17 de maio de 2018

Suco de caju tem sabor de conforto




Kiara está bêbada.
Há quem diga que o maior sinal de embriaguez seja a falta de sensibilidade no nariz, mas no caso dela é a sensação ainda mais incômoda de inchar o rosto, a carnezinha sobre as pálpebras intensificando a cara já tão natural e caçoada de sono – para alguns, um charme, para outros, uma piada.
Então ela volta para casa, tira as panelas da geladeira e esquenta a comida. Em algum ponto da noite, cai no sono. Na manhã seguinte, quando o celular desperta antes das seis horas, desce as escadas e descobre que as panelas foram estocadas e organizadas na geladeira, indicando que conseguiu guardá-las de volta: bêbada responsável. Ela vai ao banheiro, esvazia a bexiga quase estourando. Volta à geladeira e pega a garrafa com gelo – um litro de água gelada, um litro de água bebida. Mas só isso não resolve, pois a sede não é de ressaca. Ela conhece vários tipos de sede, sabe a textura seca da língua e do céu da boca, sabe como a garganta ressaca quando anda por tempo demais sob sol forte ou como os lábios racham quando passa três dias inteiros sem hidratar corretamente o recipiente ao qual chama de corpo.
Este tipo de sede, o tipo de agora, no entanto, é o mais frequente.
Kiara apanha a insulina, aplica na coxa. Em uma hora, talvez uma hora e meia, a sede terá cessado e o açúcar que entope as veias, que degrada nervos e que a consome as córneas terá diminuído, e com ele a sede também. Até lá, a moça enche outro copo e desce mais um litro de água gelada. Regressa ao quarto e cai na cama. Duas horas depois, o celular desperta. Levanta, a sede já quase inteiramente sanada, a bexiga cheia de novo. Vai ao banheiro, senta, batuca os pés descalços na lajota branca. anômala, apática, une os joelhos, espreme as juntas e tira a água do meio das pernas. Limpa-se, embola o papel num amontado desengonçado, joga no lixo. Desce as escadas, prepara o café. Sobe as escadas, separa a roupa, liga o ferro, passa a roupa, desliga o ferro. Banheiro. Chuveiro. Outra mijada. Coloca a roupa, penteia os cabelos. Antitranspirante Dove (ou o que resta dele). Calça, perfume e calcinha – não exatamente nessa ordem. Desce as escadas, torra um pão, coloca o café na xícara. Liga o celular, música alta. A primeira é Felipe Ricotta, depois troca para The Smiths. The Smiths duas, três e cinco vezes – a mesma porra de música: as mesmas duas garotas dentro de um carro que se esmigalha contra um ônibus.
– Tá pensando nela, né? – Kiara pergunta forte em desmedido, alto e bom som entre as paredes solitárias da cozinha. – Isso, vai: começa o dia desse jeitinho, sua pau no cu do cacete.
Xingar-se é hábito, rotina diária. Sumariamente receitado pelos psicólogos de esquina.
As instruções que segue nesta manhã (segundo o passo-a-passo impresso no papel pregado na geladeira) dizem que ela só deve comer até as oito horas. São sete e cinquenta e nove quando engole o último pedaço de pão. Penteia o cabelo uma vez mais e em seguida bagunça de novo. Sai de casa e pega carona com o bom e velho tio Edgar. Ao chegar à clínica chique, em prédio futurista no centro da cidade, com pessoas bem-educadas e de sorrisos intensos, ela descobre que o médico chegará somente dali a três horas. Três horas. Ainda são oito e ela não pode comer nada, e pior: não pode sequer beber  nada, muito menos água. Kiara ainda está desidratada, mas por sorte a insulina resolveu algo, o mínimo que seja – a pele está menos quente, a sensação de falsa febre por causa da hiperglicemia agora menor, o coração menos acelerado e a respiração já controlada. O problema é que com o passar das horas sem comer nada a insulina faz efeito demais, e é a hipoglicemia quem começa a dominar o jogo. Tio Edgar está há horas ao lado da sobrinha, mas ela não pode avisá-lo sobre a tragédia que o corpo anuncia neste momento, pois seria um desperdício de tempo, de viagem, de ticket de estacionamento e de paciência cosmológica. Ela levanta da cadeira, embora não deva. Não deve gastar a energia que o corpo tão pouco dispõe, mas teimosa, dá uma volta. Precisa aliviar o tédio, a ânsia, o desespero. Na clínica não há revistas: nem Veja, nem Istoé, nem Caras, nem Recreio, mas há A Arte da Guerra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
A atual professora de Literatura Portuguesa Moderna de Kiara, adiantando as cenas da próxima disciplina, fala a respeito de Saramago a todo instante: Saramago, Saramago e Saramago. Saramago isso, Saramago aquilo. Saramago que tão bem conhecemos por um de seus romances mais espetaculares:
Ensaio
sobre
a cegueira.
Internamente, Kiara está rindo.
Externamente, a boca da paciente se retorce num espasmo de ironia. 
Se pudesse xingar a si mesma, Kiara o faria.
O que faz, no entanto, é se sentar de volta. Alguém a chama pelo nome – um rapaz vai até ela com um colírio e pede para que não abra mais os olhos após pingá-lo. A moça obedece, comenta duas vezes com o tio, entredentes, que seu maior problema agora é não dormir (mas não menciona a hipoglicemia e o quanto precisa comer e repor as energias). Por mais três vezes o rapaz retorna e coloca o colírio que (todos sabem) dilatará as pupilas – ela já fez isso antes, todo mundo pelo menos uma vez na vida já fez isso antes, a questão enigmática é que neste momento ela não sabe o que realmente a aguarda do outro lado da sala e nem o porquê o médico exaltara a palavra “complexidade” enquanto rabiscava a guia dos exames para mandá-la até ali, ali, naquele lugar, naquele exato instante.
Então pensa que se dane, e dá de ombros. Tem dado de ombros há muito tempo na vida. Paralelamente, monta uma série de piadinhas para caso a verdade que se anuncia realmente se mostre fatídica. Uma delas é a respeito da fantasia de Demolidor (a). Há uma edição em que Matt Murdock vai fantasiado de Demolidor a uma festa de Halloween, isso sim é piada (Kiara viu a cena na timeline Dela, a mulher de rosto borrado em pixels que povoa sua memóriaporque Ela gosta dessas coisas e obrigou Kiara a assistir a série do herói na Netflix, aquela com o ator fofinho e cabeçudo).
Kiara consegue ouvi-la dizer, lá no fundo da memória enquanto comia um prato de frango assado com arroz, farofa e um copo gelado de água:


Sua maldita comida preferida, né, filha da puta linda?
– Ele é muito cabeçudo. – Rindo, a comida pulava sem querer para fora da boca. – Mas também é fofinho.
Às vezes Kiara também gosta de xingar quem muito deseja odiar, porém tão pouco odeia. Ajudava a lidar com as coisas.  
Novamente o mesmo rapaz a chama pelo nome e a moça é conduzida pelo braço à outra sala. Uma senhora de falso sorriso acolhedor aplica nela uma substância.
– É contraste – avisa a senhora. 
Kiara fica surpresa que não esteja falando sobre o recurso fotográfico ou de edição de fotos (isso foi outra piadinha).
Ela também avisa que sua urina ficará extremamente amarela, já que o organismo começará a expelir aquela merda feito um desgraçado, e que talvez as veias até fiquem roxas. 
– Mas não é hepatite. – A senhora ressalta, abrindo um sorriso. 
(Uma semana depois, Kiara continuará mijando uma substância amarela demais que quase tem certeza de não ser urina).
Novamente a conduzem à outra sala, dessa vez uma cheia de equipamentos estranhos. é quando a moça finalmente compreende: isso é uma abdução alienígena, 
A mulher na memória adoraria saber que vim parar aqui, Ela, a mulher borrada, o eco na cabeça; Ela com certeza me ajudaria com uma piadinha nova. Mas Kiara está divagando outra vez, escapando para longe demais da realidade numa reação defensiva e saudosista, sobretudo saudosista.
O médico (que finalmente chegou às onze em ponto) dita um bocado de regras e ordens, sempre com um sorriso agora verdadeiramente acolhedor: sente-se em na cadeira, Kiara. Posicione o queixo. Isso. Olhe para a luz vermelha. Flash. Olhe para baixo. Flash. Para a esquerda. Flash. Para a direita. Flash. Olhe de novo. Flash. Já fez algo com laser alguma vez? Flash. Tem uma marca de laser aqui. Flash. Não dilatou direito, preciso fazer outra vez. Flash. Outra vez. Flash. Mais uma. Flash. Isso, Kiara, já vai terminar. Flash. Olhe para a luz vermelha. Flash. Abra os olhos. Flash. Abra bem os olhos. Flash. Pronto, tudo certo. Pode ir.
Ao final do exame e com a visão completamente vermelha, Kiara se sente o próprio Ciclope em pessoa: um Ciclope sem Jean, um Ciclope com a Jean que olha para o Wolverine que também olha para a Jean, uma Jean que não está olhando para o Ciclope, que nunca olha para o Ciclope. Ela (aquela desgraça linda de silhueta fodida e de rosto intencionalmente borrado em pixels na mente de Kiara) também gostava dos X-Men. Recordando agora, havia um fragmento sobre o assunto:
– Esse filme é um lixo. – Ela diz dentro do eco perdido que há na cabeça de Kiara. – Mas o Ciclope é fofinho.
Divaga.
Tem divagado demais ultimamente.
Uma vez mais guiada pelos braços, a paciente senta em uma cadeira. A enfermeira de falso sorriso acolhedor tira a agulha de seu braço. Aperte aqui. Ela aperta. Uma funcionária agradável pergunta se deseja suco de Caju. Ela aceita, por pouco esquecendo completamente da própria hipoglicemia. Ela aceitaria qualquer coisa que pudesse engolir e que cortasse aquele mal-estar, exceto alguns fluídos humanos (sobretudo de procedência masculina). A funcionária agradável traz um copinho de suco de caju e um pacotinho de Clube Social. Kiara está desesperada de fome, as mãos trêmulas. O médico passa com um técnico ao lado. Outro técnico passa por ela, todos eles estão com aquele olhar estranho, o mesmo que os dois médicos antes daquele exame direcionaram a ela quando tiveram de repetir a palavra “edema”. O mesmo olhar que todos eles direcionam a ela quando repetem a palavra "edema".
Fodam-se todos.
Kiara dá de ombros – já mencionou a moça o quanto tem feito isso ultimamente?
Pelo menos estou bolando piadinhas.
Então ela se pergunta se o suquinho é procedimento padrão enquanto se preparam para dar as notícias. Teria o suco de caju propriedades acalentadoras como todo bom, grande e engelhado maracujá? Teria o suco de caju sabor de conforto? Seria o suco de caju uma espécie de colchão inflável usado com dublês de cinema para te proteger das quedas? De qualquer forma, diante da fome que a devora, sucos de caju são a melhor coisa da vida. Ela começa a achar que o suquinho de caju talvez seja a forma mais profissional e psicologicamente elaborada (prevista em todos os manuais médicos) que têm de anunciar as más notícias.
No fim, enquanto Kiara lentamente dá um passo após o outro fingindo que enxerga o caminho, fingindo que está bem; no fim, do mesmo jeito que fazia na noite anterior fingindo sobriedade, a recepcionista avisa:
– Venha buscar o resultado em três dias úteis, mas venha acompanhada.
Seria um aviso?
Seria um alerta para vir preparada para as notícias ruins?
– Darão mais suco de caju? – Rebate com um sorrisinho tão dúbio que faz até corar o rosto maquiado da recepcionista. Um corar estranho. Um corar que todos gostam de receber de volta. Vitoriosa, Kiara sorri:  – Nesse caso, eu venho.
No caminho de volta, o bom tio Edgar se mantém calado, rindo pouco das piadas feitas pela sobrinha ou pouco mantendo a atenção nelas. Há um silêncio constrangedor enquanto ele se reveza entre risadas perdidas e trocas silenciosas na embreagem. A moça olha para o lado de fora e fecha os olhos tão afetados pelo clarão exacerbado da dilatação e do sol fodido de Belém.
Tá tudo bem. Diz a si mesma, internamente. Tu sabes, mana, é como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente.
Ela dá um sorrisinho. Está ficando cada vez melhor nisso.
Ba dum tss.