Arte de Michael Zulli para "Facts in the Case of the Departure of Miss Finch", Neil Gaiman. |
Leio a verdade sobre o desaparecimento da srta. Finch. É a
penúltima adaptação do encadernado. Comprei a edição há mais de um ano. Li as
três primeiras narrativas há mais de um ano. A segunda, lembro bem, foi na
varanda. Criaturas da Noite: sobre um gato preto protetor que todas as noites
se engalfinha com o Diabo – um touro, um minotauro, uma mulher, um gato
selvagem odioso – para proteger a casa e a família, subvertendo a folclórica
imagem dos bichanos pretos que trazem azar. Enquanto eu lia, haviam dois gatos
de rua perto de mim naquela tarde. Fiz um vídeo. Naquela varanda eu nem
desconfiava do futuro. Naquela varanda fizemos história. Você fez história.
Dormiu demais. Sonhou demais. Confraternizou demais. Brincou, riu, ralhou,
viveu demais. Contou-me histórias, quando deitávamos na rede e nos embalávamos.
Eu, muito pequeno, cabia embaixo dos teus braços. Até hoje, lembro de uma
história que inventei e que você parecia tão atento e interessado: a do
macaco-folha. Era um macaquinho assombroso que tinha asas debaixo dos braços,
quais folhas, e ele se camuflava no topo das árvores, igual àquela que tinha
num terreno do outro lado da rua, gigante, que um dia durante uma tempestade
foi atingida por um raio, tombou por sobre o muro e caiu na rua. Virou
reportagem, dessas que não se encontra na internet porque isso foi muito, muito
antes da internet e dos smartphones. Até seu Antônio, vizinho fofoqueiro e que
não dá muito as caras hoje em dia por conta da idade, deu entrevista. RBA. O
Liberal. Foi o maior hit de sucesso que a rua Esperanto conheceu. Era naquela
árvore que vivia o macaco-folha. Com a árvore, foi-se o macaco. Com os anos,
foram-se as folhas. O terreno foi adquirido tempos depois. Virou um residencial
que hoje toma quase todo um quarteirão. As coisas mudam, mas nem todas. Eu
ainda invento histórias. Ainda tenho certa predileção por contá-las. Não são as
melhores. Nem são contadas da melhor maneira nem lidas por muita gente.
Irrelevantes. Esquecidas. A gente faz o que pode. Leio a verdade sobre o
desaparecimento da srta. Finch agora. No momento desta sentença, ainda não a
terminei – o público acabou de entrar nas galerias subterrâneas de Londres,
recentemente apresentada ao Teatro dos Sonhos Noturnos. Se eu disser que leio
este encadernado sem sentimentos ruins, estaria mentindo. Tem sido uma tortura.
Caso contrário, estas palavras nem se fariam existentes. Lembro que a edição
chegou pelos Correios naquela pausa de quase 8 meses em que estivemos na sua
casa. Foi uma bagunça. Foi uma confusão. Mas sempre cabia a todos nós, hóspedes
temporários: quatro pessoas e duas gatas, as nossas. Mas cabíamos. Com esforço,
caberíamos de um jeito ou de outro, porque você nunca diria não e estaria
sempre sorridente, alegre por nos ver ali, por nos ter por perto de novo. A
reforma aqui de casa foi demorada, e, portanto, nossa estadia na sua casa
também. Ainda bem. Foi a minha última
extensa morada ali, meu último extenso tempo contigo – mas ninguém sabia de
nenhuma dessas coisas, porque se alguém disse que o amor é um cão dos diabos, é
porque não parou pra pensar sobre o futuro. A gente olha sempre pra trás com
uma sapiência inútil. Acho que Deus é esse grande sujeito que a tudo pode, mas
pouco sabe e vice-versa. Porque quando Ele sabe, não pode. E quando pode, já
passou. Passou. Li Criaturas da Noite naquela varanda há mais de um ano. Disso
me lembro tão bem. Naquela varanda em que fizemos história, em que nossa
família fez história. Agora, continuar a ler este encadernado é penoso. Embora,
materialmente, uma coisa nada tenha a ver com a outra, apenas o meu costumeiro
hábito de abandonar pela metade todas as leituras que dou início. Difícil
pensar que quando comecei a ler, você estava ali. Agora que termino, você já se
foi há meses. Por que machuca tanto? Lembrar. Pensar. Vincular um fato
aleatório a uma época específica. Por quê? Naquela varanda onde você enfrentou
o assaltante e escapou de um tiro e se safou de morrer, onde esteve por
diversas vezes sentado, falando a meu respeito e sobre como eu havia publicado
mais um livro – embora meu nome só estivesse espremido no meio de tantos outros
autores e embora o livro nem fosse meu nem necessariamente só meu – enquanto eu
fingia não escutar, porque sempre tive vergonha de ser exageradamente louvado,
admirado, exaltado. Terminar esta leitura vai ser penoso. Tem sido doloroso.
Pensar que a comecei naquela varanda, onde moramos por 25 anos e, agora, quase
5 meses pra cá, a casa nem é mais nossa, nem te tem mais nela nem a nós, nossa
família ou nossas cores ou nossas vozes. Tudo porque você não está mais lá nem
nunca mais estará. Tudo porque a vida é um sopro, não de rápida ou de
irrelevante, mas de inconstante: hoje estamos aqui, amanhã, com sorte, talvez.
Muito talvez. Terminar esta leitura tem sido um fardo que me traz a estas
linhas talvez desconexas, sem muito sentido, sem muita coesão, sem muitos
parágrafos, sem métricas, sem atenções, sem acabamentos. Leio a verdade sobre o
desaparecimento da srta. Finch, mas isto é só ficção. Divertida. Interessante.
Passageira. Não me ajuda a lidar com o teu desaparecimento físico. Ajuda? Só me
faz lembrar de um ano atrás. De mim sentado na varanda. Lendo sobre o gato
protetor que todas as noites lutava contra o Diabo para proteger a família e a
casa à beira da estrada. Só me faz lembrar daquele dia em que a vida era mais
fácil porque a tua ausência ainda não existia. Gatos podem nos proteger do mau
e até a srta. Finch pode desaparecer em uma câmara subterrânea nos abismos de
Londres para realizar seu improvável sonho de biogeóloga. Tudo isso a ficção
possibilita. A ficção pode tudo. As histórias são capazes de mudar o que há aqui
dentro, mas são incapazes de trazer o passado real de volta. A realidade, tão
precária e deficiente, não possibilita o retorno real da carne desfalecida ou
das cinzas consumadas. Por isso contamos histórias, por isso macacos-folha
existem, por isso "o consumo de ficção independentemente da mídia tem um
papel muito mais importante do que somos capazes de perceber. É verdade, não
somos médicos e não salvamos vidas, mas talvez salvemos sonhos, fantasias,
sentimentos", diz o prefácio que nunca teve a intenção de se encaixar no
teor destas palavras, mas ironicamente o faz. A realidade, falha, tão falha,
não possibilita o dom de voltar, de congelar o relógio, de lá confraternizar ou
de ali pra sempre ficar quando você ainda existia. Quando você ainda estava.
Quando a casa ainda era nossa – e a varanda e as memórias e as histórias.
Quando a vida era menos vazia e o luto não havia. Porra. Que Inferno. Que
saudade. Outro dia, muito depois deste texto finalizado, e que agora mais uma
vez o altero (acho que finalmente cheguei à versão final), sonhei contigo. Um
sonho certamente influenciado pela construção destas palavras e pelo martírio
deste sentimento. No sonho, eu te abraçava. Confessava angústia. E te
perguntava qual o sentido disso? Qual o sentido da saudade? E você, sorridente,
me respondia que significava que valeu a pena. A vida e o que foi feito dela valeram pena. A ficção me ensinou, em um diálogo banal de blockbuster de
verão, que o luto é senão o amor que perdura. Acho que é verdade. A realidade
massacra. Ela dói e traz angústia. Mas o que são os sonhos senão a
representação ideal da realidade? O que são os sonhos senão a nossa forma
particular de fazer ficção, de contar histórias, de vivê-las, de relembrá-las e
de senti-las? Acho que agora entendi, embora a dor ainda esteja aqui. Entendi
aquele seu passeio aqui nos meus sonhos. Aquele abraço macio. Aquele sorriso
imortal. A ficção pode tudo. Ela combate a saudade, luta contra o luto. Torna o
amor eterno. E se os sonhos são ficção, então a ficção é eterna. Esse é o
melhor final que eu posso dar a este texto. Me desculpa. E obrigado.
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