Old French Fairy Tales by Virginia Frances Sterrett (1920) |
as winter approaches
the panted turtle burrows
into the mud
to avoid the harsh cold
and holiday family parties.
(Autor desconhecido)
Nesta
cidade, dizia-se que Celina era um
recipiente podre, um corpo ambulante de drogas vivas. Olhavam e viam nela a
figura carimbada de doces, ácidos e coisas mais. Coisas mais porque eu não
entendia tanto sobre drogas como gostaria de entender para confeccionar minhas
linhas ou o quanto aparentei conhecê-las tão empiricamente em outras histórias,
portanto deixava a cargo dos aventureiros. Talvez, se a encontrasse por aí,
quem sabe me ensinasse não com exemplos práticos, mas com toda a forma didática
com a qual possuía a capacidade de esclarecer tais dúvidas de roteiros
psicodélicos e melhores rotas de fuga.
Celina já era uma professora formada com
credenciais certificadas, honras aos méritos e uma infinidade de outras
parabenizações no assunto.
Nesta
cidade (e aparentemente em todas as outras), ter conhecimento e vivência da
causa parece uma regalia social garbosa, detentora de um charme bobinho,
transcendental e espiritualizado. Era possível conhecer uma trupe inteira de
monges diplomados que entupiriam frotas de kombis lotadas, com viagens às ilhas
metropolitanas em passeios com cavalos estranhos e seres fantásticos mais
ainda. E quanto mais especializado na área, melhor seria seu dinamismo social.
Outro
dia, sem esperar por isto, reencontrei Celina. Algo aqui dentro fantasiava o
reencontro como em uma letra de música: eu entrando em uma cafeteria e ela ali,
sentada. E o resto seria como em uma letra de
country-meio-blues-com-final-triste. Mas esse é o final planejado de outra
narrativa em outro plano de lobos interdimensionais, aqui nem caberia citação.
No entanto, foi um encontro normal de conversas normais.
—
Oi, como vai você?
—
Ah, eu vou bem — era a minha resposta automatizada. A resposta de Celina não automatizada era um sorrisinho
cabisbaixo, típico dos que se acostumaram a responder sinceramente a
perguntas.
Em
seguida, vieram as notícias sobre a mãe, sobre a irmã, sobre o mergulho fundo
dado pela velha e sobre o mar colorido e destoante no qual ela mesma, como
filha, também mergulhara. Sentamos não em uma mesa para um café, mas para uma
gelada. Celina tratou logo de acender um cigarro e me ofereceu, coisa que nenhuma de nós andava negando durante aqueles tempos. A moça divagou por mais
lembranças de caminhos desastrosos dos quais acabamos nos perguntando o que
merecíamos para tomá-los. Contou-me sobre a história do soco e do olho num interior
do estado, um road movie decadente sobre o qual nunca se cogita um dia
participar. Contou-me uma porção de histórias com aquela voz alterada que já
não mais parecia com a de antes, mas literalmente a de outra mulher, porque os
anos mudam nossas atitudes, nossos rastros, nossas impressões digitais e até
nossas cordas vocais. O formato do rosto de Celina mudara, mas nesse quesito até o meu.
Nossos corpos estavam diferentes: os cabelos dela menos castanhos, menos
jovialmente vivos, agora apenas um úmido caído, realçando a ponta das orelhas,
enquanto os meus estavam mais quebradiços e grossos, um peso interno
calcificado, os pés de galinha gradativamente mais agressivos e um mar grisalho
cheio de ressaca batendo na orla. E tudo isso em menos de uma década desde o
início daquela aventura.
—
Mas acho que é assim — disse ela. — Acho que a vida é mais ou menos isso.
—
Pois é, né? — eu disse por fim, sádica por defesa, porém sorridente em meio ao
peso psicológico das melancólicas conclusões não pronunciadas pela boca.
Foi
assim que Celina também sorriu, porque
não parecia ser o tipo que costumava extrair graça das desgraças, somente por
não possuir o hábito. Só isso explicava o modo que o fez naquele instante com
um avivamento específico nos olhos castanhos (que também andavam meio apagados)
como se a possibilidade de fazê-lo se mostrasse uma experiência inédita. E o
ineditismo da ocasião alegrou-a. Descobriu que podia rir das coisas tristes,
tornar o peso delas menos pesado, embora voltem a nos esmagar logo em seguida,
como bem costumam esmagar os bons e todos os pesos.
—
Outro dia — falei, aos sorrisos — coincidentemente li algumas coisas suas…
A
resposta que Celina deu, mesmo após uma década, foi a mesma de antes:
—
Ah, não. Por que você fez isso? — Então se enfiava dentro do casco. Quando
questionada, dizia que eu não devia ter feito aquilo, que eu não devia ter ido
ali, que agora sentia-se julgada pela forma abstrata com que escrevia, porque
não era boa como eu, como se eu fosse boa, como se eu fosse a melhor, como se
eu não houvesse partido para os olhos do mundo inspirada no modo como ela já
caminhava nele.
—
Às vezes você esquece que é boa nisso.
–
Porra, não acredito. Você não devia ter feito isso, xxxxxxx.
Um
fato sobre Celina era que ela ainda usava os apelidos cafonas, os apelidos
perdidos de éons imemoriais. Porém quando percebeu a atitude, recolheu-se ainda
mais dentro do casco, bebericou a cerveja e limpou a espuma sobre o lábio
superior com as costas das mãos não do jeito tectônico e desengonçado como eu
fazia, mas daquele jeito lento e discreto das tartarugas.
De
dentro do casco, ela tentou falar:
—
Eu não sou tão boa quan…
E
cortei:
—
Eu perdi aquela forma de escrever — molhei lábios e garganta na cerveja. —
Aquela forma sinestésica. A mistura das metáforas… Gostava de fazer aquilo,
tipo como você ainda faz.
—
Um bando de metáfora piegas.
—
Que seja — dei de ombros. — É como se não houvesse mais coração nas coisas que
faço por aqui. Ao contrário de ti.
—
Ainda somos jovens.
—
Cada dia menos — soltei, melancólica, mas agora sem sorrisos. — Cada vez não
mais.
—
Você ainda tem coração. Deve haver em algum lugar aí dentro, caso duvide
ultimamente, xxxxxxx.
Fui
tomada pelo silêncio instantâneo. Não que eu considerasse um coração jovial
ainda batendo neste peito de alma tão tísica. Fraco, ele ainda estava por aqui,
curvando-se às topadas que o confrontavam e entregando-se cada vez menos aos
delírios de sonhos. Mais cansado que resiliente, não estava morto, mergulhava
apenas em uma bradicardia solene. Apesar disso, fosse a terceira garrafa de
cerveja, fossem as palavras de Celina,
fosse o apelido agora dito de maneira menos acanhada, a tartaruga mantinha-se
no casco, mas lá de dentro me sorria. E estranhos galopes se avivaram.
—
E o seu? No que anda o seu coração ultimamente? — Cortei, tarde, aquele
constrangimento.
—
Acho que em nada.
—
Como em nada?
—
Em nada, sabe? — Bebericou a cerveja. Os olhos baixos, um castanho que nem mais
era castanho. — Só em nada — as sobrancelhas arquearam rapidamente. Ela nunca
ousou me olhar nos olhos ao responder aquilo. Se tivesse, eu conheceria o peso
do nada.
Ao
invés disso, assim como eu, cortou o assunto, abrindo um sorriso que
contemplava apenas as boca, porém não os olhos. Desviou-se dele com exemplar habilidade,
dissolvendo minha preocupação naquele nada para mais tarde, quando eu
deitasse na cama e disso relembrasse brevemente; desviou-se com exímia
esperteza, esfarelando minhas conclusões e deixando-as mortas por meses
adiante, quando eu só retornaria a elas já tarde demais.
As
conversas que vieram no restante daquela noite foram de todo banais: uma leve
discordância política, uma piada sobre nossas configurações astrológicas, uma
atualização sobre nossos novos pets – pois o cachorro dela, Perseu, falecera há
três anos – e mais quaisquer coisas pequenas que lembrarei com amargor de não
insistir em questionar.
O nada
de Celina esteve evidente em cada
conversa não aprofundada de detalhes omitidos, em cada grande coisa que tratava
com pouco caso, como se a ascensão profissional pouquíssimo valesse comemoração
ou como se a vitória de consumir cada vez menos um sem-número de doces, ácidos
e coisas mais não fosse um contagiante avanço, embora sua reputação pela cidade
ainda a precedesse. Um grande e desastroso nada, latente nas entrelinhas
de suas frases, berrando ao fim de cada discurso vago. Ainda assim, ela
permaneceu sentada naquela mesa por horas e horas, com um evidente interesse em
continuar, apesar do desinteresse em falar de si mesma.
O nada
esteve ali, aguardando para ser percebido.
Não
percebi.
Despedimo-nos
com um abraço longo e apertado. Aqueles olhos castanhos tinham no nada
de seu olhar uma mensagem que me escapou. Seria o convite que não fiz? Seria a
deixa para estender a noite de conversas banais? Eu nunca soube.
Despedimo-nos como se não quiséssemos uma a presença da outra por toda a
madrugada, por todo o resto da vida. Despedimo-nos com a falsa certeza de que
voltaríamos a nos encontrar.
Meses
depois, a notícia de sua partida me atingiu desprevenida. Celina era uma tartaruga. Uma longeva criatura
com a vida engolida por um impiedoso nada. Isolou-se no próprio casco.
Já não via sentido em sair dali, pois não via sentido no mundo fora
dele.
Dentro
do casco, a tartaruga adormeceu com uma alta dosagem de Alprazolam. Deitou-se
no chão do próprio quarto e ali foi engolida pelo grande nada que
naquele encontro deixei passar.
Nos
fragmentos que me são a memória, junto aos galopes que deixaram de fazer
barulho, só os ecos de uma distante conversa ainda me assolam:
E
o seu? No que anda o seu coração ultimamente?
Acho
que em nada. Em nada, sabe?
Só
em nada.