Change that song, Mr. DJ
All we wanna hear is rock 'n' roll tonight
(Change that song, Mr. DJ - Tim Timebomb)
I.
Angakkuq
Como um punhal atravessado na noite, a
rota 33 cortava a pequena cidade agrícola sem nome ao meio. O que há mais de
duas décadas havia sido uma importante rota comercial de insumos e
fertilizantes, hoje não passava de um ponto monótono no meio do mapa, mera
parada obrigatória – mais por falta de opção do que por motivos atraentes –
para aventureiros e viajantes na pausa de quinze minutos que os ônibus
interestaduais faziam ali.
O local ficava à beira da estrada: não
um terminal, mas um antigo e já desativado posto de gasolina com pequeno
estacionamento e uma simplória e abandonada galeria de lojas. À época da
inauguração, foi um dos principais e mais atrativos cartões postais da cidade –
a lista não era verdadeiramente extensa nem sequer existente. O prefeito, cuja
família dominava o cargo há cinco gerações no passado e dominaria adiante no
futuro, estampou propagandas em outdoors num raio de quilômetros, convidando os
viajantes a desfrutarem da diversão.
A prosperidade, entretanto, não passou
de areia escorregando pela cintura da ampulheta. Por nenhuma razão especial, a
terra cobrou seu preço: as secas vieram e com elas a crise. De repente, a
cidadezinha tornou-se um ponto desconhecido no mapa, cujo nome tanto se perdeu
que nem aqui foi ou será mencionado.
Da galeria, tudo o que restou foram as
coberturas do posto de gasolina, que ainda forneciam a iluminação necessária
para afastarem a escuridão total, tanques oxidados, reservatórios vazios e um
telefone público sem gancho. Nenhuma dessas coisas tinha utilidade, eram senão
ordinárias decorações. Apenas a pequena cabine de venda de passagens
funcionava. Ela servia como ponto de parada e era a única companhia de viagem
interestadual que fazia trajeto obrigatório ao longo da rota 33. Durante o dia,
não era incomum encontrar ônibus estacionados fazendo conexões e trocando de
passageiros, que se espreguiçavam, acendiam seus cigarros, buscavam informações
com o vendedor da cabine ou praguejavam o fato de que o único banheiro exibisse um
garrafal INTERDITADO na porta. O aviso estava ali há quase cinco anos.
Era noite de Halloween - não que o ar
estivesse diferente ou que crianças perambulassem, fantasiadas, pelas ruas.
Àquela hora da noite, não havia mais linhas fazendo conexões. O próximo ônibus
só passaria às oito da manhã, quando o velho funcionário já estaria há mais de
duas horas sentado organizando os bilhetes com seu sorriso amistoso. Para ele,
o contato com pessoas de outros lugares do mundo era o fator mais importante (e
empolgante) de seu ofício.
Apesar disso, desconfiou do jovem padre
que estava ali sentado desde as oito da noite. Vez ou outra, o sacerdote
esticava os pés e caminhava distraído com as mãos mergulhadas no sobretudo
escuro. Tanto os cabelos como os olhos eram de um preto profundo, bem alinhados
atrás da orelha até mesmo quando o vento morno de outubro os desarranjava. Nos
ombros relaxados, carregava uma elegância natural, e atravessada no peito, uma
bolsa igualmente preta. Pelas horas que ficou ali, não tocou na mala, tampouco
se afastou dela. Ao contrário dos jovens daquela época – ele não aparentava passar
dos trinta e cinco anos –, não fez uso de aparelho celular. Parecia bem-sucedido
em se manter absorto, à espera de algum ônibus que jamais chegaria, pois não
fez questão de comprar qualquer bilhete nem de subir nos últimos que por ali
passaram horas atrás.
Preocupado com o horário e com a
natureza do jovem padre, o velho guardou os bilhetes na gaveta junto com a
caderneta de horários para o mês de novembro, trancou-os com três voltas;
apagou as luzes interiores, fechou a porta com outras três voltas e suspendeu o
portão de ferro. Em seguida, usou um pesado cadeado para trancá-lo. Voltou a
perguntar ao sacerdote (a mesma pergunta que fizera antes):
— Tem certeza que vai ficar aqui
sozinho, padre?
— Minha carona está atrasada –
respondeu ele através de um pesado sotaque britânico.
O homem assentiu. Guardou as chaves da
cabine no bolso. Nunca havia conversado com alguém de terras tão distantes. De
maneira muito discreta e nada invasiva, ele acenou para o padre e seguiu até o
estacionamento. Entrou na caminhonete e deu partida nela, para em seguida
mergulhar na escuridão da rota 33.
Agora sozinho, o
sujeito esticou as pernas e por hábito aqueceu as mãos nos bolsos do sobretudo,
embora a noite não estivesse fria. Iluminado apenas pelas últimas luzes acesas
do posto de gasolina, ele fechou os olhos e recostou a cabeça na parede. No tempo
em que aguardou ali, não escutou qualquer automóvel cruzar a estrada. Relaxado,
manteve-se atento aos sons da noite: grilos no interior da galeria, marchando
por entre os musgos que certamente subiam pelas paredes; ratos e mariposas que descansavam
no capim alto que ocupava o playground aos fundos; morcegos que saíam do
interior das velhas lojas para sua noturna caçada e retornavam, saciados, de
barrigas cheias e bocas adocicadas, para seu ninho de amantes e comparsas. Além
deles, apenas sua respiração fazia coro à orquestra. Ele não se preocupou com
perigos escondidos ou ameaças noturnas – fossem elas humanas ou não, pois das
certezas que possuía, apegou-se àquela que o ofertaram: encontre-nos no
velho posto de gasolina, e fique tranquilo, ele não estará lá.
Além dela, outra
certeza bem maior o fazia abraçar a falta de preocupação e o preenchia de
aparente desleixo, pois não havia desligado os sensores internos de perigo por
acaso. Era a certeza da proteção. A certeza de que não morreria aquela noite. A
certeza de que não sucumbiria tão cedo. Pois tinha outra missão a ser cumprida,
uma maior e mais importante. Não cairia à beira da estrada enfrentando um
provável predador sedento de migalhas em cidades sem nome – aquilo era apenas
um passatempo, um contratempo, um breve desvio de melhores rotas e
conhecidas curvas. Não seria ali, num antigo posto de gasolina, em uma noite
amena e inofensiva, enquanto descansava as pálpebras e aguardava para pagar um
antigo favor, que estaria em perigo.
Meia hora depois, escutou
um ronco distante preencher o silêncio da noite. Pouco a pouco, o primeiro som
de motor em mais de três horas se aproximou da antiga galeria à beira da
estrada, um alento aos ouvidos. Gradativamente, o sinal de vida aproximou-se
até que os faróis do carro iluminassem o estacionamento, então os pneus
rangeram sobre os cascalhos e pararam embaixo do posto, onde os ônibus
costumavam estacionar. O motor do Ford Crown Victoria 1992 parou de ranger e a
ignição foi desligada. O motorista abriu a porta e contornou o veículo para
ficar de pé ao lado do padre.
Joseph Akna era alto
e corpulento. Em verdade, os quase 2 metros de altura tornavam os 1,80m do
padre irrelevantes. Aparentava beirar os cinquenta anos e na cabeça
predominavam cabelos grisalhos. Os olhos eram felinos e de um castanho
brilhante mesmo na escuridão da noite, traços típicos do povo inuíte. O calor
daquelas terras quase áridas era diabólico para um homem como ele, acostumado
às baixas temperaturas do norte. Joe estava muito, muito longe de casa.