12 de maio de 2020

Silêncio é para os azarados




Veja, o silêncio sempre foi constante. Algo do qual escritores e fumantes partilham muito bem: estes momentos de silêncio em que não há ninguém por perto.
O fumante clama por um espaço, afasta-se de todos, respeita aqueles que estão em volta. Distancia-se, fala de longe, quer espaço para si. Está sempre sozinho, ele e os pensamentos, os demônios queimando como um dragão ocidental, não o velho sábio chinês, mas o velho dragão europeu cheio de cobiça e de significados pejorativos, símbolo daquilo que Freud combateria.
O escritor partilha da solidão: precisa estar sozinho. Não veja como um ato sagrado de iluminação profunda, não. Veja como um ato de concentração. Graciliano Ramos comparou o ato ao das lavadeiras de Alagoas à beira do rio. Há muito tempo, durante uma aula, comparei o ato ao da retirada do açaí. O silêncio pode estar durante, mas é a concentração quem triunfa. A dedicação. O aqui e o agora.
Na verdade, para o escritor, o silêncio vem depois: essa ausência de testemunhas da qual tanto estou quase farto de testemunhar.
Ele trabalha o texto. Dele são exigidos concentração, técnica, habilidade e afinco, demasiado afinco. Depois, vai ao mundo. Espalha a palavra como um evangelista fracassado. É aí que vem o silêncio: o silêncio da não resposta, do desleixo, do desprezo.
Conte uma piada, todos rirão.
Autodeprecie-se, todos se divertirão.
Escreva, todos calarão.
Poucos se importam, poucos ligam. Imagine o absurdo de com aquelas palavras fazer profissão, sustento? Absurdo! Absurdo! É maluquice. Pois ler exige tempo, atenção e dedicação. Tempo? Poucos têm. Atenção? Pouquíssimos de nós. Dedicação? Apenas os apaixonados.
E paixão é coisa rara.
Paixão é coisa para fumantes
Paixão é coisa para aqueles que desfrutam do silêncio e dele vivem.
Paixão é para aqueles que tudo o que recebem em troca não são palavras amigas ou reconhecimento, mas a ausência de tais deleites, a ausência de olhares, a ausência de respostas.
Paixão é para poucos.
E o silêncio é para os azarados.