
instante, surpreso pela ação imediata e inesperada do amigo. Mike sorrira de
canto e soltara vários xingamentos em seguida. Só então Chris começou a rir
também, convidando Mike para a “festa”. O amigo começou ao depositar um chute
forte na perna direita do nerd, podendo muito bem tê-lo quebrado os ossos.
Os
dois amigos continuaram por um longo tempo, somente pararam porque tinham
outras coisas a fazer, caso contrário, continuariam com a “bela arte de surrar
Evan Dover”. E era disso que Mike ria naquele momento: estava se divertindo
bastante ao relembrar a cara de dor do nerd, e todo aquele sangue colorindo a
neve em que ele estava caído.
-
Uau! O espírito de Natal enfim iluminou sua alma, maninho? – A irmã de Mike
cortou o silêncio.
Ele
a olhou com o rosto ardendo em irritação. Bateu uma das mãos sobre a mesa,
fazendo os talheres pularem e alguns copos caírem, tentou se levantar, mas foi
impedido assim que seu pai gritou para que se sentasse. Mike obedeceu, embora
seu rosto tivesse corado ainda mais pela atitude do pai.
-
Você me paga, moleca. Você me paga. – Mike sussurrou em direção à irmã, ela
respondeu com uma careta de desprezo.
-
Parem de tolices, crianças. – O pai disse – E Mike... Sua irmã não deixa de ter
razão. Você pode, pelo menos, uma vez na vida, respeitar tudo a sua volta nessa
época? Amanhã é véspera de Natal, e eu realmente lhe peço para...
-
Tá, ta! – Mike respondeu, forçando um sorriso para o pai. – Vou respeitar toda
essa coisa, papai. – pronunciou a
última palavra com desdém, e deu-lhe uma piscadinha. – Amanhã é véspera de
Natal, vamos esperar até meia-noite e quem sabe Papai Noel não desce pela
chaminé trazendo muitos, muitos presentes? E aí? Será que ele se deu ao
trabalho de ler minha carta, este ano?
A
irmã fez um bico, balançando a cabeça e se convencendo – pela milionésima vez –
de que tinha um irmão idiota com um cérebro do tamanho de uma ervilha, ou menor
ainda. A mãe pôs as mãos no rosto e totalmente decepcionada, balançou a cabeça.
O pai, apenas bufou, estreitando os olhos repreensivos na direção do filho e
esticou uma das mãos para a filha e a outra para a esposa, ambas fizeram o
mesmo na direção de Mike, que resmungou algo baixo e soltou uma risadinha
irônica, mas também segurou nas mãos delas.
Mike
não suportava aquilo. Tinha a vontade cuspir sobre a mesa e gritar na cara
daqueles três puritanos, sair de casa e se ver livre pelas ruas. Mas... Não,
ele não podia. Pelo menos não por enquanto, ainda mantinha certo “bom senso”
dentro de si. O pai começou aquele maldito costume, agradecendo pela refeição
que tinha sobre a mesa e por mais uma dezena de coisas que não tinham nada
haver com comer ou jantar.
A
droga do agradecimento dava uma volta, de modo que quem estava falando nesse
momento era sua mãe, o que indicava que a próxima pessoa seria ele. O que eu daria para ter que me livrar
disso?! As palavras de sua mãe já estavam quase no fim quando ouviu-se um
barulho forte, vindo do telhado da casa, que fez todos naquela mesa se
dispersarem dos agradecimentos. Mike vibrou por dentro.
Já
era de se esperar que um sorriso fosse presente em seu rosto, todos em volta
notaram, mas ninguém teve a chance de contestar aquela atitude. Outro barulho
aconteceu, dessa vez, mais forte e violento, como se uma pedra de 20 quilos
tivesse sido arremessada ao telhado. O pai de Mike se levantou, e, no exato
momento em que fez isso, um som ensurdecedor veio da sala de estar. Todos se
assustaram, sem dúvida alguma algo
deveria ter atravessado a parede da sala, foi a primeira coisa que Mike pensou.
Alguns objetos ainda caíam, e uma densa massa de poeira tomou conta dos outros
cômodos da casa, exatamente vinda da sala de estar.
O
pai de Mike gritou para que ficassem ali mesmo, mas apenas um alguém não
obedeceu à ordem.
O
garoto ignorou a voz de seus pais e o grito de pavor da irmã, correndo em
direção à sala. Nunca dera atenção à família, não seria naquele momento de pura
curiosidade e euforia que agiria diferente.
A
massa de poeira que vinha da sala de estar era incrivelmente assustadora e
desnecessária, Mike sabia que, mesmo se a parede de fato tivesse sido
derrubada, não seria capaz de tomar os cômodos da casa de tal forma. Ele
continuou a caminhar pela sala de estar com o antebraço protegendo os olhos,
apesar de toda a dificuldade diante dele, sabia muito bem caminhar por ali, mas
seus passos eram cautelosos e lentos. Mentalmente, sabia o rumo de todos os
móveis, tendo consciência de onde se encontravam o sofá ou a mesa decorativa no
meio da sala. Ele desviou de uma ou duas mobília, mas subitamente parou assim
que sentiu as canelas chocarem-se com algo grande e duro, provavelmente um
pedaço de concreto. Não lembrava um encontro às cegas no escuro, por mais que
estivesse correndo (em uma situação normal) e encontrasse a canela de outra
pessoa, a dor não se igualaria nem de longe àquela que ele sentia agora. Mike
gritou com aquilo, já que, embora caminhasse lentamente, o baque com o objeto
parecia doer e propagar até à alma. Caiu de joelhos e levou as mãos às canelas,
segurou-as firme numa forma fracassada de anular a dor, mas, para seu
desespero, algo naquela batida se mostrou estranho.
Ele
percebeu que suas mãos estavam molhadas por um líquido denso e pesado, as
pernas estavam completamente encharcadas por aquilo. A dor também não passava,
apenas piorava conforme os segundos iam prosseguindo. Mike gritou mais alto,
arregalava os olhos e olhava em volta, mas não conseguia enxergar nada além da
poeira. Ele passou a gritar mais forte, implorava por ajuda e dizia o quanto
suas pernas doíam, mas ninguém parecia escutar seus apelos. Ao se dar conta
disso, ele começou a soltar todos os tipos de xingamentos e palavrões que seu
vocabulário dispunha.
Mas
de nada parecia adiantar, até que...
A
poeira não baixou a ponto de favorecer sua visão, mas diminuiu o suficiente para
que visualizasse uma silhueta baixa e gorducha em sua frente. Mike se calou.
Sofria com a dor nas pernas, queria gritar e matar alguém se fosse necessário,
mas, naquele momento, apenas naquele
exato momento, ele perdeu a voz e todas as palavras que conhecia. Os olhos
estavam, agora, arregalados numa visível expressão de terror, as mãos ainda
seguravam as próprias pernas, e por um breve segundo ele sentiu que aquele
líquido jorrava de dentro para fora. Mike estremeceu. Achou que poderia ser
sangue. E... Era mesmo sangue?
Ele
não teve a coragem de constar.
A
poeira diante de seus olhos se dissipou um pouco e ele teve a completa e
perfeita visão de quem... Ou melhor, do quê
estava em sua frente.
Não
podia acreditar nos próprios olhos. Imaginou que, se aquela história maluca que
as bíblias contavam sobre inferno e demônios fosse real, então ele estava
diante da verdade. Embora conhecesse a imagem daquela coisa diante de si, não
podia deixar de se convencer que aquilo fugia totalmente dos padrões. Não era
daquele jeito, afinal de contas, que as histórias o descreviam ou como as
propagandas de TV o mostravam. Aquilo que estava de diante de Mike era uma
versão assustadora e demoníaca do...
- Olá, Mike! Soube que você foi uma criança muito, muito travessa este
ano, e por esse motivo eu vim aqui para lhe dar a devida punição. HOHO.
Assim
que aquela coisa disse tais palavras,
Mike soltou as pernas e girou o corpo na direção contrária, tentando engatinhar
para fugir dali. Só então percebeu que suas mãos estavam repletas de sangue,
ele gritava novamente, chamava e clamava pela a ajuda do pai, mas não obtinha
respostas.
Ouviu
os passos atrás de si, e esse som o impulsionou como um combustível eficiente:
Mike engatinhou com mais determinação, e de fato conseguiu alcançar uma boa
distância com aquilo. A poeira ainda não baixara totalmente, de modo que nesse
momento ele não conseguia enxergar absolutamente mais nada que estivesse diante
de seus olhos. Os passos daquela coisa continuavam no mesmo ritmo, apesar de
Mike estar mais rápido a cada segundo. Ele engatinhou por mais um longo tempo,
e parecia chegar a lugar algum, ou então, imaginou, estava engatinhando em
círculos. Que merda! É apenas a porcaria
de uma sala minúscula! Que porra é essa?! Ele continuou e continuou,
gritava até sentir a garganta irritada. E enquanto o fazia, um rastro de sangue
ia sendo deixado pelo chão, Mike não percebia, tampouco notara que isso era um
fator crucial e fácil para ser perseguido. Sequer adiantaria se esconder, já
que o sangue que jorrava de suas pernas indicaria onde a caça havia se
entocado.
Após
algum tempo, sentiu os braços fraquejarem e seu corpo entrar numa inércia maior.
Aos poucos não conseguia mais sustentar seu próprio peso com as mãos, caindo assim
no chão. Ele gemia de dor, gemia fraco e algumas lágrimas já caíam de seus
olhos. Sentia-se uma criança perdida querendo a presença dos pais ao lado.
Estou sendo perseguido pelo...
Então
se calou. Mike entrou em um momento de profundo arrependimento e vergonha -
daqueles em que a pessoa vê tudo diante dela desabar pelo simples motivo de não
ter dado a devida atenção para impedir a tragédia. Pela primeira vez em muito
tempo, Mike pensou racionalmente e ponderou tudo como um homem sábio: ele fora
avisado sobre aquilo, mais cedo, naquele dia, o próprio Evan havia mencionado o
fato de que Mike corria um grande perigo, e que deveria confiar nele a qualquer
preço. Afinal, sua vida dependeria daquilo.
Evan me avisou e eu... E eu... Não liguei!
Por
algum motivo, sabia que Evan não tinha culpa. Ele apenas... Sabia. Evan jamais participaria de uma
coisa daquelas, era uma pessoa puritana demais para arquitetar algo do tipo, e
além do mais, todo aquele ataque era surreal demais para qualquer humano.
Ninguém jamais conseguiria fazer tal coisa, era sobre-humano demais,
praticamente... Diabólico. Mike chorava. Encolhia o corpo e sentia as pernas
arderem de dor. O corpo começava a ficar mais e mais fraco, também parecia
perder a temperatura. Um suor gelado descia-lhe as têmporas, as mãos ensanguentadas
tremiam incontrolavelmente. Tudo o que ocorria com Mike se resumia a duas
coisas: medo e arrependimento.
Foi
quando ouviu um som: ao seu lado, a menos de dez centímetros, ele pôde enxergar
a bota negra e suja do indivíduo, e ao lado delas, um objeto colorido e ensanguentado
na ponta... Mike gelou. Soube que fora aquilo que cortara a sua perna, só
poderia ser. Tentou analisar o objeto com atenção e apenas obteve êxito após
alguns segundos: era uma espécie de objeto cilíndrico, comprido e colorido
entre linhas alternadas vermelhas e brancas, lembrava com exatidão a armação de
um guarda-chuva. Seja lá o que fosse, o ser
apoiava-se no objeto. A ponta reta o sustentava no chão e seguia até a mão
dele, onde terminava num formato de arco. Para fazê-lo, Mike precisou erguer o
rosto para melhor ver o objeto, de modo que inevitavelmente encarou o rosto do indivíduo.
Notou que a boca negra era escondida sob a barba encardida e cheia de sujeira;
uma substância negra e pegajosa descia de sua boca, ele sorria de um jeito
sádico – exatamente como Mike costumava rir – e indescritivelmente
amedrontador.
O
indivíduo notou que Mike o olhava, e então soltou aquela risada inconfundível.
Apoiou as duas mãos sobre a parte em que o objeto tinha sua curvatura e
inclinou o rosto para baixo, de modo que aquela coisa negra de sua boca caiu
sobre o rosto de Mike. A criatura se divertiu mais ainda, gargalhando forte.
-
Por favor, por favor! Não me mate! Não me mate! Por favor, eu não fiz nada, me
deixe sair daqui... – Mike implorava. Deu-se conta do quanto sua voz tinha um
nível fraco e um tom agudo, tal qual o de uma menininha. Mas não se importou e
continuou a implorar.
O
indivíduo gargalhou novamente. Era só o que sabia fazer. Seus olhos tinham um
tom vermelho-sangue, e se estreitaram quando Mike continuou com as súplicas,
analisando-o com uma falsa piedade digna de caçadores ao caçoar de suas presas.
Ele voltou à postura de antes, mas cuspiu um pouco mais daquela gosma negra em
cima de Mike. Continuou gargalhando naquela diversão sádica e disse:
- Me perdoe, pequeno Mike. Mas as regras não são essas. Você foi muito
travesso, fez coisas muito feias e desobedeceu seus pais. Disse muitos
palavrões e não agiu de forma boa e comportada. HOHO. Desculpe, mas apenas as
crianças boas estão no poder de fazer pedidos, e você... Ahh Mike, você não é
uma delas!
Em
seguida, não houve tempo para que Mike reagisse.
O
indivíduo moveu discretamente a mão sobre o objeto em sua parte superior, da
qual se apoiava, e automaticamente, na parte inferior que o apoiava no chão –
como num dispositivo perfeito - duas lâminas pularam para fora, eram
cintilantes e afiadas, estavam acopladas naquele objeto deixando aquela área
num formato de “T” invertido, com suas pontas horizontais levemente inclinadas
numa concavidade para cima. Mike observou a tudo com a boca escancarada, tentou
gritar novamente, mas sua voz não mais saía. Ele se debateu no chão, porém não
houve tempo: o indivíduo jogou uma daquelas lâminas até a lateral do rosto de
Mike, o metal penetrou com extrema facilidade e só então o grito – pavoroso e
ensurdecedor – dele saiu. A dor era indescritível, o metal estava cravado na
bochecha do adolescente, e quando seus gritos se tornaram mais fortes, o indivíduo
voltou a gargalhar e moveu o objeto pelo rosto de Mike em direção ao nariz. Os
gritos ficaram mais fortes, ele se batia no chão como um animal em sacrifício,
obrigando o monstro – em forma humana - a continuar o movimento até chegar ao
outro lado do rosto de Mike.
Os
gritos pararam.
O
indivíduo continuou a gargalhar, então retirou a arma e contemplou a face
desfigurada e morta de Mike.
Fora
tão rápido e fácil, de uma forma incrivelmente dinâmica e eficiente. Era um
modo ágil e simples de desfigurar um rosto e aniquilar uma vida.
- HOHOHO! Já tenho o primeiro presente, querido Evan.
Mas
ele não parou. Continuou os mesmos movimentos por todo o corpo de Mike, e
parecia se divertir com aquilo. Quanto mais o dilacerava – superficialmente, no
entanto – mais gargalhava. Era como uma brincadeira para ele, na verdade,
parecia muito com uma criança que brinca num parque de diversões e não sabe a
hora de parar.
Parecia.
Por
fim, deu-se por satisfeito e afastou o objeto do corpo de Mike. Fez novamente
um movimento discreto na parte superior, obrigando as lâminas a voltarem para
dentro, dando novamente à arma o formato de uma bengala colorida nas cores
vermelhas e brancas. Ele sorriu e caminhou em direção à lareira, assim que se
pôs diante dela, deu uma olhada no ambiente e notou que árvore de natal ainda
brilhava em todas as suas luzes alegres, ele gargalhou mais alto e agachou-se
para entrar na lareira.
Os
pais de Mike e sua irmã entraram correndo na sala de estar, procurando por ele.
Notaram o caos que o cômodo da casa se encontrava, estavam atordoados e
confusos, não sabiam onde Mike estava, embora – na visão deturpada deles – ele
tivesse corrido até ali há pouquíssimos segundos.
Foi
Michelle, irmã de Mike, de apenas treze anos, quem viu a verdadeira cena de
horror. Ela apontou para o corpo ceifado do irmão, totalmente estraçalhado e
retalhado, sobre o chão ensangüentado. Mike estava morto, sem vida, e
claramente, sem um rosto digno que pudesse ser apreciado no dia de seu velório.
Ela gritou. Os pais viram a cena e também fizeram o mesmo. Estavam horrorizados
com a imagem cruel e sanguinária diante deles.
Ironicamente,
Mike estava deitado exatamente ao pé daquela árvore de Natal que tanto
irradiava amor e calmaria, através de seu brilho forte e alegre – exatamente
como um presente natalino.
***
Evan
quase não ouviu o telefone tocar ao seu lado.
Estava
imerso na água da banheira – adorava aquele ambiente, trazia-lhe paz e clareava
seus pensamentos, além do fato de se sentir como aquelas pessoas incrivelmente
ricas dos filmes que passavam grande parte do tempo na banheira, bebendo e
fumando, e às vezes até fazendo coisas ainda mais prazerosas – de olhos
fechados, transpondo a mente para milhares de quilômetros dali. Submergia
apenas quando realmente necessitava de ar, e, graças àquela atividade constante
que apenas fazia quando os pais não estavam em casa, ele alcançara nos últimos
meses a incrível marca de 74 segundos sob a água. Sentia um ligeiro orgulho de
si mesmo, julgando que, em situações de emergência das quais lhe exigissem
fôlego, não teria problema algum em executá-las.
Ele
ainda não havia alcançado os 40 segundos – e o tempo parecia se arrastar de uma
forma diferente dentro d’água, de uma forma mais prolongada – quando percebeu
que o telefone berrava ao lado da banheira. Abriu os olhos rapidamente, saiu da
água deixando-a até o tórax e enxugou a mão na toalha que estava ao lado do telefone
sem fio, sob um banquinho.
Passou
o olhar sobre o visor do telefone e, ao identificar o número, engoliu em seco,
dando-se conta de que ainda não tinha um plano devidamente formado para aquela
– inevitável – ocasião. O telefone ainda berrou incomodamente por algum tempo,
e só então atendeu com uma notável hesitação.
-
A-Alô?
-
Evan! – A voz no outro lado da linha soou realmente agressiva para o ouvido do
garoto. Ele conhecia perfeitamente aquele tom, e se encolheu na banheira. – Por
que não atende esse telefone? Onde você estava?
-
Estava... Estava no quarto, arrumando as coisas. – Mentiu.
Uma
pequena pausa na voz do outro lado, mas logo continuou:
-
Você já deveria estar aqui. Por que ainda não chegou?
-
É, eu sei, pai... – Ele pensou em se desculpar primeiro, mas sabia o quanto
soaria culposo. Já teria de inventar bastantes coisas naquela conversa e
acentuar uma atitude suspeita àquilo não o ajudaria em nada.
-
Por que ainda não está aqui?
Evan
vacilou.
Todos
os anos, naquela época, como já era de costume, sua família passava o natal e
as vésperas do ano novo na enorme casa de seus avós. Todos os parentes mais
próximos, seus tios e tias, primos e primas, passavam aqueles últimos dias
juntos, exatamente como uma verdadeira e enorme família feliz. Evan adorava
aquilo, bem como adorava os conselhos e histórias do avô, o carinho mimoso e as
receitas de sua avó. Os tios brincalhões, irmãos de seu pai, contando a cada 45
segundos uma piada nova que parecia especialmente selecionada para aqueles
momentos, e o melhor de tudo: nunca perdiam a graça. O ambiente em que Evan
cresceu sempre fora aquele, cercado por uma grandiosa e harmoniosa família. Era
a melhor época para ele, realmente se sentia bem com a alegria que envolvia
todas as pessoas que iam até a casa de seus avós. Era uma tradição, e Evan era
uma das pessoas principais naquela típica, mas diferente reunião familiar. Era
um dos poucos netos, e o mais próximo do avô e da avó. Por isso, sua presença
lá era essencial. Ele deveria estar entre seus parentes há exatamente um dia,
mas as coisas saíram de seus planos e envolviam assuntos – e ele se recusava a
dizer isso, embora soubesse que era verdade – mais importantes do que uma
reunião de família.
-
Por que ainda não está aqui, Evan? – O pai vociferou. Estava visivelmente
irritado e isso dificilmente acontecia. Não. Raramente acontecia. Evan se encolheu ainda mais.
-
Aconteceram alguns problemas...
-
Quais problemas? – A voz do pai passou de brava para preocupada. – Quais
problemas, Evan?
-
Acalme-se. Nada que lhe tire o sono, pai. – Mentira.
Queria dizer a verdade, mas ela não tiraria apenas o sono de seu pai, como
também a própria vida.
-
Está mentindo. O que aconteceu? Conte!
Que droga, por que os pais precisam fazer
tantas perguntas?
-
Evan?
-
Pai! – Elevou a voz, condenando-se por isso e se corrigindo imediatamente. –
Não se preocupe. É um problema com um amigo, ele precisou da minha ajuda, e
insistiu nisso. Eu tentei dizer que não poderia ajudá-lo, mas... Uau! O cara é
realmente um pé no saco, eu ouvi a história toda e me dei conta do quanto o
problema é grande.
Exceto
pela parte da ajuda de um amigo, todo o resto era verdade... Só estava um pouco
vago e omitido.
Seu
pai pareceu cair, mas não totalmente. Evan continuou, com o tom mais mentiroso
e astuto que nunca imaginou possuir:
-
Talvez você o conheça. Não sei exatamente. Eu já estava quase de saída,
faltavam apenas algumas roupas na mochila quando ele bateu na porta, ontem de
manhã. E...
-
Evan, Evan!
-
Sim? – Ele parou após a interrupção.
-
Eu sinto muito pelos problemas que vocês adolescentes enfrentam. Provavelmente
deve ser uma garota, certo?
Evan
não entendeu. Também não soube identificar quais emoções o tom de seu pai
passava pelo telefone, estava confuso e não sabia o que dizer. Apenas falava o
que lhe vinha na ponta da língua. De qualquer forma, se sua mentira de fato
estava saindo convincente, seu pai estava caindo. E, fosse ou não impressão de
Evan, ele parecia – agora – disposto a soltar uma frase de incentivo e
compreensão, entretanto, sentia a chegada de um “mas” no final.
-
Sim, pai. Uma garota. – Evan retrucou num arfar fraco e desanimado.
-
Eu sabia.
-
É, acertou.
-
Sim. Mas não muda o fato de você ainda não estar aqui, problemas assim podem
esperar Evan, preciso que venha já para...
Ele
não ouviu o resto. O som da campainha se fez presente no andar de baixo e Evan
tinha uma certeza absoluta e desconhecida de quem poderia ser. Apoiou o telefone
entre a orelha e o ombro molhado e saiu rapidamente da banheira, envolvendo a
toalha no corpo. Ouvia a voz de seu pai, e provavelmente, ele estava lhe dando
uma tremenda bronca a julgar pela força de sua voz, mas Evan não prestava
atenção, tampouco dava bola ao que o pai dizia. Apenas respondia quando este o
perguntava se estava entendendo, ele soltava um “aham” automático a cada 15
segundos ou menos.
Caminhou
apressadamente até o quarto, enfiando as roupas no corpo com agilidade. Quase
caiu para trás no momento em seus pés molhados grudaram no grosso tecido da
calça jeans. Conseguiu se equilibrar bem a tempo, jogando-se contra a cama para
que o estrago não fosse maior. Respondeu um “aham, é, eu sei me desculpe” ao
perceber que suas falas já estavam mecânicas demais, mas retirou rapidamente o
telefone do ombro quando precisou vestir as várias peças de roupa para se
proteger do frio, e quando amarrou as botas pretas nos pés.
Enquanto
o fazia, a campainha ficava mais forte já que era apertada com mais agilidade e
sem pausas. Evan olhou sua imagem no espelho e de certo modo parecia satisfeito
com a própria aparência – apesar dos hematomas e do corte, além dos notáveis
círculos escuros em volta dos olhos. Preferiu não pentear o cabelo, já que
aquele embaraçado no qual se encontrava o fez parecer menos tenso e mais
descontraído.
Que droga é essa, Evan? Você não vai a um
encontro, e não é a hora certa para se pensar nisso!
A
campainha berrava no andar de baixo, Evan agarrou o telefone e repetiu a última
fala com mais ênfase. Correu na direção da escada abaixo e ao chegar lá embaixo,
resolveu dar a devida “atenção” ao seu pai. Ele segurou o telefone com firmeza
contra a orelha e imitou um suspiro perdedor.
-
...Você entendeu!? – Escutou o pai completar.
-
Sim, pai. Eu entendi.
E
então, sem que ao menos esperasse, o pai desligou o telefone do outro lado.
Evan estranhou a atitude e balançou a cabeça, se perguntando o que teria
perdido das últimas palavras de seu pai. Ele não havia escutado absolutamente
nada, e mais tarde se arrependeria de não tê-lo feito.
Jogou
o telefone sobre o sofá na sala de estar – aquela mesma que tanto o amedrontava
durante seus pesadelos constantes e repetitivos, que o ofereciam uma nova
surpresa e revelação a cada vez que o tinha – e correu para porta da frente.
Não demorou a abri-la, tampouco se atrapalhou com todos os trincos que passara
nela, como forma de proteção – mesmo sabendo que se estivesse em perigo, fosse
o que fosse aquela coisa, poderia facilmente entrar em sua casa usando apenas a
chaminé ao invés da porta. E soltou um longo suspiro quando abriu.
Evan
engoliu em seco.
Mais
uma vez presenciava a cena que tanto o atormentava quando se trava dela. Os olhos estavam visivelmente
inchados, delatando horas de lágrimas. O cabelo escuro era preso em um rabo de
cavalo provisório e sem preocupações com a estética; as mãos, embora estivessem
dentro dos bolsos do casaco, tremiam constantemente. Ela chegava a soluçar, e
seu olhar implorava por algo que somente Evan poderia lhe proporcionar. Vê-la
daquela forma não era fácil, ele mesmo tinha vontade chorar com a dor que a
imagem lhe causava, mas precisava ser forte por ela, e mesmo quando todas as
suas esperanças e coragens estivessem extintas, Evan ainda assim teria forças
para passar uma segurança desmedida à garota. Iria protegê-la até o fim.
– Stacy? – A voz saiu forte e segura.
Ela
não respondeu. Sorriu na direção dele com o canto dos lábios, rapidamente, e
agarrou-o pela mão e o puxou consigo. Evan estranhou a atitude dela e parou,
obrigando-a a também fazer o mesmo.
-
O que está acontecendo? – Ele perguntou, a voz calma.
Ela
não conseguiu responder.
Evan
apertou a mão dela acolhedoramente. Nesse momento estavam diante um do outro, e
uma das mãos dele subiram até o rosto dela, onde uma lágrima desceu de seus
olhos através da bochecha. Ele enxugou com o peito ardendo em agonia. Pessoas correndo perigo, e ele se
distraindo com tal fato, pensando no bem estar supremo de Stacy e... E em como seria tê-la entre seus braços,
sentir seu perfume e o calor.
Mas
ele não o fez. Apenas a contemplava com um olhar carinhoso, tentando transmitir
à ela toda a segurança possível.
-
O que houve? – Ele sussurrou, insistindo.
Então
não houve pressa. Os dois permaneceram ali, frente a frente. Os olhos verdes de
Evan contra os olhos misteriosamente atraentes e escuros de Stacy. Aquela
imagem tão vulnerável e delicada diante dele; e um garoto nerd determinado e
forte que ela jamais sonharia ver. Ficaram em silêncio por um longo tempo. Evan
não tinha pressa de escutar o que ela tinha a dizer, já que se pudesse ficar
ali por uma eternidade apenas para lhe dar a devida confiança e calma, ficaria.
Então
Stacy apertou a mão dele contra a sua e o fitou com certo receio.
-
Não tenha dúvidas de que acredito em você, Evan. – Sua voz saiu fraca,
melancólica.
Evan
apenas assentiu.
-
Não tenha. – Ela repetiu.
-
O que houve? – Perguntou, a voz calma e compreensiva como antes.
Outra
lágrima escorreu do olho direito de Stacy. Evan a enxugou com mais delicadeza,
de modo que seu toque a fez arrepiar e estremecer, como se o solo em que
pisasse estivesse tremendo sorrateiramente. E
apenas para ela.
Stacy
olhou mais profundamente na coloração verde de Evan, um sorriso embaraçado
surgiu entre seus lábios. As bochechas ficaram vermelhas, mas a mudança não
podia ser percebida graças ao ambiente frio que já lhe causava tal efeito sobre
a pele clara. Ela sabia que tinham corado, graças à ardência atípica que agia
naquela área. Novamente, o chão sob seus pés pareceu tremer, o corpo –
especificamente as pernas – vacilou e Evan a segurou com uma firmeza
demasiadamente delicada. Stacy queria se controlar, mas não conseguia. O corpo
estremecia a cada atitude de Evan; as bochechas coravam com cada toque
preocupado e cada olhar carinhoso. Sentia-se tão... Leve e frágil junto dele.
Incrivelmente frágil, mas irrefutavelmente protegida.
Leve.
Mas
grande parte daquelas sensações não ocorria em função da presença do garoto, e
sim do medo que a acometia. Tinha uma notícia a dar, algo que a atormentara
desde o telefonema que recebera àquela manhã. De repente, toda a mirabolante
história de Evan fazia um cruel sentido, e 24 horas sequer havia sido
completadas desde que ele revelara sobre os sonhos proféticos e a criatura
iminente que vinha rondando a vizinhança. Então fechou os olhos, inspirando o
ar frio com cautela para que ele não machucasse seus pulmões. Em seguida, moveu
lentamente os lábios para falar, mas só o fez quando abriu os olhos e fitou o
garoto:
-
Algo aconteceu. Você tem que vir comigo, Evan. Por favor.
A
resposta dele saiu no segundo seguinte, com o mesmo tom de voz:
-
É claro.
Em
seguida, os dois seguiram para o carro dos pais de Evan. Ele abriu a porta para
ela, tratava-a como outro cara jamais tinha feito. Apesar de embaraçada e com
as bochechas ainda mais coradas, Stacy sorriu, a ponto de mostrar seus dentes
brancos e perfeitos. Um sorriso que se erguia por todo seu rosto, de orelha à
orelha.
Stacy
sorria, embora o momento não fosse o mais adequado para aquilo.
Era
um momento para lágrimas.
Era
um momento para o medo.
Evan
não acreditava nos próprios olhos.
Toda
a razão dentro dele não o deixava dúvidas sobre o que estava enxergando diante
de si, mas havia uma parte – e ela era grande, mas não tão forte quanto a razão
– que o forçava a acreditar que aquilo não passava apenas de uma peça que seus
olhos pregavam, queria que fosse apenas mais um daqueles malditos pesadelos,
mas o fato de ele nunca ter tido aquela premonição durante o sono o arrastava
com mais força para a realidade: era tudo verdade.
As
mãos apertavam o volante, os nós dos dedos já estavam brancos àquela altura. O
corpo estava inclinado para frente, ele tentava enxergar melhor – cada detalhe
-, seus olhos estavam arregalados, bem como a boca que se contorcia num espasmo
de dor e culpa. Ele murmurava algo, Stacy não entendia, nem mesmo ele. Uma gota
de suor brotava de sua testa, mesmo com toda aquela baixa temperatura, o
aquecedor do carro estava ligado, mas não seria capaz de causar aquilo. Era
apenas o nervosismo misturado ao medo e à iminência dos fatos.
Stacy
se mexeu no banco do carona e o observou com uma espécie de compaixão nos
olhos. Só então percebeu o quanto o desespero dele era forte mesmo antes da
cena. Não fazia tanta ideia do quanto o atormentavam, todos aqueles pesadelos
proféticos, aquelas visões. Stacy o olhava com intensidade, notando cada
expressão visível em seu rosto e cada emoção escondida sob os olhos verdes.
Via, acima de tudo, a imagem de um homem derrotado que tem todo o seu esforço
jogado por água abaixo. Um homem derrotado. Ela tinha apenas uma noção do que
ele parecia sentir, e temia como seria aquilo, caso fosse com ela.
Levou
uma de suas mãos até o ombro dele e o acariciou levemente.
Não
foi o suficiente. Evan ainda estava arrasado e mal pareceu notar a atitude
dela. Permaneceram em silêncio por um longo tempo, Evan na mesma posição,
apenas os olhos arregalados de pavor se moviam, e Stacy não queria olhar aquela
cena já que não tinha toda a força e coragem para fazê-lo, como o garoto fazia.
-
Como você soube? – Ele perguntou. Stacy estranhou a frieza em sua voz.
-
Recebi a ligação de Chris assim que acordei. Ele me contou tudo.
Evan
soltou uma risadinha nervosa, e só então olhou para Stacy.
-
Não teve medo? – Os olhos verdes se estreitaram ainda mais na direção dela.
Agia de uma forma estranha, era movido pelo fracasso. – Medo de me ver hoje?
Medo de mim?
-
Por que eu deveria, Evan? – Ela rebateu com um tom indignado na voz.
-
Porque eu disse o que aconteceria. E
aconteceu. Não acha muita coincidência?
Mais
indignação da parte de Stacy.
Seus
olhos arderam e ela balançou a cabeça em tom de reprovação. Retirou a mão do
ombro dele e olhou para frente – mas não estava realmente olhando. Era
compreensível que Evan reagisse com uma ideia de culpa, mas chegar àquele
ponto?
-
Está sugerindo...
-
Estou sugerindo – Ele a interrompeu – que você deveria sentir medo. De mim.
-
Não faz sentido, Evan. Por que eu teria medo de você?
-
Uma pessoa em sã consciência sentiria. – Ele mal notou o que havia dito, mas
continuou – Eu disse que aconteceria, e olha o que está diante de nós, Stacy.
Eu mesmo poderia ter feito isso! Você não deveria estar do meu lado quando...
-
Cala a boca. – Ela foi categórica.
Evan
se calou, não disse mais nada. E então ela aproximou o rosto na direção do
dele, para fitar com mais precisão seus olhos.
-
Evan, eu disse o quanto acreditava em você, não disse? Estou em sã consciência,
depois de todas as provas que você me mostrou; os pesadelos; os mínimos
detalhes da briga que tive com o Chris... E agora isso. Uma pessoa em sã
consciência acreditaria em tudo, e estou em sã consciência, Evan. Droga! – Ela
passou a ponta dos dedos pelo rosto dele, e esbanjou um sorriso encorajador. –
Você jamais faria uma coisa dessas. E o telefonema que recebi do Chris hoje de
manhã... Ele me contou algumas coisas. – A voz dela se tornou temerosa nesse
momento. Um forte arrepio desceu-lhe a nuca para o corpo inteiro.
-
O que ele disse?
Stacy
abriu os lábios para contar, quando foi interrompida pela imagem diante deles.
Agora sim estava vendo com mais clareza, com mais atenção. Não enxergava o que
queria, como há pouco fazia na intenção de bloquear o alvoroço que se armava
ali na frente. Estava fora de seus devaneios, não mais distraída, e sim
atenciosa ao que ocorria ali na rua.
Os
carros de polícia e duas ambulâncias estavam parados sobre o gramado da casa de
Mike. Alguns policiais mantinham os vizinhos e outros curiosos afastados,
repreendendo com firmeza aqueles que ousavam atravessar a barreira que havia
sido montada com a faixa amarela. O clima de terror e confusão era inconfundível,
as pessoas cochichavam entre si e apontavam na direção da casa, umas
gesticulavam com os braços e Stacy imaginou que seria o tipo de gente que se
vangloria por saber uma parte da história. O movimento de paramédicos e
policiais que entravam e saíam da casa também era intenso, e ela também notou
que algumas pessoas com luvas nas mãos e câmeras penduradas no pescoço
conversam entre si na varanda da casa, pareciam esperar por alguma coisa,
certamente o “fim” do trabalho da polícia dentro da casa. Eram os peritos.
Stacy se arrepiou, o corpo estremecendo de uma forma amedrontadora. Imaginou o
que haveria dentro daquela casa, lembrava das palavras de Chris pelo telefone
mais cedo: “Quem faria uma coisa dessas?
Nem mesmo um animal faria. Eu vi! Eu vi, Stacy...”.
Outro
arrepio, novamente. Ela fechou os olhos e tentou afastar a ideia da cabeça, mas
era como tentar afastar uma pesada nuvem de chuva com um assopro. As imagens
vinham. Não sabia como era, tampouco desejaria saber, mas o artifício do medo e
da curiosidade projetavam em sua mente uma compilação de imagens sangrentas que
já vira nos filmes. Então abriu os olhos e observou a – real – cena mais
chocante ali: a família de Mike estava sentada na parte traseira da ambulância,
alguns paramédicos o cercavam e dois policiais faziam perguntas. A irmã dele
estava nos braços da mãe, envolvendo e sendo envolvido fortemente, com as
lágrimas incessantes descendo-lhe os olhos inocentes e extremamente vermelhos.
A mãe respondia algumas perguntas, balançava mais a cabeça do que falava, e
parecia distante. Nenhuma lágrima caía de seus olhos, estava em choque, e Stacy
parecia identificar uma pequena faísca de loucura naqueles olhos – já tinha
visto aquilo no dia anterior, embora já soubesse que não se tratava de um
distúrbio mental. O pai era quem parecia menos chocado, respondia às perguntas
com uma sincronia espantosa, parecia calmo – Stacy sabia: apenas parecia –, mas os olhos vermelhos
evidenciavam as poucas lágrimas que transcorriam rosto abaixo.
-
Ele está morto. Mike está morto. – Ela sussurrou. Parecia ter dito aquilo mais
para si mesma.
-
Sim, mas...
-
E tudo aconteceu exatamente como você disse. – Ela continuou, mal pareceu notar
que Evan tinha dito algo. Seus olhos ainda se mantinham sobre a família
destroçada de Mike, e enquanto falava, estava totalmente perdida em todas as
inevitáveis conclusões e em todos os perfeitos encaixes que a história toda
passava a ter. – É por isso que eu acredito em você, Evan. Não importa o que os
outros digam ou vão achar, eu sei que você diz a verdade e que não está louco,
como eu julguei ontem à noite. Tudo se encaixa. Ninguém está louco aqui. É tudo
verdade. Tudo verdade, Evan. Não há
loucura aqui, ninguém está delirando. A loucura só está no fato de isso
existir, mas não no fato de estar acontecendo...
-
O que você está falando? – Ele a interrompeu. Estava preocupado, já que quem
deveria estar daquele jeito era ele e não ela.
Ela
girou o rosto na direção dele e piscou várias vezes. Esfregou as costas das
mãos pelos olhos e falou:
-
Ninguém está ficando louco. Chris me contou que ao chegar aqui, de manhã, ele
entrou na casa antes que a polícia chegasse. Ele me contou o que viu lá dentro
Evan.
-
O que ele viu?
Stacy
se calou. Engoliu em seco e respirou profundamente. Estava assustada com tudo o
que acontecia, principalmente pela perfeição em que tudo se encaixava. As mãos
novamente estavam tremendo, então o fitou com os olhos novamente cheios d’água.
-
Poeira. Saída da lareira, Evan.
Poeira.
Aquela
simples e curta palavra foi o suficiente para sobressaltá-lo. Seu coração pulou
a mil dentro do peito, e parecia ser comprimido por uma mão musculosa e
invisível. Sentia que, se ele não fosse sair pela boca, iria estourar ali
dentro. Suas mãos que antes apertavam o volante se desfizeram e caíram sobre os
joelhos. Poeira. Saída da lareira. A
boca se fechou, os dentes estavam trincados num êxtase de medo e adrenalina, o
coração bombeando o sangue por todas as suas artérias e veias numa velocidade
nunca antes sentida, as palmas das mãos suadas e um filete frio de suor
descendo de suas têmporas até pingar de seu rosto, caindo sobre o casaco
pesado. As pupilas pareciam ter se dilatado, se é que isso poderia ser possível
devido às sensações que sentia.
-
Poeira? – Ele repetiu.
-
Como nos seus pesadelos.
Evan
tentou olhar com mais atenção para ela, mas foi impedido.
Seus
olhos se arregalaram – mais do que já estavam. Ficou boquiaberto, e teve a
certeza de que as coisas já começavam a acontecer. Era 24 de Dezembro, logo
seria Natal e tudo o que ele sonhou se cumpriria. Stacy tentou seguir seu
olhar, mas Evan não permitiu, segurou o rosto dela, mantendo-o na direção do
seu. Forçou um sorriso e disse “tudo vai ficar bem”. Ela quis olhar, mas
desistiu assim que percebeu que ele a impedia de ver alguma coisa. Ela se deu
conta de que realmente não queria ver, resistindo até o fim.
Evan
girou a chave do carro e sentiu o motor tomar forças. Sem hesitar, ele saiu
dali, mantinha uma velocidade lenta e ao chegar ao final da rua, olhou para
Stacy.
-
Você pode me dizer o quê, exatamente, Chris lhe contou de manhã? – A voz soara
gentil e num tom de permissão, deixando claro para ela que não a forçaria caso
não quisesse falar.
Stacy
concordou, apenas fazendo um sinal positivo com a cabeça.
Evan
agradeceu, e forçou um sorriso animador.
Ele
não estava nem um pouco animado. Principalmente quando olhou pelo retrovisor e
viu a cena que impedira Stacy de observar: o corpo dentro de um saco preto,
sendo colocado em um dos carros da ambulância.
Ele
engoliu em seco.
Era
o corpo sem vida de Mike.
Com
o celular preso ao ouvido, Stacy já não tinha mais a noção de quantas vezes
tentara ligar para o número de Chris. Já soltava alguns palavrões a cada vez
que a voz dele pedia para deixar uma mensagem. Aquela deveria ser a centésima
vez que fazia aquilo, quando alguém bateu com força exagerada na janela do
carro.
Estava
sozinha ali dentro, enquanto tentava todas aquelas ligações. Evan havia saído
há quase dez minutos, na intenção de procurar Chris por aquelas redondezas do
bairro. Há algumas horas o procuravam, e era como se ele tivesse desaparecido
do mapa e tudo logo após a morte de Mike. Para olhos comuns, tal atitude
pareceria muito estranha; para os olhos das autoridades, pareceria extremamente
suspeito. Mas, para os olhos de Stacy Watson, parecia uma típica reação de
Chris para fugir de toda a confusão e incerteza que o cercava. O conhecia
suficientemente bem para saber que ele estava com medo e sozinho, afinal, quem
não se sentiria assim com a morte do melhor amigo? Stacy sentia pena dele,
Chris estava só e desarmado.
Espantou-se
com a forte batida na janela. O celular pulou de sua mão e caiu sob seus pés,
ela quase soltou um grito quando olhou quem estava batendo. Não sabia se
resmungava devido ao susto ao se ficava aliviada. Não era Evan, embora quisesse
que ele voltasse imediatamente – estava preocupada, já que tinha uma bizarrice
solta pela vizinhança e ela estava diretamente ligado a ele.
Era
Chris.
Por
um breve segundo, Stacy hesitou em abrir a porta ou baixar o vidro.
Ele
mais parecia um homem louco prestes a cometer um crime. Ou, pior: um homem
louco que acaba de cometer um.
-
Stacy, abra essa porta! – Ele tentou falar com a voz baixa, apesar de não ter
tido tanto sucesso. Mas ela notou que, sob aquela face de desespero, a voz
assumia um tom de súplica, e não de ódio.
Stacy
abriu a porta. Não hesitou mais.
Chris
olhou em volta, como se alguém o estivesse observando e abriu a porta do carro
completamente, agachando-se para ficar ao lado dela. Suas mãos seguraram as
dela num aperto forte e violento, a garota sabia que tudo não passava de
reações ao desespero. Chris a olhou profundamente, mordeu os lábios com força e
perguntou:
-
Onde está aquele seu maldito amiguinho?
-
O quê?
-
Evan! – Ele tentou gritar, mas se controlou e olhou em volta. Pôs o olhar
novamente no rosto de Stacy e perguntou: - Onde está o seu maldito amiguinho
Evan? Hein?
-
E-Ele está te procurando. Onde você estava Christian?
Ele
apertou as mãos dela com mais força. Stacy se contorceu e puxou as mãos, e só
percebeu que Chris agia inconscientemente quando ele se deu conta do que estava
fazendo e pediu desculpas três vezes seguidas. Ela o perdoou no mesmo momento e
estreitou os olhos, confusa, para ele.
-
O que houve, Chris?
-
O que houve!? – Repetiu logo em seguida. – Aquele seu amiguinho está me
perseguindo, eu sei que está. E o pior de tudo é que ele te colocou nessa, você
está junto com ele. Soube que andaram perguntando o dia inteiro por mim, você e
ele. Que droga, Stacy. Qual motivo o nerd maluco teria para me procurar? Ele
nunca teve, até ontem.
Stacy
tentou responder àquela loucura, mas Chris ergueu a mão e continuou falando:
-
Ontem ele apareceu com aquele papo estranho. Tá... De início a gente achou tudo
engraçado. Mike ainda estava comigo, e tenho certeza que ele só está morto
porque foi o primeiro a... Droga! Seu amiguinho começou tudo isso ontem, nos
contando sobre uma história maluca de natal e desejos, ou presentes. Tanto faz.
Ele disse que estávamos correndo perigo. Perigo de morte. Dá pra acreditar? Enchemos aquele idiota de porrada. E foi
tão divertido, vê-lo gemendo na neve, implorando para que voltássemos e
escutássemos. Ele mesmo disse que iríamos morrer, Stacy. Ele mesmo! Nós o
ignoramos e agora veja o que aconteceu! Parece até aqueles filmes de terror.
Eu... Eu não sei o que tá acontecendo, a única coisa que tenho certeza é de que
isso tudo é culpa do seu amiguinho, ele está atrás de mim e te colocou nessa.
Me diz, ele te machucou? Está te ameaçando? Stacy, se ele estiver...
-
Chega. – A voz imparcial e grave cortou as palavras de Chris e fez com que ela
olhasse para trás. Evan estava do outro lado do carro ouvindo a tudo, seus
olhos fitavam Chris com algo indecifrável demais. – Chris, chega.
-
Sai daqui! – Chris pulou para trás, levantando-se de imediato. Ficou distante
do carro. Stacy ainda estava parada sem se mexer, observando a tudo com um
nervosismo crescente. – Você matou o Mike, e agora está atrás de mim! Eu sei!
Stacy
moveu o pescoço para olhar na direção de Evan, e de início notou que ele se
mantinha frio - até mesmo calculista, julgando aquele olhar imparcial – mas
logo seu corpo estremeceu ao perceber uma súbita mudança no rosto dele: os
olhos se arregalaram e ele deu dois passos para trás, totalmente hesitante,
enquanto as mãos se estendiam num sinal de desistência e súplica. Ela girou
novamente o rosto, de volta, para observar o que tanto espantara Evan, e, ao
ver o que era, abriu a boca num grito que não saiu.
As
mãos trêmulas de Chris seguravam um pequeno e reluzente revólver prateado. O
dedo indicador deslizava pelo gatilho, e o cano do revólver era apontado na
direção de Evan, sobre o carro. O alvo fitava exatamente a saída do revólver,
esperando que a qualquer momento dali saísse o projétil que ceifaria instantaneamente
sua vida.
Evan
só pôde esperar. Percebeu que Chris dava a volta no carro e se aproximava cada
vez mais com a arma em sua direção. Enquanto um se afastava cada vez mais, o
outro se aproximava com agonia, dúvidas e medos.
-
Sabe, Evan... – Chris começou – Eu nunca gostei de você, desde a primeira vez
que te vi. Nunca cheguei a desconfiar, é claro, que você era outra pessoa sob
aquela imagem de pirralho maluco...
-
Chris, por favor, não faça...
-
Cale-se. – Chris o interrompeu, e não precisou gritar para que fosse obedecido.
– E olha só: você não é nada diante da morte, não é? Pode ter matado o Mike,
pode ter brincado comigo e pode ter forçado a Stacy a ficar do seu lado. Mas
isso tudo termina agora, Evan. Agora...
-
Chris! - Stacy chamou com a voz embargada em medo e num choro iminente.
Chris
olhou rapidamente para trás, e viu a imagem de Stacy em prantos. Ela não se
afastara do carro, apenas apoiava os braços sobre ele enquanto observava toda a
cena. Ele só pôde lamentar. Sabia da insistência dela para não fazer aquilo, já
que imaginava que as coisas poderiam se resolver de maneiras pacíficas. Mas
Chris não tinha as mesmas expectativas e também não gostava o suficiente de
Evan para questionar a possibilidade de não puxar o gatilho.
Ele
odiava aquele moleque. Era o bastante.
-
Eu sinto muito, Stacy. Isso é tudo o que você merece, pirralho. Vai se foder.
Chris
dobrou o dedo e fez uma leve pressão sobre o gatilho da arma, ela já estava
destravada, como se já esperasse aquele momento. Evan deu outro passo para
trás, movendo o corpo de forma súbita numa fracassada tentativa de correr e
salvar a própria vida, mas, ao invés do ato ajudá-lo, as consequências foram
contrárias: a atitude pegou Chris de surpresa, e, julgando que mesmo o ar que
Evan respirava fosse lhe causar algum mal, a única e imediata reação que teve foi
iminente e precipitada – afinal, talvez ele levasse mais alguns segundos ou
minutos de hesitação e preparação. Chris apertou o gatilho.
Bum.
Stacy
apenas conseguiu gritar.
Evan
caiu no chão, apagado e com um novo buraco no corpo.
***
O
carro dos pais de Evan subiu a calçada derrapando, e por sorte parou antes de
atropelar alguém ou colidir em uma árvore. Parou na frente da casa de Chris,
ele pulou para fora do carro deixando a porta aberta e deu a volta, fazendo o
mesmo com Stacy. Ela esteve quieta ao longo de todo o percurso, embora Chris
lhe fizesse milhares de pedidos para que falasse alguma coisa. Stacy não
chorava, mas seu olhar estava perdido, as mãos tremiam e ela não parecia
habitar o mesmo mundo por ainda lembrar a imagem de Evan caindo no chão com um
atiro estourando seu peito – e ela não tinha certeza se a imagem do líquido
vermelho espirrando era de fato verdadeira.
Stacy
estava em choque. E por isso foi arrastada por Chris pelo pulso até a entrada
de sua casa. A porta estava entreaberta e quando entraram, ele parou ao
enxergar quem o encarava lá de dentro.
-
Kate? – Perguntou, quase num grito.
O
nome deveria causar, no mínimo, uma histérica reação em Stacy – afinal, não
seria todo dia em que uma ocasião daquelas seria possível -, mas ela nada fez,
apenas moveu rapidamente os olhos na direção da garota que estava diante deles.
De braços cruzados e batendo os pés no chão, a garota – Kate – lançou um olhar
de indignação para Stacy, como se a presença dela fosse uma ofensa, em seguida
seus olhos pularam para Chris. Ela estava visivelmente furiosa.
Stacy
nada fez. Há alguns dias teria muito prazer em planejar algo ou atacar a
garota, mas naquele momento sabia que coisas mais importantes aconteciam – Evan
estava sangrando no chão, talvez já estivesse morto logo no momento em que a
bala lhe atingiu o peito –, e partir para uma briga com a garota que estava
transando com seu ex-namorado realmente não se enquadrava em sua lista de
“prioridades para a véspera de Natal”.
O
único pensamento - distante dos atuais acontecimentos - que passou por sua
cabeça, foi como Evan estava certo o tempo inteiro e como tudo o que ele dizia
era verdade. Tivera um pesadelo sobre a briga que ela teve com Chris e dissera
com exatidão o número da última ligação – e frequentes, ao longo das semanas
anteriores – que ele recebera. “Como Evan
saberia de algo tão íntimo? E, principalmente, com tanta exatidão?”. Stacy
sentiu a falta de ar em seu corpo, o medo extremo deu lugar àquele estado de
choque devido à morte que presenciara há alguns minutos.
Ele
estava morto. Inconscientemente, a garota sabia que a única esperança para
todos, nas vésperas daquele perigo tão iminente, era o próprio Evan. Somente
ele sabia o que acontecia.
Quem
começa, termina. E a única pessoa que poderia dar um término ao terror, estava
morta.
Moveu
o rosto, só então percebendo que Chris e Kate discutiam freneticamente. As mãos
da garota constantemente gesticulavam algo na direção de Stacy, apontando o
dedo indicador como um acusador convicto. Chris já estava ao longe, não mais
apertando seu pulso, mas com as mãos segurando o corpo da garota com certa
violência, numa tentativa de mantê-la distante de Stacy.
-
Estamos perdidos. – Stacy pareceu voltar ao mundo que seu corpo habitava.
Olhou, embora ainda estivesse perdida, na direção de Chris e ignorou a presença
da garota, apesar de não mais ser pessoal, ainda distante. – Estamos perdidos.
– Repetiu.
A
briga cessou. Os dois olharam para Stacy com os rostos repletos de dúvida.
-
O que ela tá falando? – A garota perguntou, seus olhos analisavam Stacy dos pés
à cabeça como se fosse um alien.
-
Hein? – Dessa vez era Chris quem ignorava a garota.
-
Estamos perdidos. – Stacy parecia mais um disco riscado – Estamos perdidos.
Embora
o estado dela fosse deplorável, as feições de Chris não abandonavam o
desespero. Estavam ambos na mesma situação, no mesmo rio, porém em margens
opostas. O Assassino e a Testemunha. O primeiro, assolado pela morte do amigo e
- mesmo que lá no fundo - espantado por tirar outra vida; a segunda,
horrorizada por presenciar o ato de uma vida ceifada diante de si, e abatida
pela ideia de que a vítima morta era a única chance de sobrevivência para todos
ali presentes. Evan sabia como deter
aquela criatura, ou talvez estivesse a um passo de descobrir. E agora estava
morto...
Chris
aproximou-se novamente de Stacy e parou à sua frente. A respiração ofegante
evidenciava o temor que as palavras dela causaram dentro dele. A mente
perturbadamente paranoica de “recém-assassino” cogitava a possibilidade dela se
referir a Evan, que se caso tivesse sobrevivido, faria questão de eliminar
aquele que tentou matá-lo. Chris não duvidava da mente sombria do nerd. Isso o
fez lembrar que não garantiu se o corpo do moleque estava realmente morto, já
que por pura adrenalina entrara no carro obrigando Stacy a ir com ele.
E se Evan estiver... Vivo?
Ele
ergueu o rosto de Stacy e penetrou os olhos nela.
-
O que você disse? – Perguntou.
-
Estamos perdidos.
-
Por que?
-
Estamos perdidos!
Ele
a agarrou pelos braços e sacudiu diante de si.
Stacy mal parecia perceber a tonalidade agressiva e animal nos
movimentos de Chris, os olhos ainda perdidos pareciam enxergar muito além do
que estavam a sua volta.
-
O que quer dizer com isso? Vamos, diga!
Ela
não respondeu, já que não conseguia dar mais explicações ou pensar
racionalmente sobre qualquer coisa referente aos acontecimentos das últimas 24
horas. Acreditava em Evan, e também faria qualquer coisa para salvá-lo ou
voltar no tempo. Não somente para que ele salvasse suas peles, mas porque ela
queria resolver assuntos pendentes. Recuperar o tempo perdido em que estiveram
juntos e não enxergaram um ao outro.
Enquanto
Chris exigia uma resposta clara de Stacy, Kate observava a cena com confusão e
ódio. Não acreditava que Chris ainda estivesse com a namorada depois de todas
as promessas que a tinha feito. Mesmo na noite anterior, ele dera sua palavra
de que não estaria mais junto de Stacy e que enfim assumiriam algo mais sólido.
Kate acreditava em tudo o que ele dissera, tendo quase certeza de que todas as
vezes que saíram juntos e escondidos, todas as noites que fizeram sexo no
quarto ou no carro dele, seriam suficientes para mostrá-la que as intenções
eram mais sérias. Ela não iria tão longe caso não acreditasse piamente naquilo.
Ou iria?
Sentia-se
traída. Repudiava o fato de Stacy ainda estar ao lado dele. Há alguns dias
soube que garota teve a total certeza de que estava sendo traída, soube que ela
sabia de sua existência. Mas Kate não temia o fato, não tinha receio do que a
namoradinha traída poderia fazer. Ela até sorria disso, se divertia sempre que
avistava Stacy no colégio ou pelas ruas... “Vadia”,
era o que tinha vontade de gritar para ela. Mas não podia. Quem sabe um dia o faria,
e por julgar que tal dia se aproximava, é que seu espírito ardeu em raiva por
vê-los chegando juntos e ao notar certa intimidade ainda permanente entre eles.
Kate queria matar Stacy, não literalmente, claro, mas faria qualquer coisa
para...
Crec.
O
estalo chamou a atenção de Kate. A garota girou o corpo na direção do som e
esqueceu totalmente – como num passe de mágica – a briga que se desenrolava.
Ouviu novamente o estalo, agora mais forte, e atraída por ele, aumentou o ritmo
dos passos e inclinou o rosto de lado para que os ouvidos identificassem melhor
de onde vinha o som. Chegou a olhar para trás na direção de Chris e Stacy,
semicerrou os olhos quando percebeu que o motivo para ter saído dali não era
tão importante, até desejou voltar de onde viera, mas então o estalo continuou
e a atraiu novamente, fazendo-a esquecer do ódio que há pouco sentia. Como num passe de mágica.
Kate
continuou caminhando, tentada cada vez mais – por uma razão desconhecida e um
desejo estranho – a descobrir de onde o estalo vinha ou o quê o provocava.
Outra vez o estalo soou pela casa, e mais outra e mais outra... Foi quando Kate
percebeu de onde ele vinha e seguiu certa de que logo chegaria até ele.
Pisou
na sala de estar e não entendeu o que viu ali.
Tudo
estava perfeitamente calmo e o estalo parou de ecoar, embora ela soubesse que
era daquele cômodo que vinha. Kate caminhou hesitante e curiosa pela sala,
olhando todos os objetos e mobílias, tentando descobrir o lugar daquele estalo
– e o porquê de tanto atraí-la.
Crec.
Ela
girou num pulo e seus olhos encontraram o lugar de onde o estalo veio bem a
tempo. De início, um sorriso vitorioso e orgulhoso tomou conta dela, mas foi
substituído pela confusão e espanto. Aproximou-se do lugar e virou rapidamente
o rosto para o lado, ouvindo ao longe os gritos de Chris, outra vez desejou ir
naquela direção, mas suas pernas não obedeceram e, por mais estranho que isso
fosse, ela ignorou e inclinou o corpo ao se aproximar.
Olhou
com mais atenção quando ouviu outro estalo, ele se repetia agora com menos
intervalos de tempo. Mal podia acreditar que aquela coisa estranha – e era como
se algo estivesse descendo, sinalizando sua chegada como passos anunciam –
vinha da lareira. Pôde notar que aos poucos ela cuspia poeira, algo estava
realmente... Descendo!?
Crec.
Crec. Crec. Crec. Crec. Crec.
-
Mas, que diabos, é isso…
Kate
não teve tempo de cogitar as chances de obter uma resposta.
A
poeira que antes saía timidamente tornou-se uma lufada forte capaz de jogá-la
metros pela sala. Ela gritou forte quando bateu as costas em algo rígido que a
fez voltar como uma bolinha batendo em um muro. Suas mãos procuraram o lugar
onde a dor se concentrava e ao fazê-lo, mal pôde encostar as pontas dos dedos.
A dor era alucinante e aguda, seus gritos aumentavam conforme a dor.
Logo
percebeu que a dor nas costas era o menor de seus problemas.
Notou
que alguém se aproximava, e embora a visão estivesse turva devido à dor, ela
conseguiu identificar o relevo do indivíduo e suas roupas estranhas... Não, não
eram estranhas. Eram perfeitamente normais para aquela época. Mas havia algo a
mais naquilo, seus olhos... Os dentes, e o modo como sorria. Kate gritou
novamente, agora de medo.
Stacy
e Chris chegaram à entrada da sala de estar bem a tempo de presenciar a cena
que se desenrolou diante de seus olhos incrédulos e amedrontados: a criatura
acabara de cravar o objeto cilíndrico no pescoço de Kate, de modo que sua
extremidade atravessou o corpo dela até as costas, ela sequer teve tempo de
implorar por piedade.
O
homem vestido à caráter retirou o objeto e o corpo de Kate bateu com força no
chão. Ele se apoiou sobre a arma que acabara de usar contra ela e soltou uma
gargalhada gutural, de modo que ecoou por toda a sala de estar como o aviso de
uma ameaça iminente. Ele contemplava o corpo com orgulho, bem como um pescador
faria ao posar para uma foto com o peixe de 200kg que acabara de capturar. Mas
havia uma diferença entre aquele homem e um pescador: o segundo jamais teria nos
olhos a perversidade e insanidade que o primeiro tinha. Jamais.
Stacy
gritou ao ver a cena. Sua garganta com certeza não mais existiria depois
daquilo.
Graças
ao grito, o homem percebeu a presença daqueles dois. Ele gargalhou forte e
lançou um olhar sadicamente divertido na direção de Stacy, contemplando Chris
logo em seguida.
O
garoto deu alguns passos para trás e por instinto agarrou no pulso de Stacy
para que viesse junto. Ao fazê-lo, notou que o homem se moveu, apenas girou
sobre os pés com a ajuda do objeto que mais lembrava uma bengala colorida em
vermelho e branco – sem contar a coloração mais escura do sangue -, e o ergueu
no ar, apontando na direção dos dois. Balançou a cabeça negativamente,
reprovando a tentativa do garoto e gargalhou em seguida.
- Vocês dois, fiquem onde estão! Eram os presentinhos que faltavam.
HOHOHO.
Os
olhos de Chris se arregalaram de medo. Não entendeu o que o homem quis dizer e
tudo o que desejava era estar longe dali. Ele apertou o pulso de Stacy e tentou
puxá-la, mas se deteve ao notar que ela estava petrificada com aquelas palavras,
como se soubesse o que significavam. Uma lágrima desceu-lhe o rosto e caiu no
chão num pesar ensurdecedor. Chris
sentia-se um idiota dos filmes de suspense que sempre é o último a tomar
conhecimento das coisas.
Ele
puxou o corpo de Stacy com violência e notou o homem dar um passo à frente.
Pouco se importava com o que aconteceria, ele fugiria dali a qualquer custo.
- Tsc. Tsc. Aonde pensam que vão, crianças?
Chris
parou ao ouvir aquelas palavras e lançou os olhos na direção de Stacy. Porque ela não se mexe? Porque ela não corre?
Apertou ainda mais a mão nela e, olhando com impaciência em seus olhos
amedrontados, revezando entre ela e o “homem”, gritou:
-
Que merda é essa?! Quem é ele?!
Então
obteve a resposta, mas ela veio do lugar de onde menos esperava: uma quarta figura,
fraca e arquejante, rompeu a cena. Todos olharam em direção à ela e notaram uma
um alguém manco e deplorável surgir com dificuldade no ambiente.
-
Ele é... - Evan se arrastava com dificuldades, com a mão na altura do ombro
estancando um ferimento que jorrava uma pequena quantidade de sangue. - Ele é o
Papai Noel. - Conseguiu completar,
por fim.
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