31 de outubro de 2022

Cemetery Drive #38 - Devorador de almas


 

 

 

 

Change that song, Mr. DJ

All we wanna hear is rock 'n' roll tonight

 

(Change that song, Mr. DJ - Tim Timebomb) 

 


 

I.

Angakkuq

 

 

Como um punhal atravessado na noite, a rota 33 cortava a pequena cidade agrícola sem nome ao meio. O que há mais de duas décadas havia sido uma importante rota comercial de insumos e fertilizantes, hoje não passava de um ponto monótono no meio do mapa, mera parada obrigatória – mais por falta de opção do que por motivos atraentes – para aventureiros e viajantes na pausa de quinze minutos que os ônibus interestaduais faziam ali.

O local ficava à beira da estrada: não um terminal, mas um antigo e já desativado posto de gasolina com pequeno estacionamento e uma simplória e abandonada galeria de lojas. À época da inauguração, foi um dos principais e mais atrativos cartões postais da cidade – a lista não era verdadeiramente extensa nem sequer existente. O prefeito, cuja família dominava o cargo há cinco gerações no passado e dominaria adiante no futuro, estampou propagandas em outdoors num raio de quilômetros, convidando os viajantes a desfrutarem da diversão. 

A prosperidade, entretanto, não passou de areia escorregando pela cintura da ampulheta. Por nenhuma razão especial, a terra cobrou seu preço: as secas vieram e com elas a crise. De repente, a cidadezinha tornou-se um ponto desconhecido no mapa, cujo nome tanto se perdeu que nem aqui foi ou será mencionado. 

Da galeria, tudo o que restou foram as coberturas do posto de gasolina, que ainda forneciam a iluminação necessária para afastarem a escuridão total, tanques oxidados, reservatórios vazios e um telefone público sem gancho. Nenhuma dessas coisas tinha utilidade, eram senão ordinárias decorações. Apenas a pequena cabine de venda de passagens funcionava. Ela servia como ponto de parada e era a única companhia de viagem interestadual que fazia trajeto obrigatório ao longo da rota 33. Durante o dia, não era incomum encontrar ônibus estacionados fazendo conexões e trocando de passageiros, que se espreguiçavam, acendiam seus cigarros, buscavam informações com o vendedor da cabine ou praguejavam o fato de que o único banheiro exibisse um garrafal INTERDITADO na porta. O aviso estava ali há quase cinco anos.

Era noite de Halloween - não que o ar estivesse diferente ou que crianças perambulassem, fantasiadas, pelas ruas. Àquela hora da noite, não havia mais linhas fazendo conexões. O próximo ônibus só passaria às oito da manhã, quando o velho funcionário já estaria há mais de duas horas sentado organizando os bilhetes com seu sorriso amistoso. Para ele, o contato com pessoas de outros lugares do mundo era o fator mais importante (e empolgante) de seu ofício.

Apesar disso, desconfiou do jovem padre que estava ali sentado desde as oito da noite. Vez ou outra, o sacerdote esticava os pés e caminhava distraído com as mãos mergulhadas no sobretudo escuro. Tanto os cabelos como os olhos eram de um preto profundo, bem alinhados atrás da orelha até mesmo quando o vento morno de outubro os desarranjava. Nos ombros relaxados, carregava uma elegância natural, e atravessada no peito, uma bolsa igualmente preta. Pelas horas que ficou ali, não tocou na mala, tampouco se afastou dela. Ao contrário dos jovens daquela época – ele não aparentava passar dos trinta e cinco anos –, não fez uso de aparelho celular. Parecia bem-sucedido em se manter absorto, à espera de algum ônibus que jamais chegaria, pois não fez questão de comprar qualquer bilhete nem de subir nos últimos que por ali passaram horas atrás.

Preocupado com o horário e com a natureza do jovem padre, o velho guardou os bilhetes na gaveta junto com a caderneta de horários para o mês de novembro, trancou-os com três voltas; apagou as luzes interiores, fechou a porta com outras três voltas e suspendeu o portão de ferro. Em seguida, usou um pesado cadeado para trancá-lo. Voltou a perguntar ao sacerdote (a mesma pergunta que fizera antes):

— Tem certeza que vai ficar aqui sozinho, padre?

— Minha carona está atrasada – respondeu ele através de um pesado sotaque britânico.

O homem assentiu. Guardou as chaves da cabine no bolso. Nunca havia conversado com alguém de terras tão distantes. De maneira muito discreta e nada invasiva, ele acenou para o padre e seguiu até o estacionamento. Entrou na caminhonete e deu partida nela, para em seguida mergulhar na escuridão da rota 33.

Agora sozinho, o sujeito esticou as pernas e por hábito aqueceu as mãos nos bolsos do sobretudo, embora a noite não estivesse fria. Iluminado apenas pelas últimas luzes acesas do posto de gasolina, ele fechou os olhos e recostou a cabeça na parede. No tempo em que aguardou ali, não escutou qualquer automóvel cruzar a estrada. Relaxado, manteve-se atento aos sons da noite: grilos no interior da galeria, marchando por entre os musgos que certamente subiam pelas paredes; ratos e mariposas que descansavam no capim alto que ocupava o playground aos fundos; morcegos que saíam do interior das velhas lojas para sua noturna caçada e retornavam, saciados, de barrigas cheias e bocas adocicadas, para seu ninho de amantes e comparsas. Além deles, apenas sua respiração fazia coro à orquestra. Ele não se preocupou com perigos escondidos ou ameaças noturnas – fossem elas humanas ou não, pois das certezas que possuía, apegou-se àquela que o ofertaram: encontre-nos no velho posto de gasolina, e fique tranquilo, ele não estará lá

Além dela, outra certeza bem maior o fazia abraçar a falta de preocupação e o preenchia de aparente desleixo, pois não havia desligado os sensores internos de perigo por acaso. Era a certeza da proteção. A certeza de que não morreria aquela noite. A certeza de que não sucumbiria tão cedo. Pois tinha outra missão a ser cumprida, uma maior e mais importante. Não cairia à beira da estrada enfrentando um provável predador sedento de migalhas em cidades sem nome – aquilo era apenas um passatempo, um contratempo, um breve desvio de melhores rotas e conhecidas curvas. Não seria ali, num antigo posto de gasolina, em uma noite amena e inofensiva, enquanto descansava as pálpebras e aguardava para pagar um antigo favor, que estaria em perigo.

Meia hora depois, escutou um ronco distante preencher o silêncio da noite. Pouco a pouco, o primeiro som de motor em mais de três horas se aproximou da antiga galeria à beira da estrada, um alento aos ouvidos. Gradativamente, o sinal de vida aproximou-se até que os faróis do carro iluminassem o estacionamento, então os pneus rangeram sobre os cascalhos e pararam embaixo do posto, onde os ônibus costumavam estacionar. O motor do Ford Crown Victoria 1992 parou de ranger e a ignição foi desligada. O motorista abriu a porta e contornou o veículo para ficar de pé ao lado do padre.

Joseph Akna era alto e corpulento. Em verdade, os quase 2 metros de altura tornavam os 1,80m do padre irrelevantes. Aparentava beirar os cinquenta anos e na cabeça predominavam cabelos grisalhos. Os olhos eram felinos e de um castanho brilhante mesmo na escuridão da noite, traços típicos do povo inuíte. O calor daquelas terras quase áridas era diabólico para um homem como ele, acostumado às baixas temperaturas do norte. Joe estava muito, muito longe de casa.

7 de outubro de 2022

que queime

 




— Sabe, eu nunca tive pretensão de nada. Não as grandes pretensões, pelo menos.

— Nada, nada?

— Não vou dizer que nunca sonhei, que nunca vislumbrei um cenário diferente desse aqui — ele bateu na mesa com o dedo indicador. — Sabe por quê?

— Por quê?

— Podes chamar de autoestima baixa, mas eu chamo de consciência. Autoconsciência.

— Como assim?

Ele ergueu o mesmo dedo indicador no ar, sinalizando atenção.

— Eu já disse isso aqui uma vez, mas de maneira mais debochada. Nunca vou perder isso, acontece que, desta vez, eu só tô cansado. Então vou dizer de novo: uma vez conheci um cara que vivia pelas esquinas enchendo o peito e se proclamando escritor. Estendia a mão, dizia: "Prazer, sou escritor". Frequentava aniversário de criança e antes de dar o presente ao aniversariante de 6 anos, dizia: "Você está ganhando este presente de um escritor. Parabéns". Quando terminava de gozar, anunciava às mulheres: "Você recebeu a porra de um escritor. É o que eu sou. Gostou?".

— E daí?

— Eu odiava esse cara. Acho que odeio esses tipos de cara.

— Por quê?

— Deve ser frustração.

— Deve nada. Diz aí. Por quê?

Ele deu de ombros, confuso. Mas continuou:

— Recentemente ouvi de uma pessoa a ideia pra um projeto. Era mais ou menos assim: a construção da imagem do escritor no curso de Letras. Eu só soube disso, não sei de mais nada e só o que sei foi o que comecei a pensar sobre isso.

— O quê?

— Antigamente eu me imaginava de algumas formas e todas essas formas foram obliteradas, porque o tempo traz amadurecimento e a desconstrução de certas idealizações idiotas. Bom, cabe a você amadurecer certas ideias ou projeções e ainda bem que isso me ocorreu. Com o tempo e com a prática da vida e da escrita, você vai largando certas atitudes, certos temas e certas tendências estilísticas. Eu era imaturo e muito sonhador, possuía essas pretensões imbecis de ter reconhecimento, de produzir algo relevante, algo sério. Não eram as maiores pretensões, mas eram mínimas. Queria produzir um tema universal que, de tão universal, poderia se encaixar em qualquer gênero periférico menosprezado pela crítica. Afinal, é o que todos tentamos buscar e representar no texto: a universalidade humana. Mas pra chegar nisso, é preciso prática. É preciso que você se debruce sobre a página, porque a escrita é esforço, é trabalho duro, é tarefa árdua. E, antes de mais nada, é estudo constante, certo?

— Certo.

— Metade talento individual, metade mão na massa.

— Sim.

— Mas às vezes te falta uma dessas metades. E quando te falta uma, você se esforça na outra. É a lógica, né?

— É.

— Pois é. É sobre isso. Eu quero muito acreditar que você pratica até ficar bom, bom-bom de verdade. Tradição e talento individual: segurei firme nesse ensaio do Eliot pelos últimos anos com a mais dedicada fé. Só que com o tempo, ele me pareceu um pastor que já não consegue segurar a ovelha desgarrada na área segura do cercado. Eu sou a ovelha. Entende?

— Entendo. Você agora acredita na metade do talento inerente?

— Ultimamente? Sim. O talento do qual sou desprovido. Bem, eu só falo por mim. E tô falando exclusivamente por mim.

— Por que dizes isso?

— Alguns nãos sistemáticos que recebo e o engessamento temático me dizem isso. A cada não recebido, penso que devo parar. Devo parar. Olho para trás e sinto vergonha. Os grandes mestres, mesmo jovens, tinham uma obra minimamente consistente ou em amadurecimento. Você olha pra uma Helena e pensa: "bom, é, esse aqui é o Machado, mas ainda não o Machado propriamente dito que conheceremos no futuro. Aqui ele ainda está amadurecendo". Nem em uma vida inteira o mais magnânimo dos meus amadurecimentos se comparará a um Helena, por exemplo. E não, eu não quero ser um grande mestre, mas não queria me sentir envergonhado como uma troça de mal gosto. Quando olho pra trás, tudo o que vejo é bobajada, putaria e piada sem graça. Ressentimento pessoal posto em texto de boa coerência e coesão, mas qualquer um, com acesso digno à educação básica de qualidade, consegue construir um texto minimamente coerente e coeso. Às vezes, as pessoas se emocionam e veneram textos amadores como se eles fossem grandes obras universais, como se o sujeito por trás deles fosse uma criatura de outro plano celestial que deve ser louvada e apreciada, enquanto reina em sua torre de marfim Quando, na verdade, ela só escreveu um texto minimamente coerente e coeso. É o que separa uma redação de 20 linhas de um parágrafo de um Grande Sertão Veredas, entende?

— Sim.

— E quando olho pra trás, tudo o que vejo é um texto minimamente coerente e coeso. Não tem muito valor poético, não tem rebuscamento na prosa, essa sobre a qual todos os literatos, críticos e avaliadores nacionais julgam como verdadeira Literatura. A Literatura por si só é excludente, ela começa excludente. O ponto de partida é a exclusão. É o que, obviamente, separa um garoto de 17 anos escrevendo em blog de delírios amorosos de uma imortal rainha do fluxo de consciência. A Literatura se sustenta de cânones, de rigor artístico, quer você queira, quer não. Cabe a você correr atrás do mínimo para compor uma obra literária aceitável que se esprema e se encaixe no espectro literário. Entende?

— Entendo.

— É um tabuleiro de egos inflados. O que me traz novamente ao cara do início. Tem gente que se esconde e não grita aos quatro ventos que escreve, porque não se sente confortável com essa autoafirmação, pois não soa certificada; tem gente que se apresenta pelo que de fato é e essa gente é uma gente respeitável; e tem gente como esse tipo de cara: inflando o peito, apresentando-se só porque fazia poema adorado por garotinhas emocionadas ou por camaradas coniventes de abusos. O que me incomoda é como você usa a Literatura. Enquanto alguns estão há anos produzindo obras consistentes e não têm reconhecimento, outros recitam rima ABAB pelas esquinas e bares e ganham aplausos. Muitas vezes sequer se aventuraram desde cedo na prosa, na estrutura narrativa diária, nunca nem a praticaram. Usam o termo ESCRITOR em caixa alta, enchem a boca, pesam as línguas. Não existe um curso de graduação que faça de você um escritor de verdade. Carolina Maria de Jesus nunca se formou na Universidade Estadual da Galera da Pena, mas era escritora — inegavelmente. Até aquele porco eugenista do Monteiro Lobato afirmou em carta que é isso, que você pode não conhecer as regras da língua, mas um escritor opera pela prática. Se até um Ku Klux Kanner consegue escrever por meio da prática, é porque ele praticou. Às vezes, o conhecimento teórico vem depois do domínio da ferramenta. É quando você se especializa. E aí eu preciso ver esses sujeitos, que nunca se aventuraram pela prosa, autointitularem-se escritores só pra comer mulher? Esse é o problema, mas também não só esse.

— E qual é o outro?

— Sei lá — ele deu de ombros outra vez, tão perdido quanto no início do diálogo. — Shhhiu. Vê só, tá escutando?

No fundo do cenário, que poderia ser um bar de pinguços, um pub burguês no Umarizal, um quarto fechado de janelas abertas na madrugada, uma cozinha com cheiro de ovos fritos ou um banco úmido de praça abandonada, uma canção suavemente deslizou pelo ar com melodia lenta e acordes de guitarra melancólicos.

— Eu queria que o meu livro tivesse a áurea dessa música — disse ele, levemente abobalhado como quem fala de um filho recém-nascido.

— São os Stones?

— Sim. I got the blues. Cantada ao vivo no Marquee Club, em 1971.

— O que diz na letra?

— Não, não. Não é nem tanto a letra, é a áurea. É diferente.

— Por que essa áurea?

— Porque sim. Eu não sei. Sabe, eu não sei. Não sei de muita coisa. Lembro do Ferreira Gullar, em 2001, durante uma entrevista ao Roda Viva, tendo de explicar todas aquelas perguntas e questionamentos sobre a própria obra. Às vezes, você tem consciência do que faz. E esse é um fazer artístico claro. Por outro lado, existe um fazer artístico tão genuíno quanto o saber, que é o de não saber: ele opera naquela área do desconhecido. Inspiração divina? Agonia humana? Tanto faz. Não importa. Críticos literários às vezes tendem a enfeitar as obras que estudam com muito empenho, inventam abobrinhas, dão uma volta em Freud, retornam e se sentem mais donos da obra do que a própria obra. E aí, perguntam ao autor: "ei, neste trecho, que permeia grande parte da sua contribuição literária, você diz que isto aqui significa isso, logo, a conclusão que tiramos é que esta análise embasa a teoria da qual eu estudo. Você pode nos falar mais sobre isso?". Eis que o autor responde: "rapaz, eu não faço a mínima ideia do que você está falando. Quem está afirmando isso é você, não eu". Então os críticos ficam coléricos, irritados, dobram os beiços e ficam marrentos num canto. Como assim você não pode confirmar toda essa abobrinha que desenvolvi sobre sua obra?! Não saber é uma boa coisa também. É válido.

— Então seu livro tem a áurea dessa música, embora nem você saiba a razão?

— Tem. Ou queria que tivesse. Mas não vai ter.

— Por quê?

— Porque não importa a ninguém. Às vezes acho que a conclusão daquele livro foi o sepultamento definitivo das minhas pretensões. Eu olho ao redor, pro tanto de gente publicando suas obras e questiono o que, Diabos, tô fazendo. Qual a minha contribuição aqui? Os mesmos velhos temas. A velha mesma abobrinha. Os prêmios SESC e CEPE todos os anos recebem gente empenhada em fazer coisa boa de qualidade, com rigor literário, operando naquele espectro minimamente relevante que mencionei antes. Você vê as competidoras de um prêmio São Paulo e só precisa aplaudi-las. Aquelas são obras de verdade, que te fisgam, que te estilhaçam e que dialogam com a universalidade presente tanto num sujeito dentro de um cenário fictício em Belém quanto num trabalhador honesto no Nepal. Sei lá, eu nem precisaria ir muito longe, não nos prendamos às grandes premiações: abra a obra de qualquer autor e autora paraenses e encontrarás isso também. Entende? E aí eu penso: o que uma obra com áurea de uma canção como essa fará no oceano gigantesco de obras literárias sérias e relevantes? Isso, claro, partindo do pressuposto de que aceitarão meu livro.

— E se aceitarem?

— Por que aceitariam? E se as pessoas rirem? E se, mesmo em todos estes tantos anos, não passar de uma piada: sem amadurecimento, sem relevância, sem seriedade? Eu nunca serei um autor de linguagem rebuscada como os Jabutis amam bajular, mas também não quero morrer sendo uma piada como um Marcos Bulhões — se bem que, respeitemos, o cara só não é melhor que o Machado de Assis.

— Enquanto aqueles que merecem uma oportunidade se questionam e não vão em frente, aqueles que são piada, aos montes publicam. Isso é justo?

— Nada nunca é justo. Se fosse, nem estaríamos tendo essa conversa.

— Então, vais desistir? Isso tudo foi um sinal de desistência?

— Não sei. Não sei. Realmente não sei. Acho que é um sinal de vergonha. De auto-penitência. Autocrítica, com toda a certeza. Eu não sou o melhor no que faço, nunca serei. Portanto, a agonia vem disso: não sou o melhor no que faço, mas essa é a única coisa que melhor sei fazer.

— Então faça.

— Ér…

Um silêncio recaiu sobre o cenário fictício que poderia ser um palco de teatro improvisado em escola pública, um apartamento apertado e cheio de gatos no centro urbano da cidade, uma lanchonete espremida entre dois edifícios comerciais, uma biblioteca onírica ou o fundo de um quintal interiorano. A calada reflexão fez sua morada no espaço onde antes pairavam palavras, reclamações e desaforos. O interlocutor que a tudo questionava e concordava, sem mais palavras permaneceu, pois seu trabalho ali estava quase feito, exigido somente quando necessário para a construção fictícia deste cenário.

Nesse instante, Mick Jagger cantou and I've got the blues for you, and I'll bust my brains out for you, and I'll tear my hair out, tear my hair out just for you.

E, pela penúltima vez, o interlocutor questionou:

— E quanto ao livro?

— Não sei. Não sei de verdade.

— Vai engavetar?

— Na gaveta ou nas estantes, o livro que queime.